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sexta-feira, 19 abril, 2024

35 anos sem Alberto Cavalcanti

 

Cavalcanti nasceu há 120 anos e morreu há 35. Pouca gente está se lembrando disso, mas o jornalista Sergio Caldieri, devotado cultor de sua memória, escreveu esse texto para o nosso portal.

por Sergio Caldieri*

O carioca Alberto Cavalcanti pode ser considerado um dos mais completos cineastas de todos os tempos. Ele morreu aos 85 anos, em 23 de agosto de 1982, em Paris. Trabalhou durante 60 anos no cinema, realizando 117 filmes (como produtor, diretor, roteirista, cenógrafo, montador, supervisor e ator), mais três direções teatrais e três especiais para TV.
Aos 17 anos, na Faculdade de Direito, Cavalcanti recebeu nota baixa em uma prova em que enalteceu Auguste Comte. Seu pai, Manuel Cavalcanti, era militar, positivista, ex-aluno de Benjamim Constant e professor de Matemática na Escola Militar. Alberto foi surpreeendido pelo professor enquanto o imitava usando dentadura na sala de aula. O caso gerou uma rebelião de alunos e culminou com a expulsão de Cavalcanti.
Como ele gostava muito de desenhar, seu pai mandou-o para a Suíça, em 1913, com o objetivo de estudar Belas Artes em Freiburg, e depois para a faculdade de Arquitetura, em Genebra. Após a sua formatura, ele foi trabalhar no escritório de Alfredo Agache, em Paris. Agache foi o remodelador do Centro do Rio de Janeiro, após o desmonte do Morro do Castelo. Cavalcanti foi considerado o melhor projetista do escritório de Agache. Voltou para o Rio e chegou a montar uma loja de produtos franceses na Rua do Ouvidor, mas não deu certo.
Cavalcanti conseguiu um emprego no Consulado do Brasil, em Liverpool, na Inglaterra. Nesta época, começou a se corresponder com o diretor de cinema Marcel L`Herbier, enviando seus desenhos para cenários de filmes. As duas filhas do cônsul Dario Freire queriam estudar em Paris e pediram a Cavalcanti para acompanhá-las e orientá-las nos seus estudos na capital francesa.
Era tudo com que Cavalcanti sonhava, pois procurou L´Herbier e, em 1922, começou a trabalhar como cenógrafo em quatro filmes dirigidos, produzidos ou cenografados por ele: Résurretion, L´Inondation, L´Inhumaine (22), La Galerie des Montres e Feu Mathias Pascal (24), este baseado no romance de Luigi Pirandello. Em 1926, Cavalcanti dirigiu, roteirizou e montou o seu primeiro filme, Le Train Sans Yeux (O trem sem olhos), baseado no romance de Louis Delluc.
Neste mesmo ano de 1926, Cavalcanti fez a sua primeira obra-prima, o documentário Rien que les Heures (Nada além das horas), de 33min, mudo em preto e branco, que incomodou muitas autoridades da época. O filme mostrava os contrastes da vida mundana de Paris, o pobre e o rico, o feio e  o belo, através de um drama de quatro personagens: uma velha mendiga, uma vendedora de flores, uma prostituta e seu rufião, que culmina com a morte da mendiga na sarjeta e o assassinato da florista. Este filme foi censurado, pois não era um belo cartão postal da cidade-luz, mostrando mendigos comendo na rua, ratos e lixos. Foi exibido com tarjas pretas e liberado pela censura somente em 1929. O filme foi considerado o melhor documento social, marcando o início do realismo cinematográfico, e exerceu notada influência na obra do cineasta russo Dziga Vertov, em Kino Glaz, e na do alemão Walter Ruttman, em Berlim, Sinfonia da uma Cidade, de 1927. O sucesso do filme foi o visto de entrada de Cavalcanti no cinema inglês. O cineasta Akira Kurosawa disse que viu o filme, em 1929, e ficou muito impressionado.
Cavalcanti já começava a incomodar com seus filmes mais realistas mostrando os problemas sociais dos seres humanos. Quando foi para Inglaterra trabalhar no departamento de cinema dos Correios-GPO, fez seus melhores documentários, retratando os trabalhadores da minas de carvão (Coalface, 1935), do trem correio noturno (Night Mail, 1936) e dos pescadores do mar do norte (North Sea, 1938). Seu filme Pett and Pott é considerado o que melhor retratou os costumes do povo inglês na época.
