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sexta-feira, 29 março, 2024

No Encontro das Águas, o Corona Vírus

José Ribamar Bessa Freire

O ano é 1957 ou 1958. O navio francês se aproxima do porto de Manaus.  Tripulantes e turistas correm para o tombadilho de onde contemplam, embevecidos, o Encontro das Águas. No crepúsculo, avistam uma sombra de bubuia agarrada numa lata de querosene, que servia de boia. O vulto tem nome: é o Nininho, filho do seu Santino lá do Beco da Escola, bairro de Aparecida. Ele havia saído do igarapé de São Vicente, remando uma canoa que naufragou na confluência do Negro e Solimões. O comandante – a lei obriga – baixa um escaler e recolhe o náufrago que permanece uma semana num camarote, comendo cassouletbouillabaisse e de sobremesa petit gâteau, enquanto o navio espera para atracar.

A foto do nosso herói, filho de um carpinteiro pobre, ao lado do governador Plínio Coelho, aparece na primeira página do Diário da Tarde. Despercebido, morreria afogado. Foi salvo pela beleza do Encontro das Águas, que atraiu o olhar dos franceses para aquele cenário, símbolo de nossa identidade coletiva, entranhado na alma e nas tripas de qualquer amazonense e tatuado no próprio Brasão do Estado do Amazonas, assim como no Brasão do Município de Manaus.

O episódio é uma metáfora de Manaus, que morrerá afogada se esse patrimônio for implodido pela construção de um megaterminal portuário para navios cargueiros, como planeja a empresa Lajes Logística S/A e seus acólitos xexelentos. A área, com recursos pesqueiros que garantem a subsistência da população ribeirinha de baixa renda, tem “importância histórica para o mundo, pois documenta a presença de povos pré-colombianos” – garante o arqueólogo da USP, Eduardo Neves.

Maloca do universo

O encontro dos dois rios (Soaentisauay) – um batizado pelos Tupinambá de Uruna (água negra) o outro de Paranaguaçu (rio grande) – faz parte das tradições orais e das narrativas míticas indígenas e cabocas. Por lá passou a “cobra-canoa” ou “canoa da transformação”, criando os povos ao longo do rio, quando a Avó do Mundo concebeu a “Maloca do Universo”. Muito depois, chegaram os espanhóis. No sábado, 6 de junho de 1542, véspera da Santíssima Trindade, o bergantim de Orellana navega por lá e o cronista da expedição, Frei Gaspar de Carvajal registra deslumbrado:

– Vimos a boca de outro grande rio, à mão esquerda, que entrava no rio que navegávamos. Tinha a água negra como tinta e por isso lhe pusemos o nome de Rio Negro. Corria ele tanto e com tal ferocidade que por mais de vinte léguas faziam uma faixa na outra água, sem com ela misturar-se.

– Águas que não se misturam? Impossível. É fantasia do cronista – diziam os incrédulos. Quase um século depois, o fenômeno é confirmado pela expedição de Pedro Teixeira (1637-1639), que passa duas vezes pelo Encontro das Águas e deixa um mapa feito por seu piloto, Bento da Costa. A paisagem foi pela primeira vez alterada quando, em 1669, o colonialismo português ergueu o Forte de São José da Barra do Rio Negro, com o objetivo de escravizar os índios.

No entanto, agora, o porto, se construído, terá efeito mais devastador do que o Covid-19. O vírus da ambição e da cupidez destruirá sítios arqueológicos com data de 3 a 5 mil anos, desmatará a floresta e poluirá os cursos d’água com derramamento de óleo e outros dejetos dos navios. Revolverá os sedimentos do leito dos rios com impacto sobre a vida aquática, afetará espécies ameaçadas de extinção como o boto e o peixe-boi e detonará as áreas de reprodução, pouso e descanso de aves locais e migratórias, de peixes como o jaraqui e outros organismos aquáticos – conforme denúncia do Movimento SOS Encontro das Águas e da Agência Amazônia Real.

O tombamento

Com o objetivo de impedir a destruição desse santuário, manifestações de rua dos movimentos socioambientais e comunitários levaram o Ministério da Cultura a tombar o Encontro das Águas, em novembro de 2010, como patrimônio cultural, para assegurar “a proteção dos 10 kms contínuos das águas escuras do rio Negro e as barrentas do Solimões, que não se misturam, além dos 30 kms² do seu entorno, por seu valor histórico, cultural, estético, paleontológico, geológico e paisagístico como um patrimônio natural da Amazônia”.

Foi aí que as forças da xexelência amazônica se uniram em torno da empresa Lajes Logística S/A, vinculada ao Grupo Simões, que detém a franquia da Coca-Cola, representa a cerveja Heineken Brasil e atua no ramo de veículos através da Juma Participações. Capacho de quem tem grana, o então governador Omar Aziz (PSD vixe vixe), indiciado pela Polícia Federal por suspeita de desvio de R$ 200 milhões da Saúde do Amazonas, ingressou com Ação Civil Ordinária no STF contra a União, pedindo a anulação do tombamento, alegando que se contrapunha “ao interesse jurídico, econômico, financeiro e social do Estado do Amazonas”.

