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quinta-feira, 18 abril, 2024

O esquerdismo, estado supremo do imperialismo (1)

Quadro de Solveig Inga.

Bruno Guigue [*]

O colapso da União Soviética significou o fim do comunismo? Aqueles que proferiram a oração fúnebre podem ter considerado os seus desejos realidade. Ao contrário do que acreditaram, o socialismo real não desapareceu de corpo e alma. O facto de a bandeira vermelha não pairar mais sobre o Kremlin não significa a sua extinção no planeta: 1,5 mil milhões de chineses vivem sob a liderança de um Partido Comunista que não mostra sinais de perder força. O Vietnã socialista está indo muito bem. Na Rússia, o Partido Comunista continua a ser a principal força de oposição. Os comunistas governam o Nepal e o estado indiano de Kerala. Apesar do bloqueio imperialista, os cubanos continuam construindo o socialismo. Os comunistas tiveram êxitos eleitorais no Chile e na Áustria.

Dizer que o comunismo deixou apenas más lembranças e pertence a um passado longínquo é cometer um duplo erro de análise. Ele não somente contribuiu para o bem-estar de um quarto da humanidade, mas também não há indicação de que tenha dito a sua última palavra. Ele não está condenado pelo seu passado nem privado de um futuro. Pode registar a seu crédito a luta vitoriosa contra o nazismo, uma contribuição decisiva para a queda do colonialismo e uma resistência obstinada ao imperialismo. Este triplo sucesso é suficiente para dar-lhe cartas de nobreza revolucionárias. O seu passado é também a longa série de avanços sociais e os milhões de vidas arrancadas da pobreza, analfabetismo e doenças.

O comunismo foi e é um esforço titânico para tirar as massas da ignorância e dependência. Permanecendo na URSS em 1925, o pedagogo Célestin Freinet expressou “sua surpresa e seu assombro, especialmente se considerarmos as condições em que este imenso progresso foi feito”. Pedagogos russos, escreveu ele, “encontraram na sua dedicação à causa do povo e na atividade revolucionária clareza suficiente não apenas para elevar a sua pedagogia ao nível da pedagogia ocidental, mas para ir mais além, e de longe, das nossas tímidas tentativas”.

Nenhuma outra força política poderia ter tirado do subdesenvolvimento os países atrasados, coloniais e semicoloniais, pelos quais os comunistas foram responsáveis no século XX. O que seria a Rússia se tivesse permanecido nas mãos de Nicolau II ou Alexander Kerensky? O que seria a China se não tivesse escapado a Chiang Kai-shek e à sua camarilha feudal? Onde estaria Cuba se tivesse permanecido nas garras do imperialismo e seus mercenários locais?

A revolução comunista em todos os lugares foi a resposta das massas proletarizadas à crise estrutural de sociedades em degradação, num cenário de atraso económico e cultural. Se essa revolução aconteceu, foi porque respondeu às emergências da época. Na Rússia, na China e em outros lugares, foi fruto de um profundo movimento na sociedade, de um amadurecimento das condições objetivas. Mas sem o Partido, sem uma organização centralizada e disciplinada, tal resultado revolucionário seria impossível. Na ausência da liderança personificada pelos comunistas, com que vanguarda as massas poderiam ter contado? E por falta de alternativa, a que desespero teria levado o aborto das promessas revolucionárias?

O facto das formas de luta pelo socialismo não serem mais as mesmas não altera a questão. Esta luta ainda está viva ainda hoje. Os países capitalistas desenvolvidos estão em crise, e a única solução para essa crise é a formação de um bloco progressista em oposição ao bloco burguês. China, Vietnã, Laos, Síria, Cuba, Kerala, Nepal, Bolívia, Venezuela e Nicarágua estão a construir um socialismo original. Fingir ser comunista enquanto se lança um olhar desdenhoso para essas conquistas concretas é ridículo. Mas é o que fazem as incontáveis capelinhas do esquerdismo ocidental.

