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sexta-feira, 22 novembro, 2024

OS MALES DO BRASIL: A MENTIRA E A ESCRAVIDÃO

Pedro Augusto Pinho*

A enorme dificuldade em defender o consórcio dos interesses, reunidos para conquistar o Governo do Brasil, e a absoluta ausência de planos, projetos, programas que possibilitem solucionar os verdadeiros problemas nacionais, obrigam esta diversificada aglomeração, o “Governo Bolsonaro”, a se apegar nos discursos eleitoreiros e a construir fantasmas, perseguir inimigos que nem existem.

Vamos tratar de  verdadeiros e grandes problemas nacionais. Não me valerei dos antagonistas à sociedade ocidental ou capitalista, nem às ideologias do passado, mas trarei, de início, o arguto analista, de boa família, que em 1883 fez o diagnóstico, ainda válido, de nosso maior mal: a escravidão. Refiro-me a Joaquim Nabuco.

Usarei a edição de 2011, da Editora Universidade de Brasília, que mantém as características formais da primeira versão, impressa na Inglaterra, da obra de Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo (1849-1910), “O Abolicionismo”.

No Prefácio desta obra, escreve Nabuco: “o Abolicionismo devia ter precedência às demais reformas. De fato, todas as outras dependem dessa, que é propriamente a substituição dos alicerces de nossa pátria”.

Encima o Capítulo I, “O que é o Abolicionismo? A Obra do Presente e a do Futuro”, a citação de Evaristo da Veiga (1799-1837), autor da letra do nosso Hino à Independência:

“Uma pátria respeitada, não tanto pela grandeza do seu território como pela união de seus filhos; não tanto pelas leis escritas, como pela convicção da honestidade e justiça do seu governo; não tanto pelas instituição deste ou daquele molde, como pela prova real de que estas instituições favorecem ou, quando menos, não contrariam a liberdade e desenvolvimento da nação”.

Nabuco analisa este epígrafe tanto na farsa do universo formal como na internalização da violência nas relações sociais, “exercitando dentro das porteiras de suas fazendas, sobre centenas de entes rebaixados da dignidade de pessoa, um poder sem nenhuma lei que o regule, nenhuma opinião que o fiscaliza, discricionário, suspeitoso, irresponsável: o que mais é preciso para qualificar segundo uma frase conhecida, essa audácia com que os nossos partidos assumem os grandes nomes que usam – de estelionato político”.

Quanto a farsa legislativa e jurídica, Fabrício Maciel, analisando esta obra de Nabuco, ressalta que “as medidas reais do trono construíram uma mentira nacional, um artifício fraudulento para enganar o mundo, os brasileiros e o que é mais triste ainda, os próprios escravos” (O Brasil-Nação como ideologia, Annablume, SP, 2007).

Se algum dos meus caros leitores pensar que trato de temas superados, recordaria as reações contra o direito dos empregados domésticos serem tratados como quaisquer trabalhadores, a virulenta oposição às cotas raciais, no País onde negros e mestiços constituem mais da metade da população mas não tem a mesma representatividade nas escolas, nas funções públicas e, muito menos ainda, nos poderes formais da Nação.

E como reação aos pequenos avanços ocorridos neste século, são apresentadas as novas formas de escravidão: as uberizações, as pejotizações, a reforma da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o crescente trabalho informal, fonte de extorsões e chantagens por policiais, fiscais e milicianos, principalmente quando se trata dos afrodescendentes. Defrontamo-nos com revogados direitos trabalhistas e ameaçados direitos, já bastante reduzidos, às aposentadorias e pensões.

A escravidão, desde a nossa Independência formal, em via de completar 200 anos, foi e é o maior entrave para construção do Estado Nacional Brasileiro. Não se constrói um País livre povoado por escravos.

Algumas vezes, estudando aspectos históricos dos Estados Unidos da América (EUA) me pergunto: como se desenvolveriam os EUA, se os Confederados tivessem vencido a Guerra da Secessão ou Guerra Civil Estadunidense? Seriam outro enorme Brasil ou se dividiriam num EUA, ao norte, e num Brasil, ao sul?

E, por favor, não me venham com arcaicas e inadequadas argumentações da escravidão na antiguidade, em outros continentes, porque não saberiam responder sobre elas. Prendem-se apenas a um nome. A escravidão no mundo capitalista, pós medieval, tem características inexistentes nas sociedades anteriores ou das que permaneceram naquele estágio civilizatório em plena época moderna.

Sem cidadania, que é incompatível com a escravidão, não se pode tratar – e tanto Nabuco quanto José Bonifácio de Andrade e Silva (Projetos para o Brasil, Companhia das Letras, SP, 2005) sabiam disso – da construção do Estado Nacional.

Como tantas vezes verificamos, as sociedades – e não só a brasileira – desenvolvem um modelo institucional distinto das práticas consagradas na vida cotidiana. Fred W. Riggs (1917-2008), administrador estadunidense, apresentou a teoria da sociedade prismática (Administração nos Países em Desenvolvimento, FGV, RJ, 1968). As sociedades partiriam dos mais estreitos laços entre seus membros para chegarem às relações impessoais, anônimas, dos códigos identificadores. Neste caminho, haveria um momento onde as prescrições sociais não seriam acatadas. O exemplo clássico desta situação intermediária é a tabuleta “Proibido Pisar Na Grama” junto à trilha construída pelos passos dos transeuntes habituais, bem no meio do canteiro.

