20.5 C
Brasília
sexta-feira, 19 abril, 2024

Um capitalismo de vigilância

Por Shoshana Zuboff, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

Aquele dia de julho de 2016 foi particularmente difícil para David. Ele passara longas horas ouvindo testemunhas de litígios relacionados a seguros em um tribunal empoeirado de Nova Jersey, onde, na véspera, uma queda de energia havia danificado o sistema de ar-condicionado. Finalmente em casa, imergiu no ar fresco como quem mergulha no mar. Pela primeira vez no dia, respirou fundo, pegou uma bebida e subiu para tomar um longo banho. A campainha tocou no exato momento em que a água começou a correr sobre seus músculos doloridos. Interrompendo o banho, vestiu uma camiseta e uma bermuda e desceu as escadas correndo. Ao abrir a porta, viu-se diante de dois adolescentes sacudindo seus aparelhos de celular bem na sua cara.

“– Oi! Você tem um Pokémon no jardim. Ele é nosso! Podemos ir pegar?

– Um o quê?”

Naquela noite, David foi perturbado mais quatro vezes por estranhos ansiosos para irem ao seu jardim e furiosos por serem dispensados. Com o celular na mão, gritavam e vasculhavam a casa com os olhos, em busca das famosas criaturas de “realidade aumentada”. Vista através de suas telas, aquela fatia do mundo era um campo de Pokémons. O jogo apropriou-se da casa e do mundo ao redor dela. Trata-se de uma nova pretensão comercial: uma declaração de expropriação com fins lucrativos que transforma a realidade em uma extensão de espaços vazios prontos para serem explorados em benefício de outros. “Quanto tempo isso vai durar?”, perguntava-se David. “Com que direito? Para quem eu preciso ligar para acabar com isso?”

Nem ele nem os jogadores pendurados em sua campainha suspeitavam que todos haviam sido reunidos naquela noite pelo capitalismo de vigilância, uma lógica ousada e inédita…

Em 1999, apesar do esplendor do novo mundo do Google, com suas páginas eletrônicas descobertas com apenas um clique, suas capacidades informacionais crescentes e seus investidores glamorosos, a multinacional não tinha uma estratégia para multiplicar o dinheiro dos investidores.

Os usuários trouxeram a matéria-prima na forma de dados comportamentais, coletados para melhorar a velocidade, a precisão e a relevância dos resultados, além de subsidiar a concepção de produtos auxiliares, como a tradução. Por causa desse equilíbrio de poder, teria sido financeiramente arriscado, e até contraproducente, tornar o motor de busca um serviço pago pelos usuários. A venda de resultados de busca também criaria um precedente perigoso para a multinacional, atribuindo um preço a informações que o robô de indexação do Google já havia coletado sem pagar. Sem aparelhos como o iPod, da Apple, e suas músicas digitais, nada de excedente, nada de produtos para vender, nada de margem e de lucro.

Na época, o Google relegou a publicidade ao segundo plano: a equipe da AdWords, sua agência de publicidade, tinha sete pessoas, a maioria alinhada à antipatia dos fundadores em relação aos anúncios. Mas, em abril de 2000, a famosa “nova economia” entrou brutalmente em recessão e um terremoto financeiro abalou o Jardim do Éden do Vale do Silício. A resposta do Google levaria a uma mudança crucial, transformando a AdWords, o Google, a internet e a própria natureza do capitalismo da informação em um projeto de vigilância tremendamente lucrativo.

A lógica de acumulação que garantiria o sucesso do Google aparece claramente em uma patente registrada em 2003 por três dos melhores cientistas da computação da empresa, intitulada “Gerar informações do usuário para publicidade direcionada”. A invenção, explicam, buscaria “estabelecer as informações dos perfis do usuário e usá-las para a disseminação de anúncios”.1 Em outras palavras, o Google não se contentaria mais em extrair dados comportamentais para melhorar seus serviços. Ele passaria a ler o pensamento dos usuários a fim de fazer os anúncios corresponderem aos seus interesses, que, por sua vez, seriam deduzidos dos traços colaterais do comportamento on-line. A coleta de novos conjuntos de dados, denominada User Profile Information, melhoraria consideravelmente a precisão dessas previsões.

