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quarta-feira, 27 março, 2024

O VÍRUS E O VERME

Por Marília Moreira*

Era uma nação solar.

Seus habitantes coloriam suas mazelas com estampas felizes, acalentavam suas dores no embalo da música e expeliam as suas angústias em gritos de “gol!”

Era um povo alegre, dizia-se, o sorriso rasgado colado ao rosto, o corpo sempre entregue, aberto ao abraço, ao molejo da dança, à malícia do sexo. Um povo voltado para o outro, supunha-se, voltado para fora, eufórico.

Era, no entanto, um país de avessos, de sombras profundas ocultas pelo brilho ardido de uma alegria de spot light. E na superfície o riso, na superfície o gozo, na superfície o sol a dourar a casca e a ofuscar os olhos.

E então, veio o vírus. E com ele o imperativo de um isolamento forçado. Os festivos habitantes daquele país iluminado foram obrigados a encerrar-se em suas casas, a abandonar tudo ou quase o que os fazia vibrar. Cancelaram-se as partidas de futebol, os encontros no boteco, as idas à praia, o churrasco, as compras, os encontros, as festas. A assepsia constante das mãos e das coisas parecia limpar também os últimos vestígios daquela tal felicidade.

Alguns mergulharam nos livros. Os que puderam, no trabalho. Outros encontraram um frio refúgio no universo virtual. Os que estavam com suas famílias, uniram-se, brigaram, ajustaram-se. Por vezes, mataram-se. Todos, sem exceção, viram delinear-se, nas paredes de suas retinas, as sombras, aquelas, antes ocultas pelo excesso de luz e que agora, como a esfinge de Tebas, ameaçavam devorar todos aqueles que não fossem capazes de decifrar o seu enigma.

Diante do escuro, o medo germinava no intestino dos homens, entranhava-se nas vísceras, corroía os tecidos, penetrava nos ossos, nos órgãos, nas células, agarrava-se a garganta, dilatava poros e pupilas.

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Poucos, muito poucos tiveram meios de decifrar o mistério das sombras.

É que antes do vírus, veio o verme. Silenciosa e lentamente o verme havia de instalado no interior de muitos e sugado tudo, ou quase, o que os constituía como humanos. Ninguém viu quando o verme deixou os corpos através dos excrementos, uniu cada uma das suas parcelas nos fétidos subterrâneos do país e ganhou corpo, corporificou-se, personificou-se na abjeta figura de um falso líder messiânico em quem as pobres pessoas, esvaziadas de sua humanidade, podiam, enfim, verem-se espelhadas.

Desprovida de coerência interna, a população não percebia a absurda incoerência dos discursos vazios que o verme, feito líder, expelia através de sua boca imunda. Despojada de seu altruísmo, pessoas ditas “do bem”, não se importavam com as ofensas e ameaças que Ele fazia aos outros, às minorias, a qualquer um que não fosse um “eu”, ou por vezes até mesmo a esse “eu” que, não obstante a completa falta de erudição ou mesmo de elaboração daqueles discursos, pareciam incapazes de compreender o mínimo conteúdo ali contido: ódio, violência, destruição.

“Vamos acabar com tudo isso aí, tá ok?” – vomitava o verme.

“Tá ok! Tá ok! Tá ok! Tá ok! Tá ok!” repetia a população em eco, balançando mecanicamente as cabeças, sem se dar conta de que “tudo isso aí” incluía cada uma dessas cabeças, seu futuro, seus sonhos, sua liberdade, sua instrução, sua cultura, sua dignidade, enfim, tudo aquilo que os qualificava como humanos.

As sombras cumpriram a promessa e devoraram todos aqueles que não foram capazes de decifrar o seu enigma.

Aos que não sucumbiram coube ver aquela nação solar mergulhar nas trevas, assolada a um só tempo pelo vírus e pelo verme.

O vírus, apesar de toda a sua malignidade, restituiu a muita gente a generosidade, a compaixão, o poder da reflexão, o senso de coletividade, a capacidade de olhar para o outro, para si e para o mundo num sentido amplo.

O verme, por sua vez, aquele mesquinho, vil, execrável verme, que de tão repugnante, nem o vírus ousava tocar, trouxe apenas miséria, destruição e dor.

Ainda não é conhecido o final dessa história. Ouvi das sombras que se espera do verme que ele acabe por corroer as suas próprias entranhas.

Nota biográfica

*Marília Moreira é atriz e autora das peças teatrais “Além da imagem – um réquiem para Marilyn Monroe”, “Andanças de uma lagartixa” e “Língua de Boi”. Também escreveu o livro de poemas infantis “Lia e o feitiço da palavra”, pelo qual recebeu o prêmio FNLIJ de escritora revelação.

Jornal GGN

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