Moon of Alabama
Quando os EUA foram confrontados com uma insurgência no Iraque, não viram nenhum erro em suas próprias ações: todas as culpas seriam de Síria e Irã. Por causa disso (?!) decidiram atacar também esses países. Como Seymour Hersh noticiou em 2007:
“Para minar o Irã, que é predominantemente xiita, o governo Bush decidiu reconfigurar as próprias prioridades no Oriente Médio. No Líbano, os EUA de Bush cooperaram com o governo da Arábia Saudita, que é sunita, em operações clandestinas para enfraquecer o Hezbollah, organização xiita apoiada pelo Irã.Os EUA também participaram de operações clandestinas contra o Irã e a Síria, aliada do Irã. Um dos subprodutos dessas atividades foi o crescimento de grupos extremistas sunitas que têm uma visão militante do Islã, são hostis aos EUA e simpáticos à Al Qaeda.”
Quatro anos depois, os EUA usaram os militantes sunitas que haviam criado, para atacar primeiro a Líbia, depois a Síria. Com o apoio dos EUA, os militantes destruíram o estado líbio independente governado por Ghaddafi. Hoje, o país está mergulhado em caos profundo. Na Síria, os militantes sunitas, com apoio clandestino dos EUA e aliados, iniciaram e mantiveram uma guerra de seis anos, para derrubar o governo [fracassada]. Muitos deles em seguida integraram-se ao Estado Islâmico e à al-Qaeda, descendentes Takfiri* do mesmo programa dos EUA e do dinheiro saudita que (pode-se dizer) degenerou. Esses grupos não limitaram seus ataques, como os EUA desejavam que fizessem, aos inimigos dos EAU: cometeram vários ataques em escala maior contra países aliados dos EUA. Atualmente, os próprios grupos que os EUA inventaram são inimigos dos EUA.
O projeto de criar uma “força árabe sunita” controlável para destruir a Síria fracassou. O Pentágono fez outras tentativas, gastou dezenas de milhões de dólares para treinar uma nova força sunita árabe na Síria para atacar o governo sírio e também os Takfiris. No instante em que esses novos grupos entraram na Síria, uniram-se aos Takfiris e entregaram a eles as armas que o exército dos EUA lhes dera.
Agora, os EUA estão-se organizando com Rússia e forças curdas locais na Síria para destruir em campo os grupos Takfiri. Os curdos praticam várias religiões e denominações com traços predominantemente seculares. Esse plano fez algum progresso, embora um verdadeiro ataque a Raqqa, atual centro do Estado Islâmico, deva demorar ainda semanas, para acontecer. O governo sírio está vencendo na parte da luta que lhe cabe, no oeste do país.
Mas nada disso basta aos neoconservadores norte-americanos.
A missão deles é fazer avançar os planos sionistas, criando sempre mais caosno Oriente Médio. Parceiro desses todos e fonte de dinheiro é a Arábia Saudita sunita wahhabista. Tendo conseguido destruir o Iraque, várias ‘avançadas’ fracassadas, além do ataque à Síria, os neoconservadores norte-americanos e os sionistas não podem admitir que o governo sírio sobreviva à guerra.
Assim sendo, já se puseram a agir para criar uma nova (a terceira, até aqui!) força árabe-sunita, para levar adiante o que prescrevia o plano original de guerra.
Frederick e Kimberly Kagan, luminares da família neoconservadora, iniciaram nova campanha nas páginas que os neoconservadores já colonizaram completamente do Wall Street Journal: “Uma nova estratégia contra ISIS e al-Qaeda – EUA confiaram demais em xiitas e curdos. É hora de cultivar parceiros árabes sunitas” (ing.).
A família Kagan – outros membros afamados são Robert Kagan e Victoria Nuland – também foi ativíssima na instigação para a guerra de agressão ao Iraque. Na foto, veem-se os dois em 2008 flanando alegremente [protegidos por um batalhão de seguranças] pelas ruas de Basra, Iraque, ocupada, gozando a destruição que criaram.
A coluna publicada no WSJ é versão reduzida de um “estudo” redigido pelothink-tank que a família Kagan administra para recolher dinheiro.
Em resumo, diz o seguinte: Os EUA devem abandonar os curdos e não cooperar com forças russas, sírias ou iranianas. Devem constituir outra insurgência árabe sunita como seus procuradores locais na Síria para combater o ISIS e a al-Qaeda e também o governo sírio. Os primeiros passos da ‘proposta’ já são fruto da mais absurda ficção:
“Os EUA e parceiros aceitáveis tomam e cercam uma base no sudeste da Síria, como Abu Kamal, e criam uma ‘zona segura’ de facto. Em seguida, recrutam, treinam, equipam e associam-se a forças árabes sunitas locais anti-ISIS, para conduzir uma ofensiva anti-ISIS. Essa força árabe sunita independente forma a base de um movimento para destruir ISIS e al Qaeda no Iraque e Síria por muitos anos. Construir um parceiro árabe sunita anti-ISIS tem de ser o fator que determine o ritmo do avanço ao longo do Vale do Rio Eufrates, VRE [ing.Euphrates River Valley (ERV)]. Forças norte-americanas devem combater ao lado de seus parceiros para reduzir o déficit de confiança entre os EUA e potenciais aliados sunitas. Parceiros potenciais não podem apoiar jihadistas salafistas, procuradores do Irã ou o separatismo curdo.”
É o que os EUA vêm tentando fazer desde 2006 – por meios clandestinos. Essas ‘forças’ são, precisamente, as que, no processo, converteram-se em al-Qaeda/ISIS.
