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quarta-feira, 4 dezembro, 2024

‘Vai ter luto e luta, ou não vai ter nada’. Ou seja, a Fortuna existe. Será preciso ter ‘virtù’. Entrevista com Rodrigo Nunes

IHU – Unisinos
Adital

“Mesmo quem é profundamente crítico a este governo, como eu, precisa entender que o impeachment não foi só contra o governo; pela situação e o precedente que cria, ele foi contra todos nós”, diz o filósofo.

O julgamento do impeachment da presidente Dilma “é político no pior sentido”, e se ela for cassada, não entrará em curso um novo projeto, porque “não há novo projeto”, mas “uma política de terra arrasada”, diz Rodrigo Nunes à IHU On-Line.

Na avaliação dele, “o propósito do novo bloco de governo”, composto “basicamente” pela “mesma ‘base aliada’ menos o PT, é promover uma restauração conservadora não apenas contra os avanços da última década, mas contra a própria possibilidade de novos avanços”.

Apesar das críticas que já direciona a um eventual governo Michel Temer, Nunes frisa que o recorrente discurso de uma “ascensão conservadora” no país “simplifica uma série de movimentos moleculares díspares e os transforma num fenômeno molar unívoco. (…) Se estes diferentes movimentos não podem ser univocamente ditos ‘conservadores’, isto quer dizer que eles podem ser disputados por forças tanto regressivas quanto progressivas”, e este “é o desafio”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o filósofo analisa a crise política a partir da atuação dos movimentos que estão nas ruas e afirma que desde 2013 dois grupos se potencializaram: o primeiro através da articulação do Movimento Brasil Livre – MBL e o segundo com interlocutores no empresariado, nos meios de comunicação e no sistema político.

Enquanto isso, questiona, “a ‘esquerda’ e os ‘indefinidos’, o que encontraram? Repressão e desqualificação ao invés de diálogo. A mensagem que o PT mandou foi que não os representaria, nem mudaria; era pegar ou largar”. E dispara: “O resultado está aí. Aliás, daria para dizer que 2013 foi o momento em que a oposição perdeu o medo do PT, porque viu que o partido não controlava mais as ruas, e perdeu o medo das ruas, porque viu que suas demandas radicais não tinham interlocutores”.

Na avaliação dele, o Brasil deve entrar num “período de reorganização do sistema partidário” que vai depender da força e da capacidade dos movimentos de manterem os políticos sob controle. Mas por enquanto, afirma, é preciso “fazer o luto” e “entender que não vamos voltar a 2002, que o pacto lulista não é mais possível” e que é preciso fazer a crítica dos erros cometidos, “mas sem antipetismo, que é apenas o simétrico inverso da miopia governista, nem ressentimento, que é a incapacidade de definir-se para além da negação do que se critica. É acabar com fantasias do tipo ‘guinada à esquerda’, ‘o Lula voltou’ etc. É repensar propósitos, práticas organizativas, táticas de luta”.

Rodrigo Guimarães Nunes é doutor em Filosofia pelo Goldsmiths College, Universidade de Londres, e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. É colaborador de diversas publicações nacionais e internacionais, como Radical Philosophy, Mute, Le Monde Diplomatique, Serrote, The Guardian e Al Jazeera. Como organizador e educador popular, participou de diferentes iniciativas ativistas, como as primeiras edições do Fórum Social Mundial e a campanha Justice for Cleaners, em Londres. Além disso, foi membro do coletivo editorial Turbulence, uma revista influente entre os movimentos sociais da Europa e da América do Norte na segunda metade da década passada.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a sua análise geral sobre o momento político que o país vive? Em artigo recente você afirma que existe uma “luta pela sobrevivência” no campo político. Do que se trata?

Rodrigo Nunes – A crise atual tem várias temporalidades que se condensam. Nas escalas mais curtas, há a crise do projeto petista e uma disputa interna à classe política.