O trabalho diário dos médicos cubanos, professores venezuelanos e enfermeiras nicaraguenses, a seus olhos, não atinge a dignidade da revolução mundial. Para esses “vestais” do fogo sagrado, tais conquistas são modestas demais para despertar o entusiasmo de um futuro brilhante. Guardiões intransigentes da pureza revolucionária, os esquerdistas adoram distribuir cartões vermelhos para aqueles que constroem o socialismo. Sem agirem em casa, ditam julgamentos sobre o que os outros fazem. E o pior é que aplicam os critérios da ideologia burguesa.

Quando a revolução cubana derrubou Batista, os esquerdistas inventaram o slogan: “Cuba sim, Fidel não”. Com este slogan ridículo, reivindicaram defender a revolução enquanto condenavam a “ditadura castrista”. Mas o que é a revolução cubana sem o castrismo? E como assumir a via do socialismo, senão abafando uma oposição apoiada pelo imperialismo? A ofensiva ideológica contra Fidel Castro não refletiu apenas indiferença às condições da luta travada pelo povo cubano. Apoiou também tentativas de derrubar o poder revolucionário.

Durante os eventos de Tiananmen em junho de 1989, temos o mesmo cenário. Explodindo de entusiasmo pela rebelião, o comité da Quarta Internacional proclama “a vitória da revolução política na China”. Ferida pela repressão que a atingiu, expressou a sua “solidariedade inabalável com os trabalhadores e estudantes que estão comprometidos numa luta impiedosa contra o regime estalinista assassino em Pequim.” Um “massacre sangrento” que mais uma vez revela “a depravação contra-revolucionária do estalinismo, o mais insidioso e sinistro inimigo do socialismo e da classe operária”. Quando se conhece a substância do assunto, essa afirmação é estonteante. Porque “o Massacre de Tiananmen” é tema de uma narrativa particularmente falsa, impondo-se lembrar os factos.

Primeira distorção em relação à realidade:  a composição do movimento de protesto. Os media ocidentais descrevem-no como um movimento monolítico, exortando o Partido Comunista a renunciar e pedindo o estabelecimento de uma “democracia liberal.” Isto está incorreto. A cuidadosa investigação publicada pela Mango Press em 4/junho/2021 aponta que o movimento inclui não apenas estudantes, “o grupo mais barulhento”, mas também “muitos operários, migrantes e trabalhadores rurais da região de Pequim, participando na ação, cada grupo tendo uma orientação política diferente. Alguns dos manifestantes eram marxistas-leninistas, outros maoistas radicais, outros liberais”.

Segunda precisão, igualmente importante: “Esta não é uma conspiração sombria do governo chinês, mas um fato confirmado:  uma operação conjunta MI6-CIA conhecida como Operação Yellowbird lançada para formar “fações pró-democracia”. Tríades foram enviados de Hong Kong para as universidades chinesas, para treinar estudantes na guerra de guerrilha, armando-os com bastões de ferro e ensinando-lhes táticas de rebelião. O objetivo final da Operação Yellowbird era infiltrar indivíduos no movimento de protesto, conseguindo infiltrar mais de 400”.

As declarações dos porta-vozes do movimento também são muito esclarecedoras. Os mais famosos no Ocidente são Chai Ling e Wang Dan. Como relata o documentário americano The Gate of Heavenly Peace. “Chai Ling foi entrevistada por Peter Cunningham em 28/maio/1989. Eis o que ela disse: “O tempo todo, guardei isto para mim porque, sendo chinesa, pensei que não deveria falar mal dos chineses. Mas não posso às vezes deixar de pensar – e dizer também – vocês, chineses, não valem a minha luta, não valem o meu sacrifício! O que realmente esperamos é derramamento de sangue quando o governo estiver pronto para massacrar descaradamente o povo. Somente quando a praça estiver inundada de sangue é que o povo chinês abrirá os olhos. Só então ele estará verdadeiramente unido. Mas como posso explicar tudo isto aos meus camaradas?”

O ícone da Praça Tiananmen votava o seu povo ao martírio, mas optou pela fuga para os Estados Unidos via Hong Kong. Conclusão da Mango Press:   “Obviamente, a liderança fabricada pelos serviços ocidentais para este protesto tinha um objetivo claro: criar as condições para um massacre na Praça Tiananmen. O protesto começou como uma demonstração de força pacífica para apoiar Hu Yaobang, mas foi cooptado por agentes estrangeiros”.