De onde vêm essas informações? Nas palavras de seus inventores, elas “podem ser deduzidas”. Suas novas ferramentas permitem criar perfis por meio da integração e análise dos hábitos de pesquisa de um internauta, dos documentos solicitados e de uma infinidade de outros sinais de comportamento on-line, mesmo quando os usuários não fornecem diretamente essas informações pessoais. O perfil do usuário, previnem os inventores, “pode ser criado (ou atualizado ou expandido) mesmo que nenhuma informação explícita seja fornecida ao sistema”. Assim, eles manifestam sua vontade e sua capacidade de superar quaisquer atritos relativos aos direitos de decisão dos usuários. Os dados comportamentais, cujo valor havia sido “esgotado” do ponto de vista da melhoria da pesquisa, passaria então a constituir a matéria-prima essencial – e de propriedade exclusiva do Google – para a construção de um mercado dinâmico de publicidade on-line. As informações coletadas para outros fins que não a melhoria dos serviços constituíam um excedente. E seria com base nesse excedente comportamental que a jovem empresa alcançaria os lucros sustentados e exponenciais necessários à sua sobrevivência.

A invenção do Google revelou novas possibilidades de deduzir pensamentos, sentimentos, intenções e interesses de indivíduos e grupos, por meio de uma arquitetura de extração automatizada que funciona como um espelho unidirecional, sem se preocupar com a consciência e o consentimento dos envolvidos. Esse imperativo de extração resultou em economias de escala que proporcionariam uma vantagem competitiva única no mundo, em um mercado no qual os prognósticos dos comportamentos individuais representam um valor que se compra e se vende. Mas, sobretudo, o espelho unidirecional simboliza as relações sociais de vigilância particulares baseadas em uma espetacular assimetria de conhecimento e poder.

Tão repentino como ressonante, o sucesso da AdWords levou a uma expansão significativa da lógica da vigilância comercial. Em resposta à crescente demanda dos publicitários por cliques, o Google começou ampliando o modelo para além de seu motor de busca, a fim de transformar toda a internet em um vasto suporte de anúncios direcionados do Google. Nas palavras de Hal Varian, economista-chefe do Google, o gigante californiano queria aplicar suas novas habilidades de “extração e análise” aos conteúdos da mais insignificante página da internet, aos menores gestos dos usuários, recorrendo a técnicas de análise semântica e de inteligência artificial que pudessem extrair sentido de cada um desses elementos. Assim, o Google é capaz de avaliar o conteúdo de uma página e a maneira como os usuários interagem com ela. Essa “publicidade segmentada segundo os focos de interesse”, baseada nos métodos patenteados pelo Google, acabaria sendo chamada de Google AdSense. Em 2004, a subsidiária gerou um volume de negócios diário de US$ 1 milhão, número multiplicado por mais de 25 em 2010.

Todos os ingredientes de um projeto lucrativo estavam reunidos: excedente comportamental, ciência de dados, infraestrutura material, potência de cálculo, sistemas algorítmicos e plataformas automatizadas. Tudo convergindo para gerar uma “relevância” sem precedentes e bilhões em ofertas de publicidade. As taxas de cliques explodiram. Trabalhar no AdWords e no AdSense tornou-se tão importante quanto trabalhar no motor de busca. Uma vez que a relevância era medida pela taxa de cliques, o excedente comportamental tornou-se a pedra angular de uma nova forma de comércio dependente do monitoramento on-line em larga escala. A entrada do Google na Bolsa em 2004 revelou ao mundo o sucesso financeiro desse novo mercado. Sheryl Sandberg, ex-executiva do Google que foi para o Facebook, lideraria a transformação da rede social em gigante da publicidade. O capitalismo de vigilância rapidamente se estabeleceu como modelo do capitalismo de informação na web, atraindo pouco a pouco concorrentes de todos os setores.