Desde os anos 90, somente dois partidos souberam dar direção à massa amorfa que é nossa classe política e criar um consenso social em torno de projetos mais os menos definidos, o PSDB e o PT. Por conta da impossibilidade de sustentar economicamente o chamado “pacto lulista”, contudo, o projeto petista já vinha se esgarçando desde o primeiro mandato de Dilma. O resultado apertado das últimas eleições, a guinada brusca que se seguiu e a consequente queda de popularidade do governo tornaram o projeto insustentável também politicamente. Para a base aliada, o custo de apoiar o governo tornou-se mais alto que o benefício; para o governo, o custo de manter a coalização tornou-se impraticável. Isto, somado à ameaça da Lava Jato, instaurou uma luta para livrar-se do PT, se possível tornando-o bode expiatório. O PT é como um corpo estranho que, por mais que tenha se adaptado ao hospedeiro, nunca foi inteiramente assimilado, e agora está sendo eliminado.

Mas isto não se dá porque tenha surgido um novo projeto para substituí-lo. É simplesmente uma reação da elite política e empresarial que, num movimento de autodefesa, busca aproveitar-se da confusão para defenestrar o PT e, o que é mais grave, garantir que mesmo um “reformismo fraco” como foi o lulismo precise futuramente começar de um patamar ainda mais baixo que 2003, mais baixo que a própria Constituição de 88. A ideia parece ser, entre agora e 2018, fazer os direitos sociais retrocederem quanto seja possível e transformar em lei um máximo de obstáculos a futuros projetos de transformação social.

É importante salientar isto: não há um novo projeto, o que há é uma política de terra arrasada. O propósito do novo bloco de governo – basicamente a mesma “base aliada” menos o PT – é promover uma restauração conservadora não apenas contra os avanços da última década, mas contra a própria possibilidade de novos avanços. A desastrosa Lei Antiterrorismo, inacreditavelmente aprovada por um governo às vésperas de cair, foi uma dádiva neste sentido, já que cria um arcabouço legal conveniente à repressão de todo dissenso social.

“Há uma nova geração se formando na política”

Além da terra arrasada

Mas há algo mais nesta metáfora da “terra arrasada”, que é, afinal, algo que se costuma dizer de exércitos em recuo. Aqueles grupos que se fortaleceram ao longo dos dois mandatos da Dilma – muito, diga-se, com a ajuda dela – e que saíram vitoriosos com o impeachment, em que sentido pode-se dizer que estão em recuo?

Aí entramos numa outra escala temporal. É óbvio que, do ponto de vista da política representativa, eles estão ganhando. Mas duas chaves essenciais de leitura, para mim, são o descompasso temporal entre representação e sociedade, e a necessidade de situar o recrudescimento do conservadorismo no contexto das transformações sociais recentes.

É certo que o foco cada vez mais restrito na inclusão pelo consumo foi despolitizante. Ainda assim, a última década foi um período de expansão de horizontes para grande parte da população, por conta do aumento do padrão de consumo, do acesso à universidade, a viagens, a bens culturais, à internet etc. As expectativas, em termos de qualidade de vida, do papel do Estado, cresceram. Como também mudaram várias atitudes: o orgulho e protagonismo de negros e mulheres, a visibilidade LGBTT, a própria fluidez de gênero entre os mais jovens. Além disso, há uma nova geração se formando na política, como têm demonstrado os secundaristas de São Paulo, Goiânia e Rio, a grande lufada de ar fresco neste momento. O Brasil mudou e segue mudando.

Isto se fez visível em junho de 2013, onde uma série de questões até então intocadas, como transporte público e violência policial, se tornaram pautas comuns. Eram estas transformações que se expressavam ali, como se a sociedade notificasse à classe política: “não somos mais aqueles de antes; a relação entre nós vai ter de mudar”. Para falar em termos maquiavelianos, ali estava a Fortuna, a oportunidade para uma repactuação “de baixo para cima” do pacto lulista. Mas faltou ao PT a virtù para transformar oportunidade em política.

