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sexta-feira, 29 março, 2024

NÃO PODEMOS RECUAR DIANTE DO AVANÇO DAS MENTIRAS

O preço da coerência é não discutir com negacionistas

Por Carlos Zacarias de Sena Júnior/Le Monde Diplomatique

Não tenho nenhum interesse em discutir com a Brasil Paralelo e sua turma o conteúdo das suas produções, mas não me furtarei um único minuto a debater com professores, estudantes e quem mais tiver interesse sobre o porquê de não reconhecer credibilidade naquilo que eles despejam na internet ou conseguem, lamentavelmente, incluir em alguns canais de TV como se fosse conteúdo de “história”.

Charge - 20 de julho de 2019 - Jornal Tribuna Ribeirão

No dia 20 de agosto de 2021 eu recebi uma notificação extrajudicial da produtora Brasil Paralelo por um post que fiz no dia 11 de julho referente a um conteúdo indicado no material didático da Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC-BA). Naquele dia, após tomar conhecimento de que o material destinado ao ensino online para estudantes da escola pública trazia ao menos uma indicação da produtora gaúcha, escrevi o seguinte:

“Soube agora que o caderno de apoio para o ensino de História da Secretaria de Educação do Estado da Bahia tem a indicação de um vídeo da produtora do Brasil Paralelo. Para quem não sabe essa produtora é olavista e, pelo que dizem, vem sendo vitaminada por verbas do governo Bolsonaro através da compra de séries para o MEC. Para quem não sabe o governo da Bahia é comandado pelo PT desde 2006. O Brasil Paralelo não é uma produtora qualquer, mas um canal que produz ‘conteúdo’ de história de caráter revisionista/negacionista. Seu filme mais importante, Brasil, entre armas e livros, sobre o golpe de 1964, é uma peça de propaganda ideológica anticomunista sem nenhum respaldo científico. Atenção professores de História da Rede Púbica estadual, Secretaria de Educação do estado da Bahia e governador Rui Costa. Negacionismo e falsificação da história é caminho aberto para o fascismo. É preciso rever urgentemente esse material didático.”

Meu post teve boa repercussão e eu recebi o retorno educado de algumas pessoas ligadas à SEC-BA que esclareceram o assunto, dizendo que o reparo seria feito. De fato, no mesmo dia eu soube que a indicação foi retirada, algo que considerei uma vitória em nome dos meus amigos e amigas historiadores e historiadoras que nesses tempos sombrios têm lutado com todas as suas forças pelo respeito à verdade.

A Brasil Paralelo é uma grande empresa que nos últimos anos cresceu na esteira do ódio à política e do fomento à ideia de que professores de História são doutrinadores. Supõe, a produtora, que eles são “apartidários e imparciais”, por isso disseminam a tese de que todos que assistem TV, leem jornais ou tiveram professores de História são “manipulados”. Alegam, entre outras coisas, que o sucesso das suas produções não é fruto do ódio à política, nem da eclosão da pós-verdade, quando apelos à emoção, crenças e ideologias têm mais influência em moldar a opinião pública do que fatos objetivos. Para a Brasil Paralelo, seu sucesso decorre da “imparcialidade” e da “desvinculação de grupos políticos”, motivo pelo qual se arrogam de não receber nenhum centavo de dinheiro público, em que pese que algumas de suas produções sejam exibidas pela TV Escola.[1]

A produtora se ressente de eu tê-la chamado de “olavista”, argumentando por absurdo ser confundida com qualquer “grupo ou indivíduo em específico”. É claro que ela não se importa de usar a exaustão as referências de Olavo de Carvalho que, não raro, aparece em suas produções, ignorando qualquer historiador ou consenso estabelecido dentro da academia sobre temas como fascismo, nazismo, golpe, ditadura militar, entre outras coisas. Do mesmo modo, a Brasil Paralelo se ofende por ser chamada de “revisionista/negacionista”, arguindo que suas produções são feitas “a partir de robusto arcabouço documental” que é “examinado por uma equipe de mais de 30 profissionais”.

