19.2 C
Brasília
quinta-feira, 28 março, 2024

O ovo de uma serpente já conhecida

Por Kai Michael Kenkel, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

Cada um é formado pela sua história pessoal. Eu sou alemão, crescido nos Estados Unidos, acadêmico de relações internacionais (política) no Brasil. A guerra e a intolerância política afetaram profundamente a minha família. Isso me norteia politicamente. Como alemão de minha geração, o ponto fixo inescapável que orienta toda a consciência na minha formação cidadã é o legado do fascismo: o Holocausto e a Segunda Guerra, e a firme missão de nunca deixar isso acontecer de novo, em lugar nenhum. Não existe nenhum princípio político mais sagrado que esse.

Como norte-americano, nas aulas cívicas você de criança aprendia – mesmo com todas as hipocrisias e contradições que se tornaram aparentes ao crescer – que a democracia é para todos, e que ela é como um ser vivo que precisa ser defendido ativamente para sobreviver. Temos que pensar o sistema para todos e defendê-lo ativamente.

Como acadêmico de ciências sociais, vivo e trabalho ciente do fato que as palavras são ações em si: o falado/escrito pode ter consequências devastadoras. As palavras contam, e se tornam ações num piscar de olhos. Uma frase, um livro, um pôster, matam ou emancipam milhões se falados por uma pessoa com poder.

Também sei com base nesse histórico que o paradoxo da tolerância do Popper é uma realidade: a tolerância é a chave de tudo, e por isso não podemos ser tolerantes com a intolerância. Porque sem resistência, a intolerância sufoca a tolerância – ela é o caminho de menor resistência para a mente simples.

No contexto brasileiro, isso me posiciona muito claramente contra o Bolsonaro. Não tenho candidato que estou a favor, mas nunca na minha vida inteira vi um caso mais claro de um político que viola todos os princípios acima. Quando você vive com antenas muito bem desenvolvidas para o renascimento da intolerância e do fascismo, o alarme não poderia soar mais claramente que no caso desse homem e seus apoiadores. É só substituir LGBT, negro e mulher por “judeu” e estamos claramente em 1933. O paralelo é de extrema aplicabilidade sim. Os campos de concentração também começaram com palavras. E me desculpem dizer, mas a democracia brasileira – nas cabeças da grande massa das pessoas – ainda é muito frágil para se defender contra esse ataque. Não que seja, no momento, tão mais firme em outro lugar – está enfraquecendo no mundo inteiro. Mas não estamos lidando com um Trump brasileiro, e sim com um Duterte tupiniquim.

Então, para mim, quando um candidato fala que quer fuzilar a oposição, quer estuprar mulheres, que negro só serve para procriar, que refugiados são escória, que o erro da ditadura foi só torturar e não matar, isso passa longe de ser só retórica, ou de um cara que se “expressa mal”. Ele é político – produzir discursos é a profissão dele. Ele pode ser muito limitado moral e intelectualmente, mas sabe exatamente o que está fazendo quando abre a boca e fala essas coisas. Indo além das palavras: votou em favor de reduzir a licença-maternidade, contra o obrigatoriedade do SUS tratar vítimas de violência sexual, e são inúmeros os exemplos de discursos intolerantes. A desculpa do mal-entendido não se aplica quando a evidência é de tal tamanho.

Tem quem considere o Bolsonaro honesto e não corrupto (aliás, manifestamente um engano, olhem para o patrimônio da família e os funcionários-fantasma) ou ache que ele vai tornar o Brasil mais seguro (está cientificamente comprovado que armar todo mundo vai obter o resultado exatamente contrário). Gente de saco cheio que quer um salvador, que identifica o alvo para resolver: já vi isso em algum lugar…

Digo claramente: se você aceita a intolerância, o racismo e a misoginia – presentes intencionalmente e com a maior clareza no discurso de Bolsonaro – porque o candidato promete a salvação de uma política ineficaz, você está aceitando o fascismo exatamente da mesma forma que ele nasceu em 1933. Ponto. Não existe nada – absolutamente nada – que se sobrepõe ao nosso dever de resistir ativamente ao estabelecimento dessa ideologia em qualquer país.

A resistência ao fascismo e à intolerância é o princípio no qual eu creio mais firmemente na minha vida. E eu identifico claramente o Bolsonaro como vetor dessa ideologia. Então a resistência a ele, mesmo não podendo votar, é algo que levo muito a sério. Não é só para passar tempo e roubartilhar no Facebook.

Então, se você o apoia, ou o aceita sabendo o que ele representa como consequências vividas na pele e nos ossos de seus concidadãos que são de minorias, nossa divergência não é só política ou de discurso, mas do mais profundo nível moral.

Para quem ainda enxerga algum mal maior que o Bolsonaro, parem para pensar. Os alemães em 1933 também estavam prontos para aceitar o que eles achavam que era o mal menor, e foram totalmente enganados porque era mais fácil seguir o discurso sedutor do que pensar para si. Ele é o mal maior.

Parem de banalizar esse fenômeno e pensar só em vocês mesmos, e pensem nas consequências para o nosso país e todas as pessoas que nele vivem. Não é uma questão de esquerda ou direita, mas um atentado à democracia. É seu dever de ser humano decente.

* Kai Michael Kenkel é professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio.

ÚLTIMAS NOTÍCIAS