Direita nas ruas

Claro, a direita também estava nas ruas – bem como havia, sobretudo, gente indefinida, vivendo sua primeira experiência política. Mas é aí mesmo que está o problema. Porque esta “direita”, talvez também menos monolítica quanto se imagina, tornou-se uma força efetiva apenas na medida em que dois encontros a potencializaram. O primeiro, com pequenos grupos organizados, com capacidade estratégica, logística e de convocação, como o Movimento Brasil Livre – MBL; o segundo, com interlocutores no empresariado, nos meios de comunicação e no sistema político, que tiveram a virtù para explorar a oportunidade que ela abria. E aqueles que exigiam mais transformações sociais, o que encontraram? Repressão e desqualificação ao invés de diálogo. A mensagem que o PT mandou foi que não os representaria, nem mudaria; era pegar ou largar. O resultado está aí. Aliás, seria possível dizer que 2013 foi o momento em que a oposição perdeu o medo do PT, porque viu que o partido não controlava mais as ruas, e perdeu o medo das ruas, porque viu que suas demandas radicais não tinham interlocutores.

Nesta escala mais longa, o verdadeiro “golpe” que estamos vivendo não é interno à classe política, mas da classe política contra a sociedade. A implosão do PT, antigo interlocutor natural para as tendências sociais progressistas, significa que elas ficarão algum tempo sem representação política à sua altura, até que algo novo se consolide. Os agentes da restauração veem aí uma brecha para agir rápido, obstaculizando tendências que seriam, no médio ou longo prazo, ameaças a eles e aos interesses que representam. Eles lutam pela sobrevivência no curto prazo, por espaços de influência e proteção contra a justiça; mas, num arco temporal mais amplo, sua sobrevivência depende de uma contraofensiva sobre o futuro.

Mas isto também tem seu custo, porque o descrédito da classe política já é altíssimo. Não só por conta da corrupção. A corrupção é só um caso específico do problema mais amplo: a sensação generalizada de que a esmagadora maioria de nossos representantes só representam a si mesmos e a seus patrocinadores. O impeachment, na medida em que se apresenta abertamente como uma guerra entre elites políticas, e aquilo que tende a vir depois dele, na medida em que aprofunda um golpe do sistema político contra a sociedade, escancaram isto ainda mais. As evidências estatísticas e anedóticas são de que a maioria das pessoas, especialmente as mais pobres, via o impeachment como farsa, um espetáculo alheio a elas. Elas não se sentem representadas. É notável que os afetos predominantes nas redes sociais no dia da votação na Câmara não fossem alegria ou tristeza, mas repulsa e vergonha. A temporalidade deste descolamento entre sistema político e sociedade é bem mais longa: é a exaustão do sistema partidário da Nova República, mas também, em última análise, a própria história de nossa “democracia de baixa intensidade”.

“Uma das coisas politicamente mais potentes que se pode dizer para as pessoas é: o Brasil é melhor do que este Congresso”

Derrota do PT

Minha hipótese é que a derrota do PT foi uma faca de dois gumes, que desacreditou o sistema político junto com o partido, e seu custo pode ser alto para o sistema como um todo. Segundo pesquisas, 83% da população se diz pouco ou nada satisfeita com nossa democracia – uma insatisfação que se distribui de maneira equilibrada entre eleitores de Dilma e Aécio. É óbvio que um sistema político corrupto e autorreferente depende de um alto grau de cinismo e desencanto para existir: quanto menos as pessoas esperam, menos você precisa oferecer.

Porém, e esta seria a segunda hipótese, há um ponto crítico a partir do qual este cinismo e desencanto podem se transformar em impulso destituinte; e creio que, desde 2013, temos andado constantemente na vizinhança deste ponto. Considerando que a tendência é, após uma coqueluche cívica anticorrupção, entrarmos num período de acordos para abafar investigações e medidas altamente regressivas, talvez em breve haja oportunidade de testar esta hipótese.