Olavo de Carvalho (Foto: Reprodução)

Na década de 1990, ficou célebre o caso em que a historiadora estadunidense Deborah Lipstadt teve que enfrentar nos tribunais o negacionista britânico David Irving. Lipstadt narrou sua saga contra o negacionismo em um belo livro chamado Negação, publicado no Brasil em 2017 e transformado em um ótimo filme dirigido por Mick Jackson, com Rachel Weisz e Timothy Spall nos papéis principais.[2] O negacionismo, como demonstrou a historiadora e professora da Universidade de Emory, é a porta de entrada da reabilitação do nazifascismo, de modo que a equipe de advogados que a defendeu em Londres traçou como estratégia provar que o Holocausto foi um irrefutável fato histórico.

No processo narrado em seu livro, Lipstadt demonstra que a negação do Holocausto era não apenas motivo de prestígio e riqueza de Irving, como era também do interesse de grupos supremacistas e neonazistas de diversas partes do mundo. Tais grupos sustentavam parte dos seus argumentos pela obra do negacionista Irving, independente do que o consenso acadêmico dissesse e mesmo depois de consumada a derrota do jornalista/historiador David Irving na justiça britânica.

O negacionismo dos dias que correm tem muitas faces: científico, sobre as vacinas, terraplanista, sobre as mudanças climáticas e sobre a história. Tenho me interessado por esse tema a partir dos estudos que venho desenvolvendo sobre a relação entre memória e história e sobre aquilo que alguns de nós chamamos de revisionismo, algo bastante presente na academia. Todavia, porquanto a verdade venha sendo desafiada em diversas frentes, parece ser absolutamente necessário que sejamos capazes de defendê-la diante dos irracionalistas e todos aqueles que atentam contra o bom senso, o respeito e a democracia quando promovem a desconfiança e o ódio contra cientistas, artistas, jornalistas e professores de história.

Não fui o único a sofrer uma tentativa de intimidação da parte da Brasil Paralelo. Tenho, próximo de mim, jovens estudantes que vêm sendo alvo de investidas da produtora que deve dispor de muito dinheiro para mobilizar escritórios de advocacia para tentar impedir que pós-graduandos desenvolvam pesquisas e publiquem suas conclusões sobre o assunto pelas pós-graduações do Brasil, além de professores e outras pessoas que lhe apontem o dedo em variados espaços, inclusive na rede social.[3]

Como escreveu o historiador franco-judeu Pierre Vidal-Naquet, no magnífico Os assassinos da memória:

“podemos e devemos discutir sobre os “revisionistas” [negacionistas]; podemos analisar os seus textos como fazemos a anatomia de uma mentira: podemos e devemos analisar o lugar específico na configuração das ideologias, questionar-nos sobre o porquê e como apareceram, mas não discutir com os ‘revisionistas’ [negacionistas].”[4]

Não tenho nenhum interesse em discutir com a Brasil Paralelo e sua turma o conteúdo das suas produções, mas não me furtarei um único minuto a debater com professores, estudantes e quem mais tiver interesse sobre o porquê de não reconhecer credibilidade naquilo que eles despejam na internet ou conseguem, lamentavelmente, incluir em alguns canais de TV como se fosse conteúdo de “história”.

A propósito, em seguida ao episódio aqui descrito, juntei-me a diversos historiadores e outros professionais que atuam em defesa da verdade fazendo inúmeros eventos, entre lives, mesas em congressos, entrevistas e debates sobre o tema do negacionismo. Apesar de todo o esforço, contudo, a Brasil Paralelo segue se alimentando do clima ainda propício à mentira, tanto que amplia suas atividades inclusive investindo milhões em anúncios nas redes sociais, como o demonstra matéria de Tatiana Dias publicada no The Intercept Brasil.

A luta é longa e difícil, mas não podemos recuar diante do avanço das mentiras, ainda que tenhamos que tomar cuidado para não promover os disseminadores de fraudes aos patamares dos grandes debates públicos, lugar que efetivamente eles não merecem ocupar. Como afirma Deborah Lipstadt:

“Precisamos conduzir uma luta implacável contra aqueles que encorajam – direta ou indiretamente – os outros a fazerem essas coisas. Mas, mesmo enquanto lutamos, não devemos imbuir nossos oponentes de uma importância primordial. Jamais devemos atribuir a nossa existência a seus ataques contra nós ou deixar nossa batalha contra eles se transformar em nossa razão de ser. E, enquanto os combatemos, devemos vesti-los com – ou forçá-los a vestirem sozinhos – uma fantasia de bobo da corte.”[5]

A Brasil Paralelo esperava de mim uma retