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quinta-feira, 28 março, 2024

O Estado Islâmico em outro patamar

A expulsão do EI de Mossul é uma vitória parcial (Safin Hamed/AFP)
Não se deve superestimar as recentes derrotas do grupo. O Califado deu lugar a uma organização transnacional
por Hassan Hassan —Carta Capital

Na véspera da batalha para expulsar o Estado Islâmico de Mossul, a propaganda do grupo recebeu um golpe potencialmente importante, mas rapidamente esquecido. Rebeldes sírios apoiados pela Turquia removeram o EI de Dabik, pequena cidade ao norte da Síria, onde Mohammed Emwazi, o extremista britânico conhecido como Jihadi John, decapitou Peter Kassig, americano dedicado a trabalhos humanitários.

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John declarara então: “Aqui estamos, enterrando o primeiro cruzado americano em Dabik, aguardando ansiosamente a chegada do resto de seus exércitos”. Com a ascensão do Estado Islâmico em 2014, a cidade serviu como centro de sua propaganda.

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Nessa fase, o EI prometeu um duelo final entre as forças do Bem e as do Mal, uma batalha épica supostamente prevista pelas profecias islâmicas do século VII. O EI deu o nome da cidade à sua principal revista de propaganda.

Para pintar sua história como algo coerente previsto por seus fundadores visionários, cada edição da revista começava com uma citação de Abu Musab al-Zarqawi, fundador do grupo no Iraque em 2004: “A fagulha foi acesa aqui no Iraque, e seu calor continuará aumentando, com a permissão de Alá, até que queime os exércitos dos cruzados em Dabik”.

Al-Zarqawi
A profecia de Al-Zarqawi não se confirmou no Iraque (Foto: AFP)

Dabik foi, porém, retomada por militantes sunitas. A expulsão do EI da cidade foi uma oportunidade para dar um golpe duplo em sua propaganda, não apenas pela falha na profecia, mas pelo fato de o grupo ter sido derrotado pela própria população que afirma representar, em cujo nome diz lutar contra o mundo.

O EI rapidamente reviu a profecia de Dabik, dizendo que ainda se aplicava, mas a hora ainda não havia chegado. Os extremistas moveram as balizas, tanto figurativa quanto literalmente. Os combatentes em fuga teriam retirado e levado consigo as placas com o nome da cidade.

A oportunidade de minar a narrativa do EI perdeu-se e os habitantes mal se lembram de Dabik hoje. Um dia depois de sua derrota na região, o EI começou a pintar Mossul como o verdadeiro local da batalha épica.

E de uma perspectiva militar, como oficiais americanos rapidamente admitiriam, a batalha de Mossul não foi nada parecida com o que eles tinham visto contra um grupo terrorista. Foi a maior campanha na história recente do Iraque, com uma força de cerca de 60 mil combatentes mobilizados contra o EI, empregando um poder de fogo formidável dos EUA. Para ambos os lados, foi sangrenta e intensa.

O major-general Sami al-Aradi, comandante das forças especiais do Iraque, disse ao New York Times: “Participei de todas as lutas no Iraque, mas nunca vi nada como a batalha pela cidade velha. Lutamos metro a metro. E quando digo isso, falo literalmente”.

Os iraquianos saíram, no entanto, vitoriosos. Mossul, o mais populoso e simbólico enclave do EI, foi libertado. A Grande Mesquita de al-Nuri, na qual Abu Bakr al-Baghdadi fez seu discurso de ascensão como “califa”, foi recapturada depois de seus combatentes a explodirem para negar ao governo a possibilidade de agravar o insulto anunciando a libertação da mesquita.

O grupo também deverá perder seu segundo pilar, Rakka, na Síria, até o fim do ano. O Califado parece desmoronar.

Nesse contexto, as perguntas mais comuns têm sido: o que virá a seguir? Para onde irá o Estado Islâmico depois de Mossul e Rakka? Que nível de ameaça um EI pós-Califado representará para a região e o mundo?

O consenso de observadores e políticos é de que o Estado Islâmico está longe de terminar. Mas pouco se disse sobre a extensão dos danos causados pela organização e contra ela. Quatro aspectos podem ser esclarecedores:

1. O EI perdeu o Califado, mas ganhou uma organização transnacional que não existia três anos atrás. Grosso modo, uma organização concentrada no Iraque, a Al-Qaeda no Iraque, cujos fundadores vieram de vários campos de batalha jihadistas, foi um grupo localizado até que se expandiu para a Síria em 2013 e se tornou o Estado Islâmico no verão de 2014. Desde então, tentou desenvolver ramificações e células em toda a região e além dela.

O Estado Islâmico é, possivelmente, um grupo internacional bem desenvolvido, que pretende reivindicar o manto da jihad global da Al-Qaeda. O mundo enfrenta hoje uma segunda ameaça jihadista global que não enfrentava antes de 2014, ameaça cujo modelo opera diferentemente daquele da Al-Qaeda.