A economia de vigilância baseia-se em um princípio de subordinação e hierarquia. A velha reciprocidade entre as empresas e os usuários desaparece por trás do projeto de extrair excedentes de nosso comportamento para fins concebidos por outros – vender publicidade. Nós não somos mais os sujeitos da realização do valor. Também não somos, como alguns já afirmaram, o “produto” vendido pelo Google. Somos os objetos cuja matéria é extraída, expropriada e em seguida injetada nas usinas de inteligência artificial do Google, as quais fabricam os produtos preditivos que são vendidos a clientes reais – as empresas que pagam para jogar nos novos mercados comportamentais.

Sob o disfarce da “personalização”

Douglas Edwards, responsável pela marca Google, conta sobre uma reunião realizada em 2001 com os fundadores em torno da questão “O que é o Google?”. “Se tivéssemos uma categoria”, refletia Larry Page, “seria a das informações pessoais […]. Os lugares que vimos. Nossas comunicações […]. Os captadores não custam nada […]. O armazenamento não custa nada. Aparelhos fotográficos não custam nada. As pessoas vão gerar enormes quantidades de dados […]. Tudo o que você ouviu, viu ou experimentou se tornará consultável. Toda a sua vida se tornará consultável.”2

A visão de Larry Page oferece um reflexo fiel da história do capitalismo, que consiste em capturar coisas exteriores à esfera comercial e transformá-las em mercadorias. Em seu ensaio A grande transformação, publicado em 1944, o historiador Karl Polanyi descreve o advento de uma economia de mercado autorregulada por meio da invenção de três “mercadorias fictícias”. A primeira delas, a vida humana subordinada às dinâmicas do mercado e que renasce sob a forma de um “trabalho” que se vende e se compra. A segunda, a natureza humilhantemente dominada pelo mercado, que renasce como “propriedade fundiária”. A terceira, a troca transformada em mercadoria e ressuscitada como “dinheiro”. Agora, os atuais detentores do capital de vigilância criaram uma quarta mercadoria fictícia, fruto da expropriação das experiências humanas reais, cujos corpos, pensamentos e sentimentos são tão intactos e inocentes quanto os campos e florestas que abundavam na natureza antes de sua absorção pelo mercado. De acordo com essa lógica, a experiência humana é mercantilizada pelo capitalismo de vigilância, para renascer como “comportamento”. Traduzidos em dados, estes assumem seu lugar na fila interminável que alimenta as máquinas concebidas para fazer predições que se compram e se vendem.

Essa nova forma de mercado parte do princípio de que atender às necessidades reais dos indivíduos é menos lucrativo, portanto menos importante, do que vender previsões de seu comportamento. O Google descobriu que temos menos valor do que os prognósticos que fazem de nossos comportamentos.

Isso mudou tudo.

A primeira onda de produtos preditivos foi impulsionada pelo excedente extraído em larga escala na internet para produzir anúncios on-line“relevantes”. A etapa seguinte ocupou-se da qualidade das previsões. Na corrida pela máxima certeza, ficou claro que as melhores previsões deveriam estar o mais perto possível da observação. Ao imperativo da extração somou-se uma segunda exigência econômica: o imperativo da previsão. Este se manifesta primeiramente por economias de escopo.

O excedente comportamental deve ser não apenas abundante, mas também variado. Obter essa variedade significa estender as operações de extração do mundo virtual para o mundo real, aquele onde vivemos nossa vida de verdade. Os capitalistas da vigilância entenderam que sua riqueza futura incluía desenvolver novas cadeias de suprimento nas estradas, nas árvores, através das cidades. Eles tentariam acessar seu sistema sanguíneo, sua cama, suas conversas matinais, seus trajetos, suas caminhadas, sua geladeira, seu estacionamento, sua sala.