A forma como as autoridades chinesas finalmente restauraram a ordem faz parte da crítica do caso. Ao contrário da versão ocidental, mostraram grande moderação até que o motim estourou na noite de 3 a 4 de junho. De 16 de abril a 20 de maio, as manifestações puderam continuar sem contratempos. No dia 20 de maio, foi decretada a lei marcial e os manifestantes receberam ordem, por meio de noticiários e alto-falantes da praça, de voltar para suas casas.

Algumas unidades militares tentaram entrar em Pequim, mas foram impedidas pelos manifestantes nas zonas de entrada. A 2 de junho, o exército fez a sua primeira tentativa de evacuar a Praça Tiananmen. As tropas do Exército de Popular de Libertação (EPL) enviadas para o local possuíam equipamento de choque rudimentar, apenas um em cada dez soldados armados com uma espingarda metralhadora. Seguindo ao longo da Avenida Chang’an, as tropas foram atacadas pela multidão. Alguns soldados foram desarmados, outros molestados pelos desordeiros.

A tropa segue finalmente para a Praça Tiananmen, onde soldados desarmados persuadem os estudantes a irem embora. Mas na noite de 2 para 3 de junho, a violência explodiu nos becos e ao longo da Avenida Chang’an. Os desordeiros que confiscaram armas aos soldados estão ao ataque. Dezenas de veículos blindados são incendiados com cocktails molotov e muitos soldados desarmados são capturados. De acordo com o Washington Post de 5/junho/1989, “os combatentes antigovernamentais estão organizados em formações de 100 a 150 pessoas. Eles estão armados com cocktails molotov e bastões de ferro, para enfrentar o EPL, que ainda estava desarmado nos dias que antecederam 4 de junho”.

Barricadas são erguidas e os confrontos multiplicam-se. Em seguida, o motim transforma-se em massacre. Soldados capturados nos transportes de tropas são linchados ou queimados vivos, como o Tenente Liu Guogeng, o Soldado Cui Guozheng e o Primeiro Tenente Wang Jinwei. Em 3 de junho, o número de mortos já era de quinze soldados e quatro manifestantes. O governo então ordenou que o EPL recuperasse o controlo das ruas. Durante a noite de 3 a 4 de junho, os militares entraram em massa na cidade e reprimiram o tumulto. Mas não houve combates na Praça Tiananmen. Nenhum tanque esmagou um manifestante.

Após os acontecimentos de 4 de junho, o governo estimou o número de vítimas em 300 pessoas: soldados, policiais e manifestantes. Um recorde em que o mundo ocidental imediatamente qualificou como mentiroso: os media falaram de 1000 a 3000 e, finalmente, 10 mil vítimas. Uma semana depois, o governo chinês estabeleceu o número oficial de mortos em 203. Enquanto isto, a foto do homem parando a coluna de tanques na Praça Tiananmen percorre o mundo. Ilustra a bravura de um homem sozinho, diante de veículos blindados que simbolizam a brutalidade da repressão. Mas no vídeo completo, vemos que a coluna para de forma a não passar pelo corpo. O homem então sobe no primeiro tanque e bate na escotilha.

Em seguida, desce lentamente do tanque e é levado pelos seus amigos que se lhe juntaram. Os tanques então continuam para Chang’an, voltando à sua base. Isso é tudo. O génio propagandista fabricou um símbolo planetário com um não-evento. “O relato dos eventos pelos media ocidentais, liberais e ditos livres, não faz sentido”, conclui o artigo da Mango Press. “Não há uma explicação da razão pela qual os alunos protestaram na Praça e muito raramente há uma discussão sobre os objetivos muito díspares dos grupos de alunos. Se acreditarmos que uma coluna de tanques para por causa de um homem, após o assassinato de 10 000, que mentiras ainda mais ridículas o ocidente escreverá sobre a China?”

