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quinta-feira, 18 abril, 2024

O aborto, o papa e a “bolsa estupro”

Hay que hablar, hablar y hablar. (Papa Francisco sobre o estupro de crianças. 24/06/2022)

Entonces, hablemos. Tijucas, município de Santa Catarina, tem menos de 40 mil habitantes. Lá, uma criança de 11 anos, foi estuprada e engravidou. Quando estava na 22ª semana de gravidez, em maio, a mãe buscou auxílio jurídico e médico para fazer o aborto, que nesse caso é legal. A juíza Joana Ribeiro Zimmer e a promotora Mirela Dutra, com vestidos cor de rosa, subiram na goiabeira da pastora evangélica Damares Alves, ex-ministra da Mulher e da Família e, lá do alto, buscaram induzir a menina a não abortar.

A juíza e a promotora recomendaram que a vítima aguentasse mais duas semanas para aumentar a chance de sobrevida do feto. Na audiência, a magistrada sugeriu que escolhesse logo o nome do seu bebê e se referiu ao estuprador como “o pai”, só faltou perguntar se a menina queria casar com ele. Depois, as duas autoridades decidiram mantê-la em um abrigo para evitar que abortasse. O Hospital Universitário em Florianópolis já havia contrariado a legislação vigente e se recusado a fazer a retirada do feto.

Damares – quem lembra? – tentou impedir aborto autorizado pela Justiça da menina capixaba estuprada aos dez anos, em 2020, quando defendeu a tramitação do Estatuto do Nascituro que, como compensação, propõe a tal da “bolsa estupro” – uma pensão alimentícia de um salário mínimo “ao nascituro concebido em um ato de violência sexual, até que complete dezoito anos”. Dessa forma, como até Joe Biden sabe, o estuprador passa a ter o direito de fazer uma mulher conceber o filho da violência.

– Quando calamos e não enfrentamos o problema, estamos autorizando a violência sexual contra crianças e adolescentes – disse Luciana Temer, diretora do Instituto Liberta, em audiência com o Papa Francisco nesta sexta (24). O Papa, com a cabeça bem arejada, concordou e recomendou hablar y hablar sobre isso para romper o silêncio cúmplice.

O sigilo

A filha do ex-presidente Michel Temer, secretária de Assistência Social da Prefeitura de São Paulo na gestão de Fernando Haddad, com quem se identifica, é advogada e professora de direito da PUC-SP e tem hablado y hablado, combatendo a violência sexual infantil no Brasil, cujos dados são assustadores.

– No ano passado, a Rede Feminista de Saúde divulgou relatório sobre Estupro, envolvendo menores de 14 anos no Brasil. Sua pesquisa, que cruzou dados do Sistema Nacional de Nascidos Vivos e do Sistema de Informação do Data-Sus, revelou que quatro meninas são estupradas a cada hora e que uma média anual de 25 mil meninas entre 10 e 14 anos se tornam mães – disse Luciana ao Papa.

Os números alarmantes mostram que 60,6% dos estupros registrados em 2020 e 2021 foram contra meninas menores de 13 anos. Luciana atribui esse alto índice ao fato de que as violências sexuais são invisibilizadas e silenciadas. Não falemos nisso. O direito ao sigilo foi invocado pela juíza Joana Ribeiro Zimmer, contra quem os deputados do Psol na Câmara entraram na quarta (22) com uma ação no Conselho Nacional de Justiça:

– O sigilo serve para proteger crianças e adolescentes da exposição pública e não para acobertar práticas ilegais e interpretações distorcidas do princípio da proteção integral – ressalta a ação da bancada do Psol. Parece até o Coiso que, para ocultar suas tramoias com Milton Ribeiro, ex-ministro da Educação, decreta cem anos de sigilo sobre a visita de pastores ao Palácio do Planalto, com o beneplácito do Poderoso Centrão.