Os documentários de Alberto Cavalcanti são tidos como relíquias na Cinemateca da Inglaterra. Night Mail foi realizado com texto do poeta W.H. Auden, um poema associado com as cenas das rodas de um trem em movimento; em We Live in Two Worlds, o roteiro foi feito pelo poeta J.B. Priestley; em BBC: The Voice of  Britain, Cavalcanti entrevistou os escritores G.K. Chesterton, Bernard Shaw, J.B. Priestley e George Lansbury; em Yellow Caesar, uma sátira ao ditador Mussolini, ele contou com um roteiro de Michael Foot, que recentemente foi líder de esquerda do Partido Trabalhista e da oposição a Margaret Thatcher.
O maior compositor de música clássica da Inglaterra, Benjamin Britten, fez cinco trilhas sonoras para filmes dirigidos ou produzidos por Cavalcanti: Coalface e Night Mail, em 1936, The Line to Tschierva Hut e The Saving of Bill Blewitt, em 1937, e The Tocher, em 1939.
O filme A Vida e Aventuras de Nicholas Nickleby, de 1947, com roteiro baseado no romance de Charles Dickens, foi a sua obra mais rentável nos Estados Unidos e geralmente passa na TV na época do Natal. Quando o filho de Jean Renoir, Alain Renoir, foi trabalhar nos estúdios da Califórnia e dar aulas em universidades, visitou em Los Angeles, em 1973, a residência do casal Martin Scorcese e Liza Minelli, quando foi surpreendido ao entrar sala de visitas e ver na parede um cartaz original desse filme. Scorsese disse “esse é um dos seus filmes prediletos”.
Outra obra-prima de Cavalcanti realizada na Inglaterra foi Dead of Night (Na solidão da noite, de 1945), que ele supervisionou e do qual dirigiu dois episódios baseados no universo de H.G. Wells. O mais marcante de todos os episódios foi o último, The Ventriloquist´s Dummy, dirigido por Cavalcanti e estrelado por Michael Redgrave, o pai de Vanessa Redgrave. Este filme é considerado um dos melhores entre os 10 filmes de terror da cinematografia mundial. O boneco de ventríloquo virou uma referência de horror no cinema do gênero e sua história foi refilmada e adaptada diversas vezes. Uma delas foi em 1962, no episódio The Dummy, da série Além da Imaginação (The Twilight Zone, 1959-64), escrito por Rod Serling e estrelado por Cliff Robertson. Um pouco antes, em 1960, a história de Maxwell e Hugo também serviram de referência para Alfred Hitchcock construir a relação do personagem Norman Bates com sua mãe no clássico Psicose. Quase todos os filmes posteriores com episódios, como No Limite da Realidade, de 1983, e vários seriados da TV baseados no suspense ou no terror, foram tributários de algumas imagens do original de Cavalcanti.
Outro episódio marcante na vida de Alberto Cavalcanti foi o seu encontro com o dramaturgo Bertolt Brecht, em seu escritório, da sua casa nos fundos de um sobrado de mais 200 anos, em Berlim Oriental, no número 125 da Chausseestrasse. Cavalcanti foi mostrar uma adptação da peça Sr. Puntilla e seu Criado Matti, que Brecht gostou e aprovou. Cavalcanti contou certa vez que ficou emocionado quando Brecht pegou-o pelo braço, o conduziu para uma janela com vista para um cemitério e apontou os túmulos dos filósofos Hegel e Fichte. Hoje Brecht está enterrado ao lado de Hegel e Fichte.
Em 2017, Alberto Cavalcanti completaria 120 anos no último 6 de fevereiro.  Em 23 de agosto próximo estará completando 35 anos da sua morte. Não houve nenhuma comemoração e nem lembrança. Cavalcanti disse uma vez que não queria seu nome em uma rua do Rio de Janeiro. Preferia que colocassem numa escola. O ex-vereador Mauricio Azedo o “desobedeceu” atribuindo seu nome a uma rua do bairro do Recreio dos Bandeirantes. Mas pelo menos um dos seus sonhos foi realizado quando um CIEP do município de Campo Grande recebeu o nome de Alberto Cavalcanti. Neste CIEP, 1500 crianças fazem pesquisas e trabalhos sobre o carioca de Botafogo que se tornou um dos mais famosos e consagrados diretores do cinema mundial.
*Sergio Caldieri é jornalista, escritor e diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro-SJPERJ.      

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