18.4 C
Brasília
quinta-feira, 28 março, 2024

O Euro entre a vida e a morte

por Philippe Prigent,
c/ Sébastien Cochard e Régis Castelnau
O euro, a moeda única, está entre a vida e a morte. Uma sentença do Tribunal Constitucional Alemão adoptada em 5 de Maio veio tornar frontais e irredutíveis as divergências no interior da Zona Euro e que implicam com os mecanismos possíveis de ajuda aos Estados membros para combater a crise económica decorrente da pandemia do COVID-19. Como a seguir se explica, a situação resultante da sentença do Tribunal criou um quadro no qual ou a Alemanha sai do euro ou as suas posições ditadas constitucionalmente têm ganho de causa no Banco Central Europeu – terminando com as compras de dívida dos Estados membros. Mas se isto acontecer, países como França e a Itália terão de por em causa a continuidade no euro porque as suas economias não sobrevivem sem as compras de dívida e os mecanismos (não assumidos) de financiamento monetário através do BCE. O euro, tal como o conhecemos, está entre a vida e a morte.
Num artigo publicado no seu blog em 21 de Abril, intitulado “Euro, o milagre ou a morte”, Fréderic Lordon disse o seguinte:
“Para que o euro não acabe desta vez existe apenas uma possibilidade fora da estratégia “círios e milagre”: que a própria Alemanha seja obrigada à solução de anulação das dívidas para evitar ficar como os parceiros. A única coisa que pode salvar o euro é que a Alemanha se veja ela própria incapaz de resistir ao choque titânico decorrente das suas próprias receitas. E que ela se encontre em situação de ter de arbitrar entre a manutenção dos seus princípios e a preservação dos seus interesses essenciais – a saber: conter o desmembramento económico e social. Aquilo que a Alemanha é rigorosamente incapaz de fazer – acertar os seus princípios com os dos outros – talvez possa fazê-lo com ela própria. Ainda assim, seria necessário que fizesse a arbitragem correcta, que a tornasse suficientemente forte e rápida para que outros não passem à frente e que não venha tudo a explodir antes do Pentecostes alemão. Então, e apenas então, o euro teria uma derradeira, uma última oportunidade”.
É mais que provável que a morte do euro provoque rapidamente a desintegração da União Europeia.
Em plena crise do COVID, o Tribunal Constitucional Alemão de Karlsruhe acaba de tomar, em 5 de Maio, uma decisão extraordinária na qual se mostra que a via germânica é a da recusa da solidariedade europeia. Em termos simples, esta jurisdição declarou o princípio da primazia do direito alemão sobre o direito europeu supranacional. A arbitragem de que fala Lordon parece ter sido determinada pela decisão de 5 de Maio. Em favor unicamente dos interesses alemães.
Não nos enganemos, o Supremo Tribunal Alemão não tomou esta decisão de quase 80 páginas por razões de oportunidade política ou económica mas por razões de princípio jurídico. Dir-se-á que a missa ficou dita.
Pedi a Philipp Prigent, advogado em Paris, e Sébastien Cochard, conselheiro de banco central, que nos fizessem um comentário sobre esta decisão.
Agradeço-lhes por isso
Régis de Castelnau
BCE: O Tribunal Constitucional Alemão lembra a primazia do direito nacional sobre o direito da União Europeia e inicia o processo de desmantelamento da Zona Euro
Por Philippe Prigent, advogado de Paris [1]
e Sébastien Cochard, conselheiro de banco central [2]
A decisão do Supremo constitucional alemão (“Karlsruhe”) de 5 de Maio de 2020 [3] é histórica.
Por um lado, recorda a primazia do direito nacional sobre o direito da União Europeia, primazia que resulta das Constituições e que os Tratados Europeus não podem limitar. Esta decisão é essencial naquilo em que sublinha a predominância dos princípios de democracia e de soberania popular, únicas fontes de legitimidade aceitáveis num Estado de direito.