O princípio, que é sempre invocado para justificar as violências criminosas e institucionais contra crianças, contraditoriamente manifesta a “defesa da vida” e trata quem pensa diferente de “homicida”. O pior é que há quem sinceramente acredite nisso. Vídeos mostram grupos de fanáticos, que cercaram hospital no Espírito Santo para impedir o aborto legal da menina de 10 anos e receberam os médicos aos gritos de “assassinos”. A criança grávida foi levada para Pernambuco, onde os fanáticos repetiram a dose.

Cultura da morte

Na realidade, se trata de “uma cultura da morte” ancorada no “furacão do ódio” movimentado pelo bolsonarismo. O Coiso e seus acólitos inflamaram uma reação fanática à lei que protege crianças estupradas – observa a antropóloga Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB), que há anos luta pela descriminalização do aborto. O pastor Malafaia naturaliza a violência sexual contra crianças, quando vocifera que “Pior que estupro é assassinato”. Que o diga a deputada Maria do Rosário!

O Coiso nunca se preocupou com a vida de ninguém, nem no auge das mortes por covid-19, em que debochou dos mortos. Ele já se manifestou em favor da tortura e da proliferação de armas e elogiou a Cavalaria Americana por exterminar indígenas. Seu discurso antiaborto em caso de estupro visa manter a fidelidade do eleitorado bovino, explorando a cegueira religiosa de quem é incapaz de perceber que se trata de uma questão de saúde pública.

“Para salvar vidas, é preciso considerar que os abortos são 14 vezes mais seguros do que um parto” – asseguram especialistas. Os dados recentes do SUS são cristalinos. Em 2020, morreram 1.549 meninas de até 14 anos por causas relacionadas à gravidez. Por isso a lei brasileira permite o aborto em casos de estupro ou quando há risco de vida da gestante. Mas defensores do uso de armas letais são sempre contra políticas de saúde pública, que levem em conta a vida de crianças estupradas.

Nos Estados Unidos, os ministros “terrivelmente evangélicos” nomeados por Trump suspenderam nesta sexta (24) o direito constitucional ao aborto, um dia depois de decidir que o porte de armas em público não pode ser restringido por leis estaduais. Um retrocesso que vai no sentido contrário ao da chamada “Maré Verde” com a recente descriminalização do aborto na Colômbia, no México na Argentina e no Chile. O Papa Francisco tem razão. Não podemos calar: “hay que hablar, hablar y hablar”.

P.S. Ver também:

1. A MENINA, O ABORTO, O BISPO E NÓS, OS EXCOMUNGADOS –  Crônica de 2009  http://www.taquiprati.com.br/cronica/29-a-menina-o-aborto-o-bispo-e-nos-os-excomungados

O bispo José Cardoso Sobrinho, herdeiro legítimo da Inquisição e da intolerância, excomungou todos os adultos que participaram da operação: os pais da menina, os médicos, o motorista da ambulância, o transportador da maca, as atendentes, os enfermeiros que esterilizaram os instrumentos cirúrgicos, as representantes de ongs em defesa da mulher, enfim todo mundo. E o padrasto? Foi também excomungado? Necas de pitibiribas! Esse foi o único que escapou. Pressionado pelo Jornal Hoje, da Rede Globo, o bispo afirmou que o pedófilo estuprador, já preso pela lei dos homens, não foi excomungado pela lei divina: – “Esse padrasto cometeu um crime enorme – admitiu – mas não está incluído na excomunhão. Ele cometeu um pecado gravíssimo. Agora, mais grave do que isso, sabe o que é? O aborto, eliminar uma vida inocente”.

2. O ABORTO NA HISTÓRIA DA CAROCHINHA. Crônica de 1995.  http://www.taquiprati.com.br/cronica/439-o-aborto-na-historia-da-carochinha

“Defender o direito ao aborto não significa patrocinar a sua prática indiscriminada, estimulando e incentivando a sua realização, inclusive porque se trata de decisão pessoal sempre dolorosa. Significa apenas devolver a liberdade de decisão a quem deve tê-la. Corajoso foi o cardeal de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, que aconselhou as mulheres estupradas a procurarem imediatamente um médico, se assim o desejarem, para impedir a continuação da gravidez”.

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