As idas e vindas no Poder Judiciário impediram até hoje o tombamento definitivo pela União. No entanto, o Iphan concedeu há dois anos uma Licença Prévia à empresa Lajes Logística S/A para a construção do Porto, o que permitiria a realização das obras. A repercussão negativa levou a superintendente do Iphan no Amazonas, Karla Bitar, a recomendar que a empresa aguardasse a decisão do STF.

Ficou claro o desvirtuamento do ato originário. O Iphan ainda não havia regulamentado as intervenções na área e ao fazê-lo reduziu tudo ao aspecto meramente arquitetônico, ignorando por completo o parecer do arqueólogo Eduardo Neves, que defendia a proteção dentro de uma visão sistêmica e ampla de patrimônio. Era o que a empresa queria. Abriram a porteira para o porto “dentro da lei”.

Por isso, a regulamentação das intervenções na área foi comemorada por Robério Braga, que está careca de defender a empresa. Ele se apresenta como “especialista em patrimônio”, sem especificar “patrimônio de quem”.  Quando saiu a normativa favorável à construção do porto, Berinho berrou num programa local de TV, pingando vários pontos de exclamação:

– O Encontro das Águas é nosso!!!

O “nosso” era usado também por tia Conceição, que era freira, cujo voto de pobreza fazia com que se referisse aos seus objetos de uso pessoal como “nosso”.

– Mas é “nosso” meu ou “nosso” teu – quis saber minha irmã Céu aos seis anos de idade em relação a um lápis.

Robério Braga, o Berinho, que fez votos de riqueza, confunde sempre seus interesses pessoais e de seus clientes como se fossem os do Amazonas.

As xexelências

No Dicionário de Turismo editado em 2003 com verba pública, Robério apresenta obviedades. Lá, ele abre um verbete na letra E: “Encontro das águas – ponto onde se encontram as águas dos rios Negro e Solimões, no Amazonas, próximo a Manaus, de grande atração turística” (p. 101). O “especialista em patrimônio” não deu um pio sobre o valor estético, paisagístico e histórico da área.

Nesses tempos bicudos em que o Brasil, depois de 50 anos, volta a ser alvo sistemático de denúncias internacionais por violação de direitos humanos pelas agressões ao meio ambiente, aos indígenas, às mulheres, as xexelências bem que mereciam uma acusação formulada ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas por esse crime contra o patrimônio, que não é só amazônico, mas da humanidade.

Qual navio vai salvar da destruição o Encontro das Águas? Na crônica que escrevi em 2011 sobre o tema, uma criança de sete anos, a Maria, hoje com 16 anos, fez na época um comentário postado lá no blog, anunciando que iria redigir uma carta ao Iphan e à presidenta Dilma, exigindo que briguem pelo Amazonas. Ela pediu aos seus colegas do Adalberto Valle para assinar. A Maria é uma esperança contra “a burrada desses homens maus”.

O Movimento S.O.S Encontro das Águas e demais organizações populares convocam uma concentração para domingo, dia 22 de março, ao lado do Teatro Amazonas, contra o vírus da ambição, cuja realização dependerá da disseminação do outro vírus, o Covid-19.

Ah, e o Nininho, o que aconteceu com ele? Jamais esqueceu da comida deliciosa do navio, especialmente da sopa de cebola polvilhada com queijo gruyère ralado. Por isso, ensaiou dois ou três naufrágios fake. Seu irmão, o Ruço, o levava numa canoa e o deixava com uma lata de querosene no Encontro das Águas. Sem sucesso. Os navios passaram ao largo. Hoje, não sei por onde anda ele, meu quase-cunhado. Mas minha irmã Tequinha, quase-nora do seu Santino, no dia de seu aniversário, hoje, 15 de março, não me deixa mentir. Ou deixa?

P.S – Aos que querem aprofundar o tema, recomendo uma visita ao site da Agência Jornalística Amazônia Real. Lá tem tudo e muito mais: informação e análise, capaz de ouvir o outro lado, sem perder o senso crítico, além de fotos de valor informativo e estético. Foi de lá que retirei parte da informação aqui apresentada, também as fotos de Alberto César Araújo que são um convite irrecusável para serem pirateadas (https://amazoniareal.com.br/ ).

Ver também crônicas relacionadas:

1) Vê bem, Maria http://taquiprati.com.br/cronica/929-ve-bem-maria-

2) Dicionário de Turismo do Berinho http://taquiprati.com.br/cronica/851-o-dicionario-de-turismo-do-berinho

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