Recapitulando, condensam-se nesta crise uma disputa entre elites políticas, a exaustão do projeto lulista, o fim da hegemonia petista sobre a esquerda e o início de um longo processo de reorganização, a provável reestruturação do sistema partidário da Nova República, as pressões criadas por uma década de transformações sociais e um episódio agudo de nossa crônica crise de representação. O resultado pode ser uma agonia que se arrastará por anos, com governos antipopulares de baixíssima legitimidade; mas o potencial para um novo início também está aí. A Fortuna existe. Será preciso ter virtù.

IHU On-Line – Por que as pessoas não se sentem representadas? Muito tem se falado que a crise de representação tem gerado uma ascensão conservadora. Você identifica esse fenômeno?

Rodrigo Nunes – Eu tenho sido bastante crítico da ideia de “ascensão conservadora”, não por pensar que ela não corresponda a fenômenos reais em relação à representação, mas porque não creio que ela recorte estes fenômenos da melhor maneira.

É evidente que há um elemento conservador forte no Congresso. Mas a ideia de que o Congresso é um retrato fidedigno da sociedade brasileira é precisamente a premissa que se deve questionar. Primeiro, porque nossa representação política reflete a realidade num espelho distorcido por vários fatores: um baixo nível de politização (especialmente nas eleições legislativas), a falta de coesão ideológico-partidária, os currais eleitorais, o marketing político, o alto custo das campanhas, o financiamento privado. Segundo, porque a rejeição generalizada à classe política é pública e notória. Ninguém se diz satisfeito.

Se reconhecemos enormes problemas em nosso sistema representativo, não podemos concluir automaticamente que, se o Congresso é conservador, é porque a sociedade é conservadora. E o pior erro que se pode cometer em momentos de crise de representação é pensar a sociedade a partir do sistema político, porque é justamente a relação entre os dois que está em crise.

Ascensão conservadora

O que aparece misturado na ideia de ascensão conservadora são pelo menos três processos distintos.

O primeiro é o crescimento do neopentecostalismo entre a população mais pobre desde a década de 80, que se dá num vácuo anteriormente ocupado pela Teologia da Libertação, que foi crucial na formação do PT. É um dado real, mas aqui há um problema também, que é as pessoas associarem conservadorismo e neopentencostalismo, como se todos os evangélicos fossem conservadores e como se a dita “bancada da Bíblia” não fosse em grande parte católica.

O segundo processo é a exploração do conservadorismo social pela oposição durante os mandatos do PT. Por muitos anos, a vida da maioria das pessoas estava melhorando, então era impossível convencê-las de que o governo era ruim. O que sobrou foi o discurso da corrupção e um misto de ortodoxia religiosa e paranoia da Guerra Fria, da qual a oposição inteira, inclusive a mais “moderna”, se aproveitou. Este foi um fator crucial em alimentar e visibilizar a extrema direita, deslocando o centro do debate nesta direção.

O terceiro processo é a reação às transformações sociais de que falávamos há pouco, que tensionam relações e atitudes tradicionais. E aqui me parece importante insistir que a estridência do discurso conservador é proporcional à sua consciência de que, as condições permanecendo iguais, a flecha do tempo trabalha contra ele.

O que temos aí, então? No primeiro caso, o vetor vai da sociedade para a representação política; a bancada evangélica cresce porque a população evangélica cresce. No segundo caso, o vetor vai da representação para a sociedade: é a exploração política deste discurso que produz ressonância social, o que, por sua vez, retroalimenta esta exploração. Mas aqui cabe mais falar em radicalização do conservadorismo que em crescimento propriamente dito. E no terceiro, o que temos justamente não é a representação, mas sua crise. Por exemplo, o apoio ao casamento gay, como implicitamente reconheceu o STF, é bem maior na sociedade que no Congresso.