Por outro lado, esta decisão constitui um ultimato e o primeiro passo, seja de uma saída da Alemanha do euro, seja de uma obrigação de saída para a Itália e a França – de qualquer maneira, o fim da Zona Euro tal como a conhecemos. A decisão de Karlsruhe deverá, deste modo, tomar um lugar na história, do mesmo modo que a queda do muro de Berlim, como o fim de uma experiência economica contranatura e radicalmente antidemocrática de cerca de 40 anos: a união económica e monetária.
Se a Alemanha é uma democracia, a União Europeia deve manter-se no seu lugar.
Os altos magistrados alemães estavam confrontados com uma questão crucial: os juízes nacionais poderão permitir ao seu governo, à sua administração e ao seu parlamento violar a própria Constituição pelo facto de as instituições da União Europeia terem adoptado algumas decisões supondo ter agido dentro dos limites das suas competências?
Os magistrados constitucionais de Além-Reno lembram aqui uma evidência: ninguém pode autorizar entidades criadas pela Constituição a violar esta Constituição ou a ignorar o princípio fundamental da democracia.
A democracia é a soberania popular
O tribunal de Karlsruhe começa por lembrar que o direito de voto previsto na Lei Fundamental alemã não é um direito formal de escolher parlamentares mas um direito real de influenciar concretamente as decisões que serão aplicadas aos cidadãos.
A democracia não é o direito de votar mas o direito de escolher a política a aplicar, pelo que apenas uma política escolhida pelos cidadãos é legítima. Tudo o que não emanar da escolha livre dos cidadãos não é limpidamente democrático e portanto não pode ser aplicado na Alemanha.
A situação faz lembrar as célebres eleições dinamarquesas de 1943. Os eleitores puderam votar e escolher livremente os seus representantes mas não viviam realmente em democracia uma vez que os dirigentes eleitos estavam submetidos, em larga medida, à autoridade alemã.
O realismo junta-se ao rigor jurídico: como a democracia é o regime onde o povo (demos) exerce o poder (cratos), se os cidadãos não puderem determinar a política o regime não é democrático.
O Tribunal de Justiça da UE posto em causa
A resposta habitual das instituições da União Europeia é a de que o Tribunal de Justiça da UE decide sozinho o que está conforme ao direito da União, que as suas decisões se impõem aos próprios Estados mesmo quando a sua interpretação dos tratados é arbitrária e que não existe uma escolha democrática possível contra os tratados, isto é, as decisões das instituições da UE validadas pelo Tribunal de Justiça do Luxemburgo. A defesa das instituições europeias é que apenas o Tribunal de Justiça pode decidir se estão no seu direito – o que conduz a uma extensão sem limites dos seus poderes, à revelia da democracia e dos tratados. De cada vez que uma entidade da União Europeia viola os tratados europeus ou obriga os cidadãos a aceitarem o que recusam, essa entidade refugia-se no Tribunal de Justiça do Luxemburgo, que praticamente lhe dá sempre razão.
O Tribunal Constitucional Alemão recorda dois princípios e cada um deles é suficiente para anular este sofisma.
Por um lado, a democracia deve ter a última palavra na Alemanha mas as instituições da União Europeia não são democráticas; portanto, o governo e o parlamento alemães não podem aceitar as decisões europeias que os privam de poderes de decisão essenciais. A autoridade que é legítima, porque foi escolhida pelos cidadãos, deverá fazer respeitar a decisão dos cidadãos mesmo que seja contra as instituições da União Europeia.
Quaisquer que sejam as transferências de competências, a Constituição alemã obriga as instituições que criou a fazer respeitar a vontade democrática.
Os magistrados de Karlsruhe lembram também que o governo e o parlamento alemães foram criados pela Lei Fundamental alemã e, por isso, não poderão violar o seu próprio ADN. Uma autoridade cuja existência resulta de uma Constituição não poderá violar a Lei Fundamental. Os anteriores governos e parlamentos não poderiam assinar, com validade, tratados que submeteriam a Alemanha a um Tribunal de Justiça desprovido de qualquer legitimidade democrática.