“Na Praça Tiananmen em 4/junho/1989, não houve massacre. Houve combates intensos nas ruas laterais entre os elementos armados contra-revolucionários, a polícia e o exército. O número de mortos em todo o evento foi de 241 no total, incluindo soldados, policias e manifestantes. Apesar da violência, não houve execuções. Wang Dan, líder do protesto e instigador da violência, não conseguiu fugir para o ocidente e foi preso. Foi condenado a quatro anos de prisão, mais dois anos de detenção enquanto aguardou o julgamento por incitar a violência contra-revolucionária. O homem recebeu apenas seis anos de prisão. Agora vive livremente no maravilhoso mundo do ocidente capitalista. O verdadeiro motivo pelo qual o ocidente é forçado a mentir sobre os eventos de hoje é para salvar a face. Tentaram derrubar o governo soberano da China através da violência fascista, a sua tentativa de golpe foi esmagada”.

Não poderíamos dizer melhor. Mas a realidade da interferência imperialista e a nocividade das suas mentiras escapam ao radar da esquerda radical. Contaminada por um trotskismo de baixo nível que faria o próprio Trotsky corar de vergonha, obstina-se tanto mais contra os Estados socialistas quanto é totalmente inofensiva para os Estados capitalistas. Impotente e marginalizada nos seus países, exala o ressentimento contra o socialismo real. Incapaz de compreender a importância da questão nacional, despreza o anti-imperialismo legado pelos nacionalismos revolucionários do Terceiro Mundo e pelo movimento comunista internacional.

Em vez de se por na escola de Ho Chi Minh, Lumumba, Sankara, Mandela, Castro, Nasser, Che Guevara, Chavez e Morales, lê o Le Monde e assiste à France 24. Acredita que há bons e maus, que os bons são como eles e que é preciso dar pancada nos maus. Fica indignada – ou incomodada – quando o chefe da direita venezuelana, treinado nos Estados Unidos pelos neocons para eliminar o chavismo, é preso por tentativa de golpe. Quando o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) enfrenta dificuldades eleitorais, grita a par dos lobos imperialistas e apressa-se a denunciar alegados “abusos”.

Finge não saber que a ruptura do abastecimento foi causada por uma burguesia importadora que negocia em dólares e organiza a paralisação das redes de distribuição na esperança de minar a legitimidade do presidente Maduro. Indiferente aos movimentos de fundo, esta esquerda contenta-se em participar na agitação à superfície, como se para ela a política não fosse um campo de forças, mas um teatro de sombras. Não admira, então, que passe ao lado das lições dadas pelas tentativas de desestabilização que se abatem sem cessar sobre a revolução bolivariana.

A primeira lição é que não se pode construir uma alternativa política sem correr o risco de um confronto decisivo com os donos do capital, estejam eles dentro ou fora das fronteiras. Por alternativa política, entenderemos exatamente o oposto do que se denomina “alternância”, ou seja, a simples troca de equipas no poder. É um processo muito mais profundo, que não se contenta com apenas algumas modificações superficiais, mas que põe em ação explicitamente as estruturas que determinam a distribuição da riqueza.

Esta alternativa política identifica-se, portanto, com a retoma expressa pelo povo dos atributos da soberania. Pressupõe o rompimento dos laços que ligam o país ao capital estrangeiro dominante e ao capital comprador local que dele depende. Mas é uma tarefa colossal. Mal empreendido, o peso objetivo das estruturas é combinado com a guerra encarniçada travada pelos ricos para manter seus privilégios de classe.

A imprensa internacional descreve a Venezuela como um país falido, mas esquece-se de precisar que essa falência é a de um país capitalista latino-americano. O país fez progressos significativos, mas a falta de transformação estrutural deixou-o no sulco da dependência económica. Arruinado pela queda dos preços do petróleo, não soube – ou não pôde – construir um modelo alternativo. Se os bandidos da direita venezuelana se soltam nas ruas de Caracas sob os aplausos da imprensa burguesa e das chancelarias ocidentais, é porque a Venezuela não é Cuba. E se a Venezuela tivesse embarcado num processo de desenvolvimento autónomo não capitalista, provavelmente não haveria bandidos em Caracas.

 

(continua)

[*] Analista político e autor de vários livros, com mestrados em filosofia e em geopolítica. Em 2008, o ministro do Interior demitiu-o do cargo de sub-prefeito depois de ter publicado numa tribuna livre críticas à política israelense. Atualmente ensina filosofia num liceu.

O original encontra-se em www.legrandsoir.info/le-gauchisme-stade-supreme-de-l-imperialisme.html

Este artigo encontra-se em resistir.info

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