Uma segunda dimensão, ainda mais ousada que a variedade, passaria a caracterizar a coleta de dados: o aprofundamento. Para obter previsões comportamentais muito precisas, portanto muito lucrativas, era necessário investigar nossas particularidades mais íntimas. Essas operações de aprovisionamento visam nossa personalidade, nosso humor, nossas emoções, nossas mentiras e nossas fragilidades. Todos os níveis de nossa vida pessoal seriam automaticamente capturados e compactados em um fluxo de dados destinado às linhas de montagem que produzem a certeza. Realizado sob o disfarce da “personalização”, grande parte desse trabalho consiste em uma extração intrusiva dos aspectos mais íntimos de nosso cotidiano.

Da garrafa de vodca “inteligente” ao termômetro retal conectado, proliferam produtos concebidos para interpretar, rastrear, registrar e transmitir dados comportamentais. O Sleep Number, que fornece “camas inteligentes com tecnologia de rastreamento do sono”, também coleta “dados biométricos e dados relacionados à maneira como você, uma criança ou qualquer outra pessoa utilizam a cama, incluindo os movimentos de quem dorme, suas posições, respiração e ritmo cardíaco durante o sono”. E também grava todos os sons emitidos no quarto.

Nossa casa está na mira do capitalismo de vigilância. Prova disso é a disputa, entre empresas concorrentes, em 2017, por um mercado de US$ 14,7 bilhões para eletrodomésticos conectados – contra US$ 6,8 bilhões do ano anterior. Nesse ritmo, o montante chegará a US$ 101 bilhões em 2021. Comercializados há alguns anos, objetos absurdos espreitam nossos interiores: escova de dentes inteligente, lâmpada inteligente, xícara de café inteligente, forno inteligente, extrator de suco inteligente, sem esquecer os talheres inteligentes que prometem melhorar sua digestão. Outros parecem mais preocupantes: câmera de vigilância doméstica com reconhecimento facial, sistema de alarme que monitora as vibrações incomuns que precedem uma invasão domiciliar, GPS interno, sensores que se adaptam a todos os objetos para analisar movimento e temperatura, isso sem falar das baratas ciborgues que detectam sons. Até o quarto do bebê foi redesenhado para se tornar uma fonte de excedente comportamental.

À medida que se exacerba a corrida rumo aos lucros gerados pela vigilância, os capitalistas percebem que economias de escopo não bastam. O excedente comportamental deve, sim, ser abundante e variado, mas o modo mais seguro de prever o comportamento é intervir na fonte: moldando-a. Chamo de “economias de ação” os processos inventados para isso: softwares configurados para intervir em situações da vida real sobre pessoas e coisas reais. Essas intervenções têm o objetivo de aumentar a certeza, influenciando certos comportamentos: elas ajustam, adaptam, manipulam, envolvem por efeito de grupo, impulsionam. Elas mudam nosso comportamento em determinadas direções, por exemplo, inserindo uma frase específica em nosso feed de notícias, programando o momento oportuno em que aparece um botão “comprar” em nosso telefone, cortando o motor do carro se o pagamento do seguro atrasar demais ou orientando por GPS nossa caça aos Pokémons. “Estamos aprendendo a escrever a música”, explica um criador de softwares. “Depois deixamos que a música faça as pessoas dançarem. Podemos desenvolver o contexto que se relaciona a determinado comportamento, para produzir uma mudança. Podemos dizer à geladeira: ‘Tranque a porta porque ele não deveria comer’, ou mandar a TV desligar para que você possa dormir mais cedo”.

Desde que o imperativo preditivo deslocou as operações de aprovisionamento para o mundo real, os fornecedores de bens e serviços pertencentes a setores bem estabelecidos, distantes do Vale do Silício, também estão ávidos pelos lucros da vigilância, em particular as seguradoras de automóveis, ansiosas por montar sistemas de telemática – sistemas de navegação e controle de veículos. Elas sabem há muito tempo que o risco de acidentes está intimamente ligado ao comportamento e à personalidade do motorista, mas até então não podiam fazer muita coisa a esse respeito. Agora, um relatório de serviços financeiros da consultoria Deloitte recomenda a “minimização de riscos” (um eufemismo que, em uma seguradora, designa a necessidade de garantir os lucros) por meio de monitoramento – e também de sanções – do comportamento do segurado em tempo real: uma abordagem chamada “seguro comportamental”. De acordo com o relatório da Deloitte, “as seguradoras podem acompanhar o comportamento do segurado on-line, registrando os horários, locais e condições de circulação durante seus trajetos, observando se aceleram muito rápido ou dirigem em velocidades altas ou excessivas, se freiam ou viram bruscamente, se dão seta”.3