Ora a Alemanha jamais aceitou expressamente uma tal submissão.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional Alemão recorda que os poderes da União Europeia assentam sobre o princípio da atribuição, uma grande diferença entre um Estado-nação e uma organização internacional como a União Europeia.
Os Estados dispõem, por natureza, de todos os poderes estatais porque estes existem por eles próprios. A Alemanha existia antes da União Europeia, o Reino Unido existia antes da UE e continua a existir depois de ter abandonado a UE, etc. Ao invés, a UE apenas dispõe das competências que os Estados-membros lhe quiseram transferir. A União Europeia não existe de maneira autónoma, ao contrário dos Estados Unidos ou da Rússia, que existem independentemente das suas subdivisões internas (“Estados” e “integrantes da Federação”).
O princípio da atribuição é uma das regras cardinais do direito europeu desde os anos cinquenta. Ora permitir que as instituições europeias decidam sozinhas sobre o que lhes é atribuído pode estabelecer o risco de se atingir uma extensão sem limites dos poderes por hipótese limitados conferidos à UE.
Por exemplo, no caso de se confiar a mandatários a direcção de uma empresa comum não se pode deixá-los tomar o controlo das sociedades que criaram em conjunto esta filial sob o pretexto de que a empresa comum não é controlada por qualquer sociedade em particular.
Quando o Tribunal de Justiça da União Europeia fracassa manifestamente na sua missão de controlar a extensão dos poderes das instituições europeias, os Estados-nação não são obrigados a obedecer-lhe. Os tratados não se impõem apenas aos Estados, impõem-se também (e sobretudo) às entidades criadas pelos tratados.
Deixar o Tribunal do Luxemburgo decidir sozinho sobre a extensão dos poderes da União Europeia mesmo contra os tratados provocaria uma constante erosão das competências dos Estados membros na qual os povos não consentiram. A pretensão do Tribunal de Justiça do Luxemburgo de decidir sozinho sobre a extensão dos poderes da UE assenta no artigo 19 do Tratado sobre a UE: “O Tribunal de Justiça assegura o respeito do direito na interpretação e aplicação dos tratados”; e no artigo 267 do Tratado sobre o Funcionamento da UE: “O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para estatuir, a título prejudicial, sobre a interpretação dos tratados”.
Basta ler estes textos para constatar que não permitem qualquer direito ao Tribunal de Justiça da União Europeia de estender os tratados sob a cobertura de interpretação ou de afastar a aplicação da Constituições dos Estados membros nos seus territórios.
Essa é a razão pela qual o Tribunal Constitucional Alemão censura a carência inconstitucional do Parlamento e do Governo alemães, que deixaram as instituições da União Europeia intrometer-se nos seus poderes à revelia do princípio da atribuição.
A fundamentação do Tribunal de Karlsruhe soma-se aqui ao direito de vários Estados membros. No direito francês, por exemplo, a Constituição de 1958 e os princípios constitucionais têm primazia sobre os tratados internacionais, mesmo os europeus (CE 1989 Koné; CE 1998 Sarran; CE 2007 Arcelor).
A que se aplica a decisão de 5 de Maio de 2020?
O Tribunal Constitucional de Além-Reno pronuncia-se apenas sobre o direito aplicável na Alemanha, de acordo com os princípios que orientam a sentença que adoptou. Como somente a soberania popular pode dar força de lei a uma decisão de uma autoridade pública como o Tribunal de Karlsruhe, as suas decisões apenas se aplicam às autoridades públicas alemãs.