Na sequência, o Pentágono tentou a mesma ideia por meios militares. A tal força ‘à distância’ correu na direção do inimigo o mais depressa que pôde. Deu no que temos hoje. Então… os EUA vão tentar novamente.
O enredo de ficção prossegue:
Próximas fases
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Os EUA lançam operações de limpeza pelo Vale do Rio Eufrates em direção a Raqqa, usando forças dos EUA e o novo parceiro árabe sunita em Abu Kamal e na província Anbar, no Iraque.
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Os EUA negociam um acordo de paz entre Turquia e as Forças de Defesa do Povo (YPG) dos curdos sírios, focado na linha de contato na província Aleppo.
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Os EUA implantam uma zona aérea de exclusão na província Dera, mostrando o compromisso dos EUA com minorar os sofrimentos das populações sob controle de jihadistas e facilitando uma cessação local de hostilidades com a Rússia e entre forças pró-Assad e anti-Assad (essas apoiadas pelos EUA). Os EUA devem também ajudar forças parceiras em Dera’a a destruir ISIS e al Qaeda, o que ajudar a facilitar um acordo negociado para a guerra síria. Os EUA devem executar esse passo depois da primeira fase e coincidindo com as operações de limpeza no sudoeste da Síria.
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Os EUA devem tentar costurar a nova força e os combatentes apoiados pelos EUA para criar um único parceiro que possa fazer a segurança de terreno reconquistado dos jihadistas; defender contra ataques de pro-Assad, e manter um acordo contra o regime de Assad.
Essas operações de manutenção fixam condições que favorecem interesses mais amplos dos EUA na Síria, mas não significa que tenham alcançado aqueles interesses. Serão necessárias fases subsequentes, e é preciso que haja significativo componente contra-Irã no Iraque e na Síria.”
Não consigo imaginar quantos litros de Kool-aid alguém tem de beber*para produzir e divulgar tamanha quantidade de tamanho nonsense.
Comecemos com as tais tribos imaginárias “no sudeste da Síria”. O deserto no sudeste da Síria é vazio, com mínimos recursos (exceto algum petróleo) e pouquíssimos habitantes. São grupos realmente pequenos, cujos líderes tribais já não têm muita autoridade. Os membros das tribos, em sua maioria vivem nas cidades. Muitos são soldados do Exército Árabe Sírio ou de grupos inimigos desses soldados. Alguns se alistaram no ISIS, outros combateram contra ele e foram terrivelmente atingidos, com centenas de baixas. A maior parte dessas tribos sempre viveu em harmonia com o governo sírio e muito apreciaria se Assad voltasse a governar a área tribal. A maior parte das tribos não têm qualquer diferença de natureza sectária com Damasco. Não têm nem meios, nem desejo de lutar contra o estado sírio.
O presidente Erdogan da Turquia está atualmente tentando contratar as mesmas tribos para combaterem contra os curdos sírios. Fracassará também nessa empreitada.
Os Kagans querem que sua tal nova grande força também combata contra a al-Qaeda. Mas a al-Qaeda está no noroeste da Síria (e ainda é apoiada pela Turquia). Os Kagans enfatizam o uso de forças locais. O que tribos do deserto no sudeste teriam de “locais”… para o povo em Idlib?
O real objetivo dos Kagans está, claro, nas partes finais do seu plano, que destaquei acima. Querem usar essas “tribos árabes sunitas” para fazer mais uma tentativa para destruir o estado sírio , para, depois, atacar a “ponte” iraniana que conecta com o Hizbullah no Líbano.
Felizmente, os Kagans estão pelo menos seis meses atrasado em relaçãoàs realidades em campo na Síria. O Pentágono rirá de ideias que incluam “tribos árabes sunitas”. Os militares dos EUA tentaram retomar Raqqa do ISIS com a ajuda dos curdos e em coordenação com forças do governo sírio. As forças do governo sírio também destruirão a al-Qaeda em Idlib.
A chance de que Trump venha a abraçar esses planos neoconservadores é praticamente zero. Mas… sabe-se lá? O pessoal que paga os Kagans também gasta montanhas de dinheiro para “fazer lobby” (i.e. subornar) o establishment em Washington. Certamente essa gente espera que ainda haja alguma chance de que suas ideias rastejem como vermes para dentro dos cérebros da Casa Branca.
ATUALIZAÇÃO:
Sam Heller oferece alguns comentários críticos sobre as sandices dos Kagans. Reuni os seus tuítos sobre a questão em “Má Ideia – Sam Heller (@AbuJamajem) sobre o documento dos Kagans sobre a Síria” (ing.)[Fim da Atualização].
* Takfiri s [árabe تكفيري / takfīrī] é o muçulmano que acusa de apostasia outro muçulmano ou o crente de outra fé abraâmica. A acusação é designada pela palavratakfir, derivada da palavra kafir (não crente); ocorre takfir quando “alguém que seja ou apresente-se como muçulmano é declarado impuro” [NTs, da Wikipedia].
* Kool-Aid é o refrigerante que foi servido envenenado aos fanáticos seguidores de Jim Jones, no suicídio coletivo de várias centenas de membros da seita, em 1978. Ao que se sabe, não foram obrigados a beber: foram convidados e aceitaram o convite. O artigo citado elabora sobre essa ideia e sobre a expressão que já está incorporada ao inglês dos EUA [lit. “Beber o Kool-Aid”], no sentido de perseverar em trilha ou projeto sabidamente condenado ao fracasso ou à morte [NTs].