À medida que a certeza vai substituindo a incerteza, os prêmios de seguro que refletem os inevitáveis imprevistos da vida cotidiana podem subir ou descer de um milissegundo a outro, influenciados pelo conhecimento preciso da velocidade na qual você dirigia para o trabalho após uma manhã particularmente tensa dedicada a cuidar de uma criança doente, ou de uma derrapagem mais ou menos controlada no estacionamento do supermercado.

As ferramentas telemáticas, contudo, não têm o objetivo de apenas saber, mas também de agir. O seguro comportamental promete reduzir os riscos por meio de mecanismos concebidos para mudar a forma de dirigir e elevar os ganhos. Isso passa por sanções – como aumento de taxas de juros em tempo real, ônus, bloqueios de motor – e recompensas – como descontos, bônus ou pontos a serem usados em serviços futuros.

A Spireon, que se apresenta como “a maior empresa de telemática” de sua área, rastreia e monitora veículos e motoristas para agências de locação, seguradoras e frotistas. Seu “sistema de gestão de danos colaterais ligados à locação” aciona alertas para motoristas com pagamento atrasado, bloqueia o veículo remotamente quando o problema se estende além de certo período e o localiza para ser retomado.

A telemática inaugura uma nova era, a do controle comportamental. As seguradoras definem os parâmetros de condução de um veículo: cinto de segurança, velocidade, tempo de pausa, aceleração ou frenagem bruscas, tempo de condução excessivo, condução fora da área permitida, entrada em área de acesso restrito. Com essas informações, algoritmos monitoram, avaliam e classificam os motoristas, ajustando os prêmios em tempo real. Como nada se perde, os “traços de caráter” estabelecidos pelo sistema também são traduzidos em produtos preditivos vendidos aos publicitários, que segmentarão os segurados para receber anúncios diretamente enviados a seus telefones.

Jogo em tamanho real

Quando abriu a porta naquela noite, David não sabia que ele e os caçadores de Pokémon estavam participando de uma experiência em tamanho real das economias de ação. Eles eram as cobaias, e o laboratorista de avental branco se chamava John Hanke.

Até então vice-presidente do Google Maps e responsável pelo Street View, John Hanke criou em 2010 sua própria plataforma de lançamento dentro do Google: a Niantic Labs, empresa por trás do Pokémon Go. Hanke cultivava a ambição de apossar-se do mundo, cartografando-o. Ele já havia fundado a Keyhole, uma start-up de cartografia virtual com base em imagens de satélite financiada pela Agência Central de Inteligência (CIA), dos Estados Unidos, depois compradas pelo Google, que mudou o nome dela para Google Earth. Com a Niantic, ele dedicou-se a conceber jogos de realidade virtual nos quais seria necessário perseguir e capturar pessoas nos territórios que o Street View já havia audaciosamente capturado em seus mapas.

O jogo é baseado no princípio da “realidade aumentada” e funciona como uma caça ao tesouro. Depois de baixar o aplicativo da Niantic, você usa o GPS e a câmera de seu smartphone para encontrar criaturas virtuais chamadas Pokémon. Elas aparecem na tela como se estivessem na sua frente: no jardim de um homem que não suspeita de nada, em uma cidade, uma pizzaria, um parque, uma farmácia etc. A ideia é fazer os jogadores “saírem” e “se aventurarem a pé”, nos espaços abertos das cidades, vilas e subúrbios. Lançado nos Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia em 6 de julho de 2016, o Pokémon Go tornou-se, em uma semana, o aplicativo mais baixado e mais lucrativo nos Estados Unidos, logo alcançando o mesmo número de usuários ativos, no Android, que o Twitter.