O Tribunal Constitucional Alemão em nada se impõe, portanto, aos outros Estados; especifica apenas as obrigações que se impõem às autoridades constitucionais alemãs. Os magistrados de Além-Reno restringem-se ao princípio da territorialidade: a Constituição de um país aplica-se unicamente no seu território e nunca no estrangeiro. Contrariamente ao que poderia escrever-se aqui depois de uma leitura superficial, a sentença de 5 de Maio não emite qualquer instrução ao Banco Central Europeu: impõe apenas ao governo, ao Parlamento e ao Banco Central da Alemanha que tomem as medidas necessárias para respeitar a Constituição sem poderem abrigar-se nas opiniões do “Tribunal de Justiça” da União Europeia.
Por outro lado, é possível transpor a fundamentação para os outros Estados democráticos que conferiram competências à União Europeia. A França também é uma democracia, pelo que o seu governo e o seu Parlamento deveriam também opor-se às decisões da União Europeia que cometem excessos de poder ou que invadam as escolhas democráticas quando estão em causa os interesses essenciais do país.
Contrariamente ao que pretendia Jean-Claude Juncker, pelo menos nos direitos alemão e francês as escolhas democráticas prevalecem sobre os tratados europeus.
Euro: Alemanha lança um derradeiro ultimato aos seus parceiros europeus. Ou o Banco Central Europeu (BCE) respeita as regras dos tratados tal como a Alemanha as entende ou a Alemanha retira-se
A Zona Euro, economicamente suboptimizada e antidemocrática
Nunca será excessivo sublinhar como o euro é um handicap económico para a maioria dos países que dele são membros, com excepção da Alemanha. Com efeito, por um lado a situação de câmbios fixos dá à Alemanha a oportunidade de tirar proveito, de uma maneira cada vez mais aprofundada, da sua vantagem em termos de competitividade de preços em prejuízo dos seus parceiros da Zona Euro, sem que exista qualquer mecanismo que permita um reajustamento dos saldos externos. Por outro lado, a governança da União Económica e Monetária retirou ao Estado os seus dois instrumentos principais de política económica, as políticas monetária e orçamental, tornadas “estéreis” ao nível europeu.
A política monetária, única, proibida de coordenação com os governos e subtraída ao controlo democrático dos povos pela ideologia inaceitável da “independência” dos bancos centrais, é estruturalmente desadequada para a maior parte dos Estados do Euro. Além disso, os seus objectivos estatutários foram reduzidos o mais estritamente possível à estabilidade de preços, excluindo assim o apoio ao crescimento e a procura do pleno emprego, para os quais contribuem todos os outros bancos centrais do mundo.
Deixou de existir a política orçamental de cada Estado, completamente entravada pela acumulação de condicionalismos e handicaps incapacitantes que lhe foram impostos desde 1992. O principal entre eles é a armadilha da dívida, artificialmente criada e mantida através da interdição maastrichtiana de financiamento monetário dos Estados, que serve diretamente para assegurar o valor das receitas em detrimento do emprego e que gera um clima de crise permanente.
A interdição do financiamento monetário, nó górdio da sustentabilidade do euro
A interdição do financiamento monetário é justamente a bomba de relógio que agora vai fazer explodir o euro. Em Agosto de 2012 bastou a Mario Draghi, então novo presidente do BCE, brandir a compra sem limites pelo BCE de títulos de dívida pública dos países em dificuldades (financiamento monetário) para que a crise da Zona Euro se tenha acalmado instantaneamente depois de se ter desenvolvido durante dois anos.
Em Janeiro de 2015, passagem à acção: sete anos depois dos planos de compras de dívida massiva dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e do Japão, 22 anos depois da interdição maastrichtiana, a Zona Euro teve finalmente o seu programa de compras de dívida pública, o seu Quantitative Easing (QE) conseguido por Mario Draghi apesar da oposição alemã e denominado “Public Securities Purchasing Programme (PSPP), que esteve na origem da sentença de Karlsruhe em 5 de Maio.
Oficialmente, trata-se de contar a inflação, embora esta esteja a um passo de se tornar negativa (mandato único do BCE: a estabilidade dos preços). Na realidade, trata-se de reduzir a pressão das dívidas públicas, violando assim não a letra (compras no mercado secundário, não directamente), mas pelo menos o espírito da interdição de financiamento monetário.
