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quinta-feira, 25 abril, 2024

O que a filosofia política diz da democracia? O caso da Colômbia

REVISTA IHU ON-LINE
Na Colômbia, a política exercida por profissionais é motivo de excepcional receio e razoável descrença, com algumas raras exceções.
As redes sociais e os meios de comunicação parecem refletir de maneira consistente três formas de entendê-la: 1) a indiferença daqueles que ignoram o quanto afeta sua vida cotidiana; 2) a tentação de contar só com críticos em um cotidiano muro das lamentações; e 3) o clamor de que “é preciso fazer algo”, à espera de que alguém mais atue.
O professor da Universidade Javeriana de Bogotá, Santiago Castro-Gómez, doutor em filosofia pela Universidade de Frankfurt, fala sobre como atua a filosofia política, o que tem a ver com a democracia, como nos afeta e por que a América Latina e Colômbia tiveram dificuldades na compreensão e aplicação de conceitos como democracia e liberdade.
A entrevista é de Francisco Celis Albán, publicada por El Tiempo, 22-08-2017. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Que papel teve a filosofia no nascimento da democracia?
A filosofia nasce na Grécia, junto com a democracia. A filosofia necessita de e contribui para criar um ambiente social de livre discussão e argumentação, no qual ideias antagônicas possam ser disputadas, sem que isso signifique que os desacordos ideológicos tenham que ser resolvidos pela força. Na realidade, isso mesmo é a democracia.
Diferente do que ocorre na guerra, na qual o objetivo é matar o inimigo para vencê-la, na democracia já não há inimigos, mas, sim, antagonistas. Trata-se de derrotar politicamente o antagonista, não de matá-lo. Todos somos cidadãos, compartilhamos um mesmo ‘ethos democrático’, ainda que tenhamos diferenças ideológicas. Vivemos um momento histórico no qual, pela primeira vez, nós, colombianos, temos a oportunidade de construir uma democracia real, na qual os inimigos de antes possam viver como antagonistas.
Qual seria um balanço dos marcos alcançados pela filosofia política no século XX?
Houve distintas correntes, muitas em embate entre si. Nos anos 1950 e 1960, eu destacaria a figura de Hannah Arendt, que enfatizou a importância das instituições democráticas, após o auge dos totalitarismos na Europa. Nos anos 1970 e 1980, as palmas foram para a obra de John Rawls, de grande influência na Colômbia. Ele desenvolve uma teoria normativa da justiça que vai além do liberalismo clássico e do utilitarismo. Em polêmica com Rawls, nasce, nos anos 1990, o “comunitarismo”, que destaca a importância dos valores cívicos e éticos assentados na tradição de comunidades históricas específicas.
Também nos anos 1980 e 1990, começa a se desenvolver uma corrente que poderíamos denominar em grandes traços como pós-marxismo, empenhada em corrigir o tradicional déficit de teorização política no marxismo. Pertencem a esta corrente Laclau e Mouffe, Lefort, Castoriadis, Ránciere, Balibar e Zizek. É necessário mencionar, também, os desenvolvimentos da filosofia política feminista, com figuras como Judith Butler, Nancy Fraser, Seyla Benhabib e Bonnie Honig.
Por último, e também em polêmica com o liberalismo, destacaria a redescoberta da tradição republicana graças a autores como Quentin Skinner, John Pocock e Phillipe Pettit.
Que legado nos deixou, nesse sentido, o pós-estruturalismo?
O mérito de autores como Foucault, Deleuze e Derrida consiste em ter ressaltado o fato de que a política não se remete apenas ao âmbito das instituições estatais ou dos partidos políticos, mas que a própria subjetividade já foi formada politicamente desde o começo e seus efeitos se reproduzem a todo o tempo na vida cotidiana, na forma em que consumimos, trabalhamos, amamos e desejamos.
Seu limite, especialmente na obra tardia de Foucault, é ter acreditado que a transformação da subjetividade é a última trincheira de ação política que temos à disposição, pois considera que o Estado já foi colonizado definitivamente pela racionalidade econômica e não é possível fazer ali qualquer batalha.
Foucault despreza a institucionalidade democrática porque a considera um instrumento de governo, disciplinamento e normatização jurídica da subjetividade.
E aí como se inserem as ideias de Habermas?
Jürgen Habermas desenvolve uma teoria política em um livro intitulado Direito e Democracia: entre facticidade e validade, publicado nos anos 1990. Ele pretende unir e superar ao mesmo tempo duas tradições de pensamento político, a liberal e a republicana, sobre a base de sua teoria da ação comunicativa. E destaca a importância normativa dos procedimentos racionais implícitos em qualquer deliberação democrática.
Após o rastro de Habermas, emerge na Alemanha uma nova geração da escola de Frankfurt que reflete sobre questões ligadas ao reconhecimento do outro e a justiça política em sociedades multiculturais, na qual se destacam as figuras de Axel Honneth e Rainer Forst.
O que diria dos filósofos políticos na América Latina?
Infelizmente, não houve tantos como se poderia esperar, em um continente cheio de contradições sociais e dificuldades para construir instituições democráticas.