Como disse, este descolamento entre representantes e sociedade pode ser o início de um tempo terrível, em que a representação praticamente se autonomiza. Mas a percepção deste descolamento é muito ampla; logo, também existe o potencial para uma transformação. Neste sentido, o que estamos vendo agora não seria o nascimento de uma nova maioria social, mas apenas a desagregação do sistema existente e o esperneio violento de agentes que se sentem ameaçados.

Em última análise, meu problema com a noção de “ascensão conservadora” é que ela simplifica uma série de movimentos moleculares díspares e os transforma num fenômeno molar unívoco. Tomar a radicalização do conservadorismo, um crescimento (verdadeiro, mas não gigantesco) de seu eleitorado, a desagregação provocada pelo fim da hegemonia petista sobre a esquerda e o vácuo atual de representação e projeto, para constituir a partir disso uma “ascensão conservadora” – o que isto faz é transformar em fato consumado aquilo que, justamente, está em disputa. Com isso, obscurecem-se os pontos onde é possível e necessário intervir. Se estes diferentes movimentos não podem ser univocamente ditos “conservadores”, isto quer dizer que eles podem ser disputados por forças tanto regressivas quanto progressivas. Este é o desafio.

Neste momento, uma das coisas politicamente mais potentes que se pode dizer para as pessoas é: o Brasil é melhor do que este Congresso. Potente, primeiro, porque é verdade; segundo, porque a maioria das pessoas concordaria; terceiro, porque dá entrada no tipo de conversa que precisamos começar a ter.

Gramsci – o primeiro, aliás, a introduzir os termos “molecular” e “molar” na análise política – falava em pessimismo do intelecto e otimismo da vontade. Isto significa, por um lado, ler a realidade sem projetar nossos desejos nela. Mas também, por outro, acreditar que em toda situação, por pior que seja, há algo a fazer – porque as condições que tornam possível fazê-lo estão de algum modo dadas, mesmo se apenas molecularmente, e mesmo que os meios para fazê-lo ainda estejam por ser inventados.

“Penso o futuro próximo mais em termos de luta defensiva, porque não vejo alternativas satisfatórias no horizonte imediato”

IHU On-Line – Como tem avaliado a discussão em torno do impeachment? O que se pode esperar pós-impeachment?

Rodrigo Nunes – Para mim, havia pelo menos duas boas razões para ser contra o impeachment, uma jurídica, a outra histórica. A jurídica é que o fato imputado não me parece caracterizar crime de responsabilidade, que é o motivo de impeachment previsto pela Constituição. De onde a razão histórica, que é o fato de que este processo não apenas dá sequência a nosso lamentável histórico de casuísmos, chicanas e gambiarras institucionais, como cria um precedente muito grave. Na prática, como vários discursos durante a votação deixaram claro, o impeachment não foi aplicado como o instituto presidencialista que é, mas como o mecanismo parlamentarista que não é: o voto de não-confiança. O precedente é, portanto, que nenhum governo que tenha perdido apoio congressual estará a salvo – o que, considerando como é o nosso Congresso e como se conquista apoio nele, é bastante preocupante. Mesmo quem é profundamente crítico a este governo, como eu, precisa entender que o impeachment não foi só contra o governo; pela situação e o precedente que cria, ele foi contra todos nós.

O julgamento é “político” no pior sentido – do que a questão legal é praticamente irrelevante. É quase certo, portanto, que Dilma será cassada. Neste contexto, as palavras de ordem de eleições gerais e constituinte exclusiva para a reforma política parecem ganhar sentido.

IHU On-Line – Na sua avaliação, eleições gerais ou uma constituinte exclusiva seriam a melhor saída para a crise?

Rodrigo Nunes – Tenho ouvido vários argumentos a respeito; aqui estão os que me parecem mais relevantes.