Uma política de apoio massivo às dívidas públicas sob o pretexto do objetivo da inflação
Os alemães não se deixam enganar em relação a isso. Desde a sua primeira decisão sobre o caso, o Tribunal Constitucional Alemão estabeleceu uma série de condições que permitiram, no seu conjunto, deixar de considerar o PSPP como monetização da dívida pública. A condição mais determinante destes títulos de dívida pública comprados pelo Eurosistema estabelece que sejam revendidos antes do seu vencimento. Esta condição evita, de facto, que a dívida de um Estado seja anulada pela sua compra pelo banco central. Esta dívida continua a existir porque, graças a Karlsruhe, ela deve ser devolvida ao mercado.
Os resultados dessa política de QE, um desvio óbvio das proibições de Maastricht, são enormes. Para dar o exemplo de França (mas as proporções são as mesmas para cada membro do euro), no final de 2019, por aplicação desta política, cerca de 32% da dívida pública francesa total foi recomprada pela Eurosistema (6% pelo BCE e 26% pelo Banco de França). Quando os títulos dessas participações se vencem, outros são resgatados, a fim de manter o valor em aberto próximo dos 33%, limitando a auto-imposição do BCE para (sem o admitir) não violar uma das condições evocadas por Karlsruhe, vinculada aos limiares de votação nas operações de reestruturação da dívida.
Esta saída do mercado de um terço da dívida francesa foi financiada pela pura criação monetária, a “impressão de dinheiro”, sem qualquer impacto sobre a inflação que o BCE tenta desesperadamente fazer aproximar dos dois por cento mas que não consegue manter-se acima de um por cento. A impossibilidade de atingir o seu objetivo de inflação permite ao BCE justificar o prolongamento indefinido do QE, bem como a conservação dos títulos até ao seu vencimento para depois os substituir para evitar uma redução dos empréstimos pendentes. Ações todas elas interditas, em princípio, pela proibição do financiamento monetário mas justificadas pelo pretexto dos objetivos da inflação.
Os Estados membros do euro estavam fora de perigo com a monetização? O lançamento do “PEPP” em 18 de Março de 2020 deu a impressão disso – até Karlsruhe em 5 de Maio
Tendo em conta a dimensão da crise económica criada pelos confinamentos impostos às populações, o BCE, a exemplo da Reserva Federal norte-americana, dos bancos centrais japonês e britânico, lançou em 18 de Março um primeiro pacote do seu “programa de compras de urgência face à pandemia” (PEPP na sigla anglo-saxónica) que tem toda a amplitude para comprar dívidas públicas dos Estados membros. Juntando os diferentes programas do BCE em curso, mais de um bilhão de euros de dívida (8% do PIB da Zona Euro) poderiam ser imediatamente comprados pelo BCE. Este primeiro pacote deve ser seguido por outros: nos Estados Unidos, a Reserva Federal comprometeu-se a compras “sem limites”, acompanhada, pouco depois, pelo Japão.
Para começar a aplicar o programa de urgência, o BCE teve necessidade, porém, de ultrapassar os limites definidos na primeira sentença de Karlsruhe de 2017: os limites de 33% por emissor (40% deverão estar ultrapassados por França e Itália a partir do Outono de 2020); o respeito nas compras dos pesos respectivos dos diferentes Estados no capital do BCE (desde Março, através do PEPP, o BCE comprou principalmente títulos italianos e franceses – e nenhum alemão)…; e a obrigação de não relançamento no mercado até que a urgência sanitária seja ultrapassada. Com efeito, um relançamento no mercado equivaleria à anulação dos benefícios da monetização e desencadearia uma aguda crise de títulos. Por isso, é necessário fazer durar a crise. O economista chefe do BCE, Philip Lane, afirmou, por consequência, no início de Maio, que a crise económica atual deverá durar um mínimo de três anos. Depois de um primeiro QE sem limite de duração e sem relançar os títulos no mercado, encaminhamo-nos para um PEPP sem limites quantitativos e igualmente por tempo indeterminado. Para alívio de França e Itália.