Apenas seis dias após o lançamento do jogo, Joseph Bernstein, repórter do site de notícias on-line BuzzFeed, aconselhava os usuários a observar a quantidade de dados que o aplicativo estava coletando de seus telefones. O TechCrunch, um site de informações especializado em start-ups e novas tecnologias, expressou preocupações semelhantes sobre “a longa lista de permissões exigidas pelo aplicativo”.

Em 13 de julho de 2016, a lógica de “caça aos dados” por trás do jogo ficou mais clara. Além do pagamento por opções adicionais do jogo, “o modelo de negócios da Niantic contém um segundo componente: o conceito de locações patrocinadas”, reconheceu Hanke em uma entrevista para o Financial Times. Esse novo fluxo de receita havia sido planejado desde o início: as empresas “pagarão à Niantic para estar entre os locais do campo de jogo virtual, considerando que essa presença favorece o afluxo de frequentadores”. O faturamento, explicou, baseia-se em um “custo por visita”, semelhante ao “custo por clique” usado pelos anúncios publicitários do motor de busca Google.

A ideia impressiona por sua simplicidade: espera-se que as receitas do mundo real aumentem de acordo com a capacidade de a Niantic levar as pessoas a locais específicos, da mesma forma que o Google aprendeu a criar excedentes enviando publicidade on-line para pessoas específicas. Os componentes e as dinâmicas do jogo, combinados com a tecnologia de ponta da realidade aumentada, incentivam as pessoas a se reunirem em locais do mundo real para gastar seu dinheiro real em negócios do mundo real pertencentes aos mercados de previsão comportamental da Niantic.

O clímax do Pokémon Go no verão de 2016 sinalizava a consecução do sonho do capitalismo de vigilância: um laboratório vivo de mudança comportamental que combina facilmente escala, escopo e ação. O truque do Pokémon Go foi transformar um simples jogo em parte de uma ordem muito diferente, a do capitalismo de vigilância: um jogo em um jogo. Indo “caçar” em parques e pizzarias, os jogadores que tomaram a cidade como terreno lúdico serviam inconscientemente de peões nesse segundo tabuleiro de xadrez muito mais consequente. Os entusiastas desse outro jogo bem “real” não contavam com o número de pessoas alvoroçadas sacudindo o celular na frente do gramado de David. Eis os verdadeiros clientes da Niantic: entidades que pagam para jogar no mundo real, embaladas pela promessa de renda garantida. Nesse segundo jogo permanente, os jogadores disputam o dinheiro deixado por cada membro sorridente do rebanho. “A capacidade de o jogo ser uma máquina de dinheiro para lojas e outros estabelecimentos que precisam atrair frequentadores provocou fortes especulações”, alegra-se o Financial Times.

Não pode haver renda garantida se não houver recursos para isso. Os novos instrumentos internacionais de mudança comportamental representam uma nova era reacionária na qual o capital é autônomo e os indivíduos são heterônomos; a própria possibilidade de um florescimento democrático e humano exigiria o oposto. Esse sinistro paradoxo está no coração do capitalismo de vigilância: uma economia de novo tipo que nos reinventa pelo prisma de seu próprio poder e de seus meios de mudança comportamental. Qual é esse novo poder e como ele está transformando a natureza humana em nome de suas certezas lucrativas?

* Shoshana Zuboff é professora emérita da Harvard Business School. Autora de The Age of Surveillance Capitalism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power [A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder], Public Affairs, 2019.

Notas

1- Para as referências, ver o livro de Shoshana Zuboff.

2- Douglas Edwards, I’m Feeling Lucky [Estou me sentindo com sorte], Houghton Mifflin Harcourt, Boston, 2011.

3- “Overcoming Speed Bumps on the Road to Telematics” [Superando os obstáculos no caminho da telemática], Deloitte University Press, 21 abr. 2014.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS