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sexta-feira, 29 março, 2024

O freio ao lawfare na Argentina junta-se à intervenção em Vicentin

 Helena Iono/Correspondente em Buenos Aires

A pandemia põe à luz todas as incompetências e monstruosidades do capitalismo, coloca definitivamente um divisor de águas entre as lideranças políticas a favor e contra a vida humana, a favor do Estado social ou do mercado. Enfim, podemos dizer que na encruzilhada posta entre o altruísmo e o egoísmo, não há soluções psíquicas, místicas e religiosas que nos salvem, senão soluções terrenas, concretas que ponham definitivamente a economia, a ciência e a natureza em função dos mais frágeis, das classes oprimidas já e agora.

Se os milhões de desempregados e mortos, o colapso das economias dos países serão no pós-pandemia piores que situações prévias às duas guerra mundiais, não há paliativos nem respiradores que salvem o capitalismo financeiro; nem mesmo uma terceira guerra mundial que, em efeitos, já assola a humanidade com a Pandemia. Porém, a queda de regime não vem por si só e sem causar maiores danos sociais e mortes, para não dizer bélicos e militares. As intenções concentradoras do capital financeiro internacional buscarão formas atrozes de sobrevivência, sobretudo frente à ascensão econômico militar da China e Rússia. Vários países, como EUA e Brasil, com catastrófica perda de seres humanos, acirram em meio à pandemia um conflito político, que reclama mais Estado e definições de classe: economia para quê e para quem.

Não há alternativas fáceis, nem claras para uma saída a favor dos oprimidos. Mas, se exacerbam as reações contidas ou não pela pandemia, ou por forças burocráticas. Seja por via internet, teleconferências e corajosas manifestações juvenis ocupando ruas e espaços; dão sinais de resistência e não caída de braços. Apenas se abram as comportas do pós-pandemia, a eclosão social será irreversível. A alta classe dos anti-quarentenas se arrependerá e terá nostalgia do isolamento popular.

O andamento do caso Vicentin

Na Argentina, políticos da ultradireita do ex-governo de Cambiemos-PRO, instigam a desestabilização do governo de Alberto Fernandez, com panelaços minoritários nas praças e redes sociais, com o apoio histérico das TVs e mídia hegemônica, contra a quarentena e a expropriação do complexo agro-exportador Vicentin (Leia detalhes). Está no DNA da alta classe aterrorizar o empresariado e a classe média com fakenews e  falsos riscos do monstro do “comunismo” e da “expropriação a toda e qualquer propriedade privada” e do fantasma da Venezuela.  O objetivo desses políticos e do agronegócio é garantir o capital estrangeiro e a impunidade dos proprietários de Vicentin. A expropriação da Vicentin não seria uma medida ideológica, mas a reativação estatal da empresa que declarou falência, não pagou, saqueou o Banco estatal, os pequenos empresários e trabalhadores do campo.

Não obstante, por urgência ou por insuficiência no método comunicacional oficial, abriu-se tal pressão político-midiática opositora, em plena pandemia, que levou a um recuo (polêmico) do governo no acionar do Decreto de expropriação imediata (para votação no Parlamento) e das formas de intervenção do Estado, rumo a uma proposta mista de concurso de credores, nacionais, internacionais, e do Estado com dirigentes da Vicentin, sob observação de um juiz local da própria localidade de Reconquista em Santa Fé. Juiz este, Fabian Lorenzini, que, porém, segundo revelações recentes da agencia NA, trabalhou 20 anos no Banco La Nación e, portanto, participou das decisões da empresa Vicentin quando evadiu, e declarou quebra após contrair 262 milhões de dólares de empréstimo deste Banco durante o governo Macri.  A irregularidade implicará num provável afastamento deste juiz da causa Vicentin. Caso contrário, os riscos de demolição da empresa, cujos proprietários e alguns acionistas a têm esvaziado, são grandes. Portanto, a luta pela expropriação como anunciada inicialmente, não é fácil, mas continua e não está perdida. A boa e didática comunicação popular sobre o caso Vicentin é requerida. Explicar o papel do Estado para o controle no comércio exterior, é pauta essencial.

Várias manifestações de combate têm ocorrido para retomar o chamado à intervenção e expropriação. Formou-se uma Comissão Parlamentar Bicameral para a investigação do manejo financeiro dos proprietários da Vicentin, incluindo fuga de capitais a sucursais no Paraguai e Uruguai e às off-shores do Panamá e aos credores internacionais nos EUA. Ao mesmo tempo, mais de 16 mil firmas foram recolhidas por iniciativa do  sociólogo da UBA, Júlio Gambina, chamando a um ampla campanha de esclarecimento da opinião pública sobre o roubo de Vicentin ao patrimônio público, desvio e fuga, em detrimento de um modelo agrário popular de soberania alimentar. Houve várias pequenas mobilizações pela estatização de Vicentin. A União dos Trabalhadores da Terra (UTT), o Movimento Nacional Camponês Indígena, a  Frente Agrária Evita a MTE rural, ativaram sopas populares. A União dos Trabalhadores da Economia Popular (UTEP), a CTA (Autônoma) organizaram protestos diante da Vicentin (capital) e da Sociedade Rural.