A Alemanha, porém, disse não em 5 de Maio. Duração indeterminada, não relançamento de títulos no mercado antes do seu vencimento, desrespeito pela duração mínima antes da compra no mercado secundário, ultrapassagem do limite de 33% por emissor, desrespeito pelas proporções do capital do BCE: tudo coisas postas em andamento pelo PEPP mas que foram definidas por Karlsruhe, na sua sentença de 5 de Maio, como características do financiamento monetário. Mesmo que esta decisão, em teoria, incida apenas sobre o primeiro QE (o PSPP) sabe-se já que o PEPP em curso, a esperança de que haja uma monetização de 50% da dívida pública francesa, está declarado fora de lei pelo Tribunal Alemão, nem que seja por jurisprudência.
A Alemanha decidiu, portanto, tornar o euro totalmente alemão ou sair
Na sua sentença de 5 de Maio, Karlsruhe determinou que “o governo federal e o Bundestag têm o dever de tomar medidas activas contra o PEPP na sua forma actual”. Trata-se, em especial, de assegurar a “proporcionalidade” das medidas tomadas (a compra massiva de títulos) na perspectiva do objetivo (ultrapassar a inflação). A fundamentação do Tribunal é que o impacto económico muito importante (apoio às emissões de títulos dos Estados, impacto negativo sobre as taxas de juro e, portanto, as poupanças, apoios a empresas não viáveis através da compra de dívida privada, etc.) em nada é “proporcional” aos resultados muito magros obtidos em matéria de relançamento da inflação para uma meta “um pouco abaixo de” dois por cento.
Notemos de passagem que o Tribunal não se preocupa com o impacto económico trágico que teria o relançamento dos títulos de dívida pública italiana ou francesa no mercado, que provocaria, entre outras coisas, um incumprimento ou uma reestruturação sob tutela da troika em Itália. O Tribunal Alemão opõe-se, deste modo, à desproporcionalidade das ações macroeconómicas expansivas do BCE (compra de títulos) mas parece considerar normal uma desproporcionalidade recessiva das ações do BCE que defende (vendas de títulos) para respeitar o espírito da lei. Tudo muito alemão.
Ora esta proporcionalidade das acções do BCE em matéria de QE não existe e não pode, portanto, ser justificada. O governo alemão tem conhecimento disso. O Bundestag também. O Tribunal deu um prazo de três meses para que o governo alemão, o Bundesbank e o Bundestag se retirem da operação do QE. Será impossível ao Bundesbank não se retirar do PEPP, muito mais culpado ainda que o PSPP porque o qualifica como financiamento monetário. O Bundestag, totalmente confortado nas suas convicções pela sentença de 5 de Maio, não deixará cair o assunto. O confronto político no seio da Eurozona está aberto e irredutível. Na realidade, a Alemanha pôs em cima da mesa a ameaça de sair do euro.
França e Itália não podem ficar num euro “pós-Karlsruhe” se a Alemanha atingir os seus fins
A França e à Itália é impossível, com efeito, aceitarem o fim da monetização da dívida posta em vigor pelo BCE desde 2015 e acelerada a partir de Março de 2020. Esta monetização já era necessária antes da crise dos confinamentos COVID: agora tornou-se vital.
A dívida italiana atingirá este ano os 180% do PIB e a dívida francesa provavelmente 120%. Sem financiamento monetário/monetização será necessário ter em conta excedentes orçamentais primários (saldo receitas-despesas antes do serviço da dívida) da ordem dos 5% do PIB entre 30 e 50 anos para manter a dívida numa trajetória ligeiramente decrescente. O que é impossível porque um tal nível de excedentes primários tem um efeito recessivo sobre o crescimento. E sem crescimento do PIB torna-se impossível obter uma redução do rácio dívida/PIB.