Diria que são duas as figuras mais importantes da filosofia política na América Latina, ambos de nacionalidade argentina. De um lado, temos a obra imensa de Ernesto Laclau, tanto em seu trabalho conjunto com Chantal Mouffe, nos anos 1980, como em seu livro posterior A razão populista. Nele, desenvolve de forma muito criativa a noção de ‘populismo’ e mostra sua importância para a consolidação de uma política emancipatória.
De outro lado, temos a obra de Enrique Dussel, sobretudo sua monumental trilogia Política da Libertação, mas eu destacaria também obras menos densas como 20 teses de política e 16 teses de economia política. Dussel e Laclau fizeram interessantes contribuições, baseados na experiência política da América Latina.
Por que a democracia é difícil para a Colômbia?
É um problema que compartilhamos com todos os países da América Latina. Esta região do mundo foi incorporada à modernidade mediante a expansão colonial da Europa. Isto significa basicamente que os processos de modernização (incluídos os de modernização política) se deram junto com a reprodução de heranças coloniais e, em alguns casos, em dependência direta delas. O resultado é que toda uma série de tendências antidemocráticas ligadas a essas heranças (a aspiração à brancura, o patrimonialismo das elites, o caciquismo, o machismo) dificultaram enormemente a modernização política destes países.
A democracia que tivemos na Colômbia é puramente formal (eleições, separação de poderes, multipartidarismo) e orientada basicamente a ideais políticos do liberalismo (defesa das liberdades individuais).
A ‘ideia’ de democracia, que necessariamente implica a participação ativa do cidadão nas decisões que lhe afetam, não conseguiu se consolidar na Colômbia. As pessoas desconfiam das instituições, dos ‘políticos’, e não assume como própria a responsabilidade de construir algumas instituições públicas que sejam de todos.
O que a Colômbia necessita para ser uma sociedade livre?
De um aprofundamento da democracia. Conseguir fazer com que possamos viver juntos, que possamos compartilhar e respeitar algumas regras de convivência pacífica, mesmo em meio às divergências ideológicas. Mas, para isso não basta uma liberdade puramente “formal”, como a defendida pelo liberalismo. A liberdade não supõe apenas que o Estado deva garantir a “não interferência” sobre as liberdades individuais, mas, ao contrário, acima de tudo, a garantia de que nenhum cidadão possa viver em condição de servidão.
Isso significa que o Estado deve criar as condições para que nenhum cidadão tenha que viver “à mercê” de outros, submetendo sua vontade à arbitrariedade da vontade de outros. Não posso ser livre em meio a uma sociedade onde predomina a servidão. A liberdade não é um atributo que se predica do indivíduo, mas do tipo de organização política que garanta que todos possam viver autonomamente, em lugar de viver como escravos. Como você bem disse, não é o indivíduo, mas é a sociedade a que é livre.
Qual o papel dos meios de comunicação em tudo isto?
Não pode haver democracia quando a informação se concentra em grandes monopólios. O fato de ser os grandes consórcios privados os encarregados de informar os colombianos, de lhes oferecer entretenimento e educação, não tem nada de democrático. É preciso fortalecer a televisão pública, torná-la cenário das coisas que ocupam e preocupam as pessoas.
Mas, as redes sociais já não modificaram esta situação?
Não acredito que o problema dos monopólios, simplesmente, seja resolvido apelando às redes sociais e à internet. Por sorte, isto vem se rompendo nos últimos anos, graças à proliferação de redes sociais que se movem por canais diferentes.
É verdade que a informação se desconcentra, se diversifica, mas também se torna mais volúvel. Não há controle algum sobre a qualidade e a seriedade da informação que circula pelas redes como Facebook, Twitter ou Instagram. E isto também é ruim para a democracia, porque atinge o direito à informação veraz. As redes sociais não podem substituir a televisão pública.
O ideal democrático poderá ser realizado em algum momento?
Parto da premissa de que o homem é um animal passional e, portanto, disposto à violência. É justamente por isso que necessitamos da política. Seu objetivo é criar as condições para se sobrepor à nossa natureza passional uma “segunda natureza”, de caráter político, que nos permita acolher valores comuns.
Contudo, isto não significa que seremos capazes, em algum momento, de construir uma sociedade composta de seres racionais e desapaixonados, na forma de anjos. Por isso, os ideais normativos da democracia sempre vão se chocar com o cruel mundo dos interesses egoístas e com as velhas hierarquias sociais próprias do mundo colonial.
Este é, precisamente, o desafio que temos agora na Colômbia. Precisamos criar um tipo de política e uma arquitetura institucional republicana que permitam que os interesses comuns possam coexistir com e prevalecer sobre os interesses privados. Esse é o desafio democrático que nos vem nos próximos anos.

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