Nabuco chama a atenção para a pátria que, para cada um de nós, é uma realidade diferente.

“O Abolicionismo, porém, não se contenta em ser o advogado ex-officio da porção da raça negra ainda escravizada; não reduz a sua missão a promover e conseguir – no mais breve prazo possível – o resgate dos escravos e dos ingênuos. Essa obra de reparação, vergonha ou arrependimento, como a queiram chamar – da emancipação dos atuais escravos e seus filhos é apenas a tarefa imediata do Abolicionismo. Além dessa há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regime que, há três séculos, é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores”.

E, quase meio século depois de “O Abolicionismo”, quem é considerado um fundador da industrialização brasileira, Roberto Cochrane Simonsen (1889-1948) escreve:

“A face importante da questão (abolicionista) era, porém, o valor do capital representado pela escravaria. Em 1888, deveria esse investimento atingir cerca de 700 mil contos de réis. Em muitas propriedades agrícolas, o valor dos escravos superava o das terras e sua benfeitorias”. Adiante: “uma justa indenização àqueles que, apoiados na lei, haviam invertido seus capitais em escravos” (seria necessária) (Evolução Industrial do Brasil e outros estudos, Brasiliana, v.349, Editora Nacional e Editora da USP, SP, 1973).

Volto a Nabuco, na síntese de Fabrício Maciel (obra citada):

“O laço moral dos cidadãos afrouxou-se, quebrando assim o laço moral dos homens. Os princípios, também como as ideias, foram violados por uma aplicação exclusiva, que importava o privilégio de uma raça: as leis, que nada mais são do que o encadeamento lógico dos princípios, foram totalmente esquecidas, e nesse tipo de sociedade, sem ideias, sem princípios, sem leis, o maior desequilíbrio manifestou-se entre as várias camadas, e a ordem, a segurança, a riqueza, a produção e as atividades públicas ficaram ancoradas em alicerces de areia, numa inclinação altamente perigosa”.

As mentiras começam a se formar em interpretações parciais, quando não inteiramente fraudulentas dos fatos, quer políticos, sociais, econômicos, culturais, religiosos etc.

Se não me visse amparado pela obra deste profundo analista de nossa sociedade, o mestre Jessé Souza, não teria a coragem de contestar a afirmativa de Gilberto de Mello Freyre (1900-1987) que a nação brasileira se formou na sociedade patriarcal.

Freyre considera a família, desde o século XVI, como o maior fator da unidade, da “força social que se desdobra em política”, estruturante para a formação social brasileira.

Desconhecendo assim que esta família patriarcal da Casa Grande só pode existir para atender ao modelo agrário exportador dos Impérios Europeus. Que nas óbvias diferenças de clima, terra, produtos, se propagou por todas as Américas. Que está presente na mineração e na produção agrícola da América Espanhola, nos campos da Luisiana e do sul estadunidense.

A ideia de que o microcosmo familiar explica as instituições nacionais constitui fonte de erros como o de comparar a gestão econômica da Nação com a da casa de cada um, da fraqueza e vícios pessoais serem razão da corrupção pública e haver igualdade de oportunidades na sociedade das gritantes diferenças como a brasileira.

Gilberto Freyre (Casa-Grande & Senzala, Imprensa Oficial, Recife, 1966/1970, 2 volumes) atribui à oligarquia e ao nepotismo o “mando político” aqui desenvolvido.

O pensamento conservador de Gilberto Freyre se desenvolve com novos detalhes em obras como “Os donos do poder”, de Raimundo Faoro, e “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda.

Por que nem oposição existe hoje no Brasil? De um modo ou de outro, porque todos se submeteram a uma compreensão da realidade que apaga a profunda e nefasta escravidão multissecular, que tenta desenhar uma sociedade inexistente, que, na feliz expressão de Jessé Souza, não se vê no espelho.

Para fechar estas reflexões sobre a escravidão, farei um comentário sobre o livro que me foi sugerido pelo brilhante intelectual, nacionalista, Coronel Gelio Fregapani: “Os Donos da Terra”, de Mauro F. P. Porto, Bibliex, RJ, 2014. Construído sobre documentos que chegaram ao autor, escrito na forma de um romance histórico do sul do Brasil, nos séculos XVII/XVIII, ressalta três aspectos: o uso de escravos como modo natural de enriquecimento, a importância da territorialidade e o sentimento nativista, berço do nacionalismo. E se nota a diferença entre a escravidão dos índios e dos negros. Estes últimos tratados como objetos, sem que nenhum sentimento lhes fosse atribuído.

Repito Nabuco: a luta contra escravidão antecede todas as demais. Precisamos estar atentos ao que escreve o historiador Ronaldo Vainfas ao comparar a escravidão nos EUA e no Brasil: lá a Ku Klux Klan quase virou um partido (Racismo à moda americana, in “A Era da Escravidão”, organizado por Luciano Figueiredo, Editora Sabin, RJ, 2009).

Faz 481 anos que chegaram os primeiros escravos africanos no Brasil, uma vergonha permanente para todos nós.

Nossa sociedade escravista, com ódio e medo dos pretos, se afunda nas farsas que constrói para se justificar, na indolência do rentismo que não deixa construir o estado industrial, e, ao fim, em um arremedo de Estado que desaparece como País soberano diante dos Impérios, sejam nacionais ou ideológicos.

*Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado

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