Esses excedentes primários não serão macroeconomicamente sustentáveis. A Itália, é certo, consegue há alguns anos obter excedentes primários da ordem dos 1,5% a 2% do PIB, mas sem conseguir mesmo assim que a dívida seja estabilizada (a dívida cresce, mas não o PIB). Nos últimos 25 anos, desde 1995, a Itália registou 24 anos de excedentes primários e o seu esforço de consolidação orçamental é um múltiplo do alcançado pela Alemanha ou os Países Baixos. A “despesa” pública tem, portanto, um efeito multiplicador negativo em Itália há um quarto de século. Uma política de austeridade duas vezes mais dura e duas vezes mais longa apenas poderá ser aplicada sob a égide de uma tomada de controlo das finanças públicas do país por uma nova versão da troika aplicada à Grécia. Uma reestruturação da dívida iria traduzir-se à mesma por uma tomada de controlo por uma troika e teria como contrapartida uma pilhagem dos activos italianos mais rápida e ainda acrescida.
A situação francesa que, ao contrário da italiana, nunca conseguiu obter excedentes primários (e ainda bem para a economia do país) seria ainda mais difícil. Uma reestruturação da dívida francesa em troca da colocação sob tutela orçamental na forma de uma troika seria tão necessária como em Itália. Sem a monetização do BCE a dívida francesa torna-se rapidamente insustentável.
A caminho do fim da Zona Euro
A reação de pânico das diferentes autoridades relacionadas (em França, BCE, Itália) foi unânime: um não-assunto. Ignora-se ou despreza-se a sentença do Tribunal Constitucional Alemão e passa-se à frente. Isso é conhecer mal a Alemanha. A Alemanha não cederá e pretende que o BCE se torne alemão na lógica e no seu funcionamento. Ora a França não tem a possibilidade de aceitar o fim da monetização do QE na sua forma actual. E a Itália também não sobreviverá no euro sem o QE. Antes da decisão de Karlsruhe já estava em causa a instauração de um controlo de movimentos de capitais em Itália de maneira a retirar meios às famílias italianas para aliviar a dívida, mesmo que o PEPP estivesse a pleno regime e, em teoria, fosse suficiente. Com a instalação do controlo de capitais a Itália encontrar-se-ia (como a Grécia a partir de Julho de 2015) numa Zona Euro especial, possível antecâmera de uma saída definitiva da União Monetária.
Quando o Bundesbank, na sequência do prazo de três meses estabelecido por Karlsruhe, se retirar das operações de compras de títulos do BCE, começará então, como lhe recomenda o Tribunal, a relançar no mercado centenas de milhares de milhões de Bunds comprados no quadro do QE. Estas revendas deverão fazer subir as taxas de mercado na Alemanha, efeito ardentemente desejado pelos titulares de poupanças mas que será contrabalançado pela fuga de capitais em proveniência de Itália e de França justamente para comprar dívida alemã. A própria Alemanha será, por isso, forçada a instituir um controlo de capitais, antecâmara da sua própria saída da União Monetária.
Em resumo, ou a Alemanha sai do euro ou a Alemanha fica porque teve ganho de causa com o BCE. Neste caso, porém, devem ser a Itália e a França a sair para retomar o controlo dos seus bancos centrais de maneira a tornar as suas dívidas sustentáveis. Esta oposição frontal é irredutível. Neste contexto, a melhor solução coletiva será uma planificação concertada do desmantelamento da Zona Euro.
Mas, como teorizou Hegel, a História é trágica antes de tudo.
22/Maio/2020
[1] https://twitter.com/philippejeanpr1
[2] https://twitter.com/SebCochard_11
[3] www.bundesverfassungsgericht.de/…
O original encontra-se em Vu du Droit e a tradução em
https://www.oladooculto.com/noticias.php?id=792
Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .
04/Jun/20

ÚLTIMAS NOTÍCIAS