Mesmo Aécio Neves, na corrida presidencial de 2014, falava em qualificação dos serviços públicos e expansão do Bolsa Família. Por que ninguém fez campanha em 2014 falando em medidas de austeridade, privatizações, contenção de gastos sociais e ataque aos direitos dos trabalhadores? Porque ninguém se elegeria com um programa destes. Michel Temer está sendo colocado na presidência para executar um programa que apenas dois tipos de governo poderiam executar: um que tivesse o apoio incondicional da esquerda e dos movimentos sociais (e pudesse, portanto, aplicá-lo sem contestação), ou um governo eleito indiretamente. Dilma talvez já não fosse o primeiro; Temer será o segundo. Aquilo que tendia a ser feito mais devagar em um, vão tentar fazer como Blitzkrieg no outro.

Uma campanha por eleições gerais – que joga com a memória da demanda por eleições diretas – serve, primeiro, para chamar atenção para este ponto: não se elegeu este programa, e a classe política não pode implementá-lo à revelia da vontade expressa nas urnas. Ela tem a obrigação, portanto, de consultar novamente a população. Com isto, a demanda por eleições gerais serve também para colocar em questão a legitimidade de quaisquer medidas que venham a ser implementadas. Elas podem até passar, já que nossa classe política convive bem com a falta de legitimidade. Mas ficará a memória de que foram feitas sob contestação, o que as mantém abertas para disputas futuras.

Por último, a palavra de ordem de eleições gerais tem mais condições de unificar a oposição ao governo Temer que a defesa do mandato de Dilma. Primeiro, porque se a cassação é praticamente certa, não há ganho em se organizar em torno de uma causa perdida, que se desmobilizará logo em seguida. Uma vitória seria, em todo caso, uma vitória de Pirro, que só levaria de volta ao mesmo impasse de antes. Segundo, porque não se confunde com uma defesa do governo ou do PT, que muito menos gente está disposta a fazer; ela já era, aliás, a demanda de alguns setores, inclusive petistas. Terceiro, porque retira a questão do terreno jurídico e parlamentar, onde a crise de representação joga contra nós, e a situa no campo político da correlação de forças entre sociedade e representantes. E se é para entrar neste campo com força máxima, é preciso escolher a palavra de ordem capaz de gerar mais consenso. E aí entra o dado talvez mais relevante: segundo pesquisas, a esta altura 62% da população já prefere novas eleições.

Além disso, as pesquisas indicavam que o descrédito das instituições e a percepção de uma crise de representação também era forte nas manifestações pró-impeachment. Agora que os convocantes destas manifestações, como o MBL, estarão negociando com um governo de políticos tradicionais obrigados a acomodar a corrupção em seu meio, o desacordo que já se observava entre convocantes e base tende a se acentuar. A rejeição à corrupção e à política tradicional nestes setores tende a ficar órfã. Isto pode ser canalizado numa campanha por eleições gerais, embora esteja claro que estes setores dificilmente se somariam a algo que lhes parecesse apenas uma campanha do PT.

“Estou discutindo eleições gerais como possibilidade de mobilização social, não como alternativa”

Bandeiras trocando de mãos

Na verdade, há a possibilidade de vermos as bandeiras trocarem de mãos. O sentimento anticorrupção e o espírito destituinte, o que se vayan todos, podem voltar para a esquerda; a oposição, por sua vez, passará a falar em “golpe”. É isto, aliás, que o vice-presidente Temer já disse sobre a proposta de eleições gerais. Mas não é: estamos falando de pressão popular para que o Congresso aprove uma emenda constitucional encurtando os atuais mandatos e chamando eleições, bem como uma constituinte exclusiva para a reforma política. De todo modo, já estamos numa situação de excepcionalidade que foi criada pelo impeachment, então agora a discussão saiu do campo da lei para a política, ou seja, a correlação de forças. Exigir eleições gerais não é golpe; no máximo, é contragolpe.

IHU On-Line – Mas a demanda por eleições gerais teria condições de passar? E quais seriam as alternativas numa eventual nova eleição?

Rodrigo Nunes – Note-se que estou discutindo eleições gerais como possibilidade de mobilização social, não como alternativa. Na pior das hipóteses, uma campanha massiva não conseguiria provocar eleições gerais, mas poria o governo Temer na defensiva e escancararia o problema da representação. Ou haveria eleições gerais e o resultado seria ruim, mas pelo menos seria escolhido pela população.

Na verdade, penso o futuro próximo mais em termos de luta defensiva, porque não vejo alternativas satisfatórias no horizonte imediato. Nem poderia ser diferente: se há uma crise de representação, é porque precisamos urgentemente de uma reforma do sistema político e de uma renovação de seus quadros. Isto não se resolverá de uma hora para outra.

Mais que isso. Se nenhuma alternativa disponível parece boa, não é somente porque faltam qualidades intrínsecas aos partidos e políticos existentes. É, sobretudo, porque falta força da sociedade organizada relativamente a eles. Há quem fale hoje, por analogia com o Podemos espanhol, em “partido-movimento”. Só que para termos um partido-movimento no Brasil, faltam hoje duas condições essenciais: ter um movimento, e que ele seja suficientemente forte para manter os partidos sob controle. O próprio PT foi, um dia, um partido-movimento, mas o controle de sua base sobre as lideranças hoje praticamente inexiste. É preciso voltar a ter bases fortes para mudar este quadro.

Por outro lado, justamente porque os tempos que vêm aí são de luta defensiva, parece-me que não se pode abrir mão nem da construção de narrativas mais amplas, nem da dimensão representativa por completo. É preciso retornar à organização desde baixo, mas sem deixar de pensar para além da pluralidade de intervenções locais e sem deixar de cultivar interlocutores de confiança no sistema político.

Eleições gerais e representação

Em relação ao primeiro ponto, diria que uma campanha por eleições gerais pode ser uma plataforma para começar a formar um novo sujeito coletivo, um projeto pós-PT. Por mais que o momento seja de fragmentação, não penso que se deva deixar de tentar constituir consenso em torno de algumas palavras de ordem mais amplas. Por exemplo: que a crise seja paga pelos de cima (não ao ajuste fiscal regressivo, não à perda de direitos, por medidas redistributivas, como a taxação progressiva e o imposto sobre grandes fortunas); constituinte exclusiva para a reforma política (e um debate para pensar qual reforma se deseja); apuração e punição, sem seletividade, de toda corrupção; por um Brasil onde caibam muitos Brasis (pela igualdade de direitos, pelo respeito aos territórios indígenas, contra o racismo, o sexismo, a homofobia etc.). Consenso não apenas na esquerda, digo, mas na sociedade em geral. Acredito que estas mensagens podem ter bem mais ressonância do que se imagina, caso se saiba comunicá-las.

Quanto ao segundo ponto, da relação com a representação, vamos entrar num período de transição. O PT envelheceu, se desvirtuou, se exauriu; o declínio de sua hegemonia como interlocutor político das pressões sociais só tende a crescer. Isto é ruim, por um lado, porque durante um tempo elas ficarão politicamente sub-representadas. Mas é bom, por outro, porque oferece a oportunidade de repensar o modo como esta relação deve se dar.

Força social

Se a questão central é a força dos movimentos relativamente aos partidos, a capacidade dos primeiros de manter os segundos sob controle, fica claro porque a relação monogâmica com o PT tornou-se deletéria. Nos EUA se descreve a lógica dos democratas centristas, como os Clinton, como ‘they have nowhere to go’: eles se deslocam continuamente à direita porque calculam que a base social do partido não tem outra opção senão votar neles. Que frase descreveria melhor a relação que os mandatos de Dilma tiveram com a base histórica do PT, para nem falar dos indígenas ou de junho de 2013?

Os próximos tempos serão, acredito, de “promiscuidade virtuosa” entre movimentos e partidos. Ninguém comprará mais um pacote fechado; as negociações acontecerão pontualmente, tratando o representante como uma parte num contrato com os representados, não alguém a quem se deve gratidão. A monogamia acabou. E isto passará pela construção de novos quadros tanto dentro dos movimentos quanto dentro do sistema representativo, num processo que tende a se mover da escala mais local para a mais geral. Os primeiros sinais disto já devem aparecer nas próximas eleições municipais. Sou bastante simpático à ideia de um novo municipalismo de grupos como o Cidade que Queremos, de Belo Horizonte.

É quase certo que entraremos num período de reorganização do sistema partidário brasileiro. Já para a esquerda, este processo é inevitável: a reorganização deve ser profunda e tende a ser longa. É justamente por isso que não se deve desesperar: buscar atalhos só faz retardar o processo. Se a caminhada é longa, mas necessária, o melhor a fazer é começar de uma vez. Ao mesmo tempo, não se deve ter medo de experimentar – onde “experimentar” não quer dizer “fazer qualquer coisa”, mas “trabalhar com hipóteses”: desenvolvê-las, testá-las, corrigi-las, refiná-las. Porque estes processos nunca são lineares, e aquilo que hoje pode parecer levar uma eternidade, amanhã pode dar um salto inesperado. É fazer o luto daquilo que se perdeu e seguir trabalhando.

“Os próximos tempos serão de “promiscuidade virtuosa” entre movimentos e partidos”

IHU On-Line – Será possível conciliar o luto e a organização?

Rodrigo Nunes – É absolutamente essencial fazer o luto do projeto petista para seguir em frente. Neste sentido também o impeachment é ruim, porque retarda este processo. Para sobreviver em meio a uma crise econômica e política, o governo Dilma teria de continuar fazendo concessões cada vez maiores; o ônus de uma série de medidas impopulares cairia exclusivamente em seus ombros. Agora, o PT não apenas aparece como vítima de uma injustiça ou ilegalidade, como poderá opor-se a tudo aquilo que provavelmente faria, caso continuasse no poder.

“Fazer o luto” é entender que não vamos voltar a 2002, que o pacto lulista não é mais possível. É pensar daqui para frente, com as condições e forças que há. É fazer a crítica dos erros cometidos, mas sem antipetismo, que é apenas o simétrico inverso da miopia governista, nem ressentimento, que é a incapacidade de definir-se para além da negação do que se critica. É acabar com fantasias do tipo “guinada à esquerda”, “o Lula voltou” etc. É repensar propósitos, práticas organizativas, táticas de luta, sem deixar de aprender com o que se fez, mas sem apegar-se a identidades passadas.

É, em geral, não ter medo de abandonar o passado, nem permitir que os traumas nos impeçam de instituir um futuro. É construir a própria força para desenvolver outro tipo de relação, soberana, com os representantes. Ninguém melhor que as periferias brasileiras, que vivem o desencanto desde sempre, para dar a definição desta condição: é “nós por nós”, pensando sempre em como fazer para ampliar este “nós”.

“Luto”, para Freud, não é o contrário de “alegria”, mas de “melancolia”. E o que é a melancolia? É a incapacidade de abrir mão do objeto perdido; é preferir padecer a abandonar aquilo que se amou.

Talvez a grande metáfora do luto na cultura brasileira seja uma imagem da final da Copa de 1958. O Brasil sofre um gol logo no início; Didi vai buscar a bola, bota-a debaixo do braço, caminha com toda calma para o centro do campo, joga-a no chão e recomeça a partida. Luto é isto.

Já o colapso emocional da seleção brasileira após o primeiro gol da Alemanha no 7 a 1 – aquilo é melancolia. E se não sairmos da melancolia e voltarmos a organizar, o que vem por aí tende a ser um 7 a 1 ainda pior.

Vai ter luto e luta, ou não vai ter nada.

IHU – Unisinos

Instituto Humanitas Unisinos

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