O EI enfatiza, entre outros pontos, a jihad sectária contra os muçulmanos xiitas, cristãos coptas e outras minorias de uma maneira que Al-Qaeda não faz.

Isis armado
O Estado Islâmico tornou-se mais ameaçador

2. O EI está mais forte do que antes de seus avanços militares em junho de 2014. Ele se tornou mais poderoso conforme controlou território, algo que lhe permitiu ganhar dinheiro e recrutar entre as populações locais com base em seu sucesso militar.

Essa organização foi significativamente enfraquecida em comparação com o apogeu de sua força depois de ter capturado um terço do Iraque e a metade da Síria.

Comparado com o que havia sido antes, o EI está significativamente mais forte, maior e mais ameaçador para o Iraque e para a Síria. Como grupo insurgente local, o EI hoje tem uma rede maior, pois se expandiu por vários territórios nos dois países. Suas estruturas internas foram minimamente danificadas, se não reforçadas.

O grupo ainda controla vários baluartes nos dois países, e as forças iraquianas continuam incapazes de recapturar esses pontos fortes sem um grande apoio aéreo dos Estados Unidos, indício de que o grupo ainda é uma força militar capaz.

O EI continuará, provavelmente, a manter algum território no quarto aniversário de seu chamado Califado, nesta época no próximo ano. As autoridades dos EUA esperam que a luta em Rakka se arraste até o fim do ano e a complexa operação para expulsá-lo de Deir Ez-zor leve mais ou menos o mesmo tempo depois disso.

Os americanos estão em disputa com o regime sírio e seus aliados iranianos e russos sobre quem lutará em Deir Ez-zor e em que áreas.

3. Os enclaves do Estado Islâmico em Al-Anbar, embora possivelmente fáceis de recapturar, provavelmente continuarão a ser esconderijos de onde a organização pode operar e lançar ataques.

Essas áreas de fronteira, que podem ser descritas como a “terceira capital” do grupo depois de Mossul e Rakka, são centrais para a sua estratégia de operações rápidas no pós-Califado. Foi também nelas que o EI começou seu avanço para grande parte do Iraque e da Síria em 2014.

4. Finalmente, vale ter em mente que o EI custou caro ao Iraque e à Síria em termos de desenvolvimento econômico. Embora sua derrota traga alívio para as comunidades afetadas e incentive a esperança de um novo começo, o Estado Islâmico causou enorme destruição à infraestrutura e ao tecido social de muitas áreas.

A euforia deverá se desgastar e a triste realidade dos conflitos e tensões no Iraque e na Síria começará novamente a aparecer. O otimismo enganoso que acompanha a fadiga natural depois das guerras pode levar a erros de cálculo.

Os habitantes estão majoritariamente aliviados em ser libertados do EI, mas a realidade que permitiu sua ascensão em 2014 permanece e até se agravou. Uma volta ao mesmo ciclo não é, porém, inevitável.

Existe uma janela de oportunidade para as comunidades se afastarem do ciclo de violência, mas não é um convite à interferência de políticos e milícias ligadas ao governo nem é permanente. Um retorno ao ciclo é uma possibilidade real.

Como ameaça, o EI foi contido em grande medida. A perspectiva de uma expansão descontrolada no rastro de seu anúncio de um Califado é remota. Isso não quer dizer que essa organização acabou.

Significa, porém, que o mundo hoje tem uma oportunidade de pensar mais claramente sobre as causas fundamentais desses grupos e como extirpá-los.

Os grupos extremistas tendem a ser mais enérgicos do que os governos no modo como exploram as dificuldades locais. O EI também se provou mais adaptável do que as forças de segurança ao enfrentar as realidades em mutação.

Ele rapidamente salvou sua propaganda quando perdeu Dabik e mexeu nas balizas. Dabik foi uma oportunidade perdida. Mossul também foi uma oportunidade perdida.

Como operação militar, a batalha de Mossul foi impressionante. Pela primeira vez, forças peshmerga lutaram ao lado de forças iraquianas, e milícias sectárias foram, em geral, mantidas fora da luta na cidade.

Mas a operação poderia alcançar mais do que isso. Mossul e Rakka oferecem uma oportunidade, diante das questões políticas contenciosas que cercam as duas cidades, de traçar um claro mapa do caminho político para um novo Iraque e Síria.

Nas duas cidades, os EUA e os países aliados têm chance de ocupar um grande papel na conversa sobre o que deve vir depois da libertação dessas áreas da influência do EI. Em vez disso, o medo é de que prevaleçam as mesmas questões de divisão sectária, corrupção e incompetência do governo, as mesmas circunstâncias que permitiram a ascensão do EI.

*Hassan Hassan é coautor de Isis: Inside the Army of Terror (best seller da lista do New York Times) e bolsista sênior no Instituto Tahrir para Política no Oriente Médio

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