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quinta-feira, 18 abril, 2024

Quando uma chantagem vira norma constitucional

Congresso Nacional (Crédito Geraldo Magela/Agência Senado
Por Fabrizio de Lima Pieron

Le Monde Diplomatique – A PEC Emergencial reflete uma opção político-ideológica de desmonte do Estado e faz parte de um projeto que pode destruir o serviço público, com consequências negativas para toda sociedade

A covid-19 ceifou a vida de mais de 270 mil pessoas no Brasil, destruiu famílias, arrasou a economia e levou milhares de brasileiros à pobreza extrema. Segundo o IBGE, o ano de 2021 começou com 27 milhões de pessoas na miséria. Nas grandes cidades, homens, mulheres, crianças e idosos disputam um lugar nas calçadas, à sombra dos prédios, em barracas improvisadas. O aumento de pessoas em situação de rua nas grandes cidades é a face mais visível do custo social da pandemia, do desemprego galopante e da fome que voltou a assolar o país.

O Brasil precisa se unir para superar a pandemia e seu custo social, com testes eficazes, isolamento social, vacinação em massa e auxílio financeiro para os mais pobres. Ninguém tem dúvida disso, mas para o governo e boa parte dos congressistas o momento tornou-se ideal para promover uma chantagem contra aqueles que estão dedicando a vida para, ao menos, mitigar os efeitos da maior crise sanitária de nossa história, os servidores públicos.

A PEC Emergencial, aprovada no Senado e na Câmara dos Deputados, é a constitucionalização da chantagem. A proposta não surgiu agora, é de 2019, portanto antes da pandemia e foi usada para emplacar medidas há muito desejadas pela equipe econômica, ansiosa por colocar “granadas no bolso no servidor”, nas palavras do ministro da Economia.

Congresso Nacional (Crédito Geraldo Magela/Agência Senado)

A pretexto de se enfrentar a calamidade e criar condições para conceder um benefício provisório à população carente, decidiu-se promover alterações permanentes na Constituição e criar gatilhos que, quando acionados, vedam a concessão de reajuste aos servidores públicos, a criação de cargos, a contratação de pessoal e a realização de concursos públicos. Até mesmo a supressão do piso mínimo da educação e saúde foi proposta, mas, por pressão da opinião pública, a ideia não prosperou.

Anterior à pandemia, a PEC Emergencial reflete uma opção político-ideológica de desmonte do Estado e faz parte de um projeto que pode destruir o serviço público, com consequências negativas para toda sociedade. Concebida para impedir o Estado de expandir gastos com pessoal e políticas sociais, a proposta amplia espaço para gastos discricionários.

Ao lado da emenda do teto dos gastos, da Reforma da Previdência – ambas já aprovadas – e da Reforma Administrativa (PEC 32/2020), a PEC Emergencial investe contra os servidores e o serviço público e, consequentemente, contra a sociedade, que necessita de um atendimento público de qualidade, feito por pessoas compromissadas com a coisa pública.

Noventa por cento dos servidores públicos estão em estados e municípios e são responsáveis pelo atendimento que mais impacta o dia a dia do brasileiro. São os servidores da educação, saúde, segurança, do sistema de Justiça. Profissionais que ganham pouco e mostraram durante essa pandemia que a principal garantia de sobrevivência para o Brasil é a existência de instituições sólidas, alicerçadas em profissionais que servem ao país, e não a um projeto político passageiro.

A proibição de ampliação de despesas com programas e políticas sociais, o congelamento nominal de salário de servidores, que sequer terão direito à reposição inflacionária, e a vedação de concursos públicos por longo período terão como consequência o sucateamento do serviço público no momento mais necessário de nossa história.

Outras medidas previstas na PEC Emergencial como a vedação da criação ou ampliação de políticas públicas sociais, a redução de benefícios e incentivos fiscais, como as deduções no imposto de renda das despesas com saúde e educação e a isenção do imposto de renda de idosos e pessoas aposentadas por invalidez atingirão diretamente toda sociedade, inclusive os trabalhadores da iniciativa privada.

Os servidores públicos foram escolhidos novamente como variável de um ajuste fiscal, assim como ocorreu na PEC do teto dos gastos e na recentemente aprovada Reforma da Previdência. A Reforma Administrativa vai na mesma toada, com base em mentiras e preconceitos desfiados diariamente contra os servidores, chamados de parasitas, preguiçosos e usurpadores, verdadeiro uso da tática da “falácia do espantalho” (the straw man fallacy), isto é, quando críticas não são feitas ao opositor, mas à versão distorcida que é inventada dele.

A PEC Emergencial foi a face mais clara dessa triste realidade. Tudo feito de forma açodada, sem transparência, sem discussão com a sociedade, na base da chantagem e sob aplausos dos mesmos analistas econômicos que garantiram a prosperidade após a aprovação de outras reformas no passado recente.

 

Fabrizio de Lima Pieroni é procurador do Estado de São Paulo, presidente da Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo (APESP) e diretor legislativo da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal (Anape)

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