O ínicio do fim do lawfare na Argentina

Não é casual que na Argentina, ao mesmo tempo que se acentua a necessidade de intervir na Vicentin, se destape o escândalo do envolvimento direto do ex-presidente Macri num esquema de espionagem ilegal, através de agentes ligados à estrutura da AFI (Agência Federal de Inteligência), com o conluio de conhecidos jornalistas da mídia hegemônica (Clarin, La Nación, TN) e juízes sem escrúpulos. Leia detalhes no artigo de Raul Kollmann e Irina Hauser no Página12. Desvenda-se uma quadrilha mafiosa dentro da AFI, servidora do lawfare (que poderá levar a conexões nos EUA como a Lavajato do Brasil), que espiou e perseguiu por anos à ex-presidenta Cristina Kirchner, dirigentes políticos opositores, sindicalistas, empresários, mais de 400 jornalistas, políticos em plena prisão, familiares, membros da própria coligação macrista, tudo ao mando do ex-presidente Macri. Espiar opositores, recatar, comprá-los com delação premiada em caso de resistência, montar fakenews, difundir exaustivamente com show midiático, mandar prender, formar opinião pública, e desviar a sua atenção para votar leis de recortes sociais na surdina. Há um grande debate para que a verdade venha à tona, para cumprir as metas da plataforma de Alberto e Cristina: “Não mais porões da democracia!”.

Manifestaçao pela expropriação Vicentin (foto Bernardino Avila)

Formou-se, sob direção do deputado Leopoldo Moreau, uma Comissão Parlamentar de Investigação aos Organismos de Inteligência da AFI. As investigações comprometem o ex-presidente Macri. Novas descobertas levam a uma venda ilegal de 290 armas da AFI a espiões e funcionários a preço de mercado negro. Fala-se num verdadeiro Watergate da era Macri, partindo de dentro da Casa Rosada. Acabam de ser presos por ordem do juiz Villena a ex-secretária, Susana Martinengo, responsável da Documentação presidencial da Casa Rosada, junto a 21 implicados nesse esquema de espionagem que pode chegar às altas cúpulas do ex-governo, desde Macri à ex-ministra da segurança, Patrícia Bullrich. Aumenta também a pressão de juízes progressistas para agilizar a Reforma do Judiciário neste contexto, e erradicar juízes corruptos, cúmplices do lawfare em todos os níveis do poder. Em entre 2014-2015, Cristina Kirchner foi quem tratou de iniciar uma Reforma do Judiciário, interrompida depois por Macri. Cristina Kirchner foi um dos principais alvos do lawfare, como Lula, Dilma e Rafael Correa. É sabido também que o lawfare é antes de tudo um instrumento para assegurar a supressão da democracia em função do poder econômico das corporações. Por trás de Clarin, La Nación e canais de TV hegemônicos estão um dos maiores poderes econômicos da Argentina.  São os que instrumentalizam os anti-quarentena e os anti-expropriação da Vicentin. Mas, a tragédia da Pandemia, em plena terra arrasada deixada por quatro anos de macrismo, desencadeou o começo do fim do lawfare na Argentina.

Dá a pensar o fato de que no Brasil também começa a crise do  Judiciário, cúmplice do lawfare contra Dilma Rousseff e Lula da Silva. O STF, seja através dos juízes Celso de Melo, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e em parte o Procurador Arias, decidem descartar Bolsonaro, um instrumento da Lava Jato de Moro colocado no poder Executivo. Certamente é um importante sinal positivo para a recuperação da constitucionalidade democrática; mas, insuficiente, enquanto não se proceda à política centralizada contra a Pandemia e o genocídio no país, ao impeachment de Bolsonaro, à recuperação de todos os direitos políticos de Lula junto a um processo de cassação da chapa Bolsonaro-Mourão e à convocação de eleições antecipadas.   Como têm dito os Juristas pela democracia e a advogada Carol Proner: “ a América Latina deve repensar as garantias do sistema de Justiça, de forma a garantir a estabilidade democrática”. Enquanto na Argentina já se vive um estágio mais avançado de desmascaramento do lawfare por decisão política de um novo governo progressista rumo a uma Reforma do Judiciário, no Brasil, o destape é parcial, dominado pelo império midiático: Globo versus Record, Moro versus Bolsonaro e se está na mesma. Os objetivos do lawfare, que são os de assegurar as corporações financeiras, através de Guedes, continuam intactos; enquanto o casos Queiroz e Weintraub não passarem do show midiático, as metas da Lava Jato seguem com a votação da privatização das águas e as tentativas de entrega da Petrobrás. Há que ver, porém, se a economia mundial pós-pandemia suportará tal projeto.  Até o governo neo-liberal do Peru pediu socorro ao Estado contra a estrutura hospitalar privada.

O que é notável e alentador é ver que o ex-presidente Lula (foto) não perde tempo, marca presença como estadista de um governo popular paralelo.  Da mesma forma como deu dezenas de entrevistas durante a sua prisão em Curitiba, rompe o isolamento da quarentena, se transforma num comunicador social, emite ideias através de vídeo conferências, entrevistas por rádio e TVs-online. No seu encontro na live “Pensar na América Latina depois da Pandemia”, promovido pela Universidade de Buenos Aires (UBA) e pela CLACSO, com o presidente Alberto Fernández coincidiram na condenação ao capitalismo decrépito e no papel do Estado para salvar vidas. Abandonados os organismos de integração regional como Unasul, Celac, Mercosul e Brics, numa América Latina derrubada pelo Plano Condor dos últimos anos, com formato lawfare, restam os governos populares caribenhos da Venezuela, Cuba, México e Argentina. Lula e Alberto, recordando anos de glória com Chávez, Nestor/Cristina, Correia, Evo e vários presidentes progressistas, unem forças para reviver o passado com esperanças de estabelecer laços de transição para recuperar uma futura integração necessária.  Imprescindível assistir: debate on-line promovido pela Universidade de Buenos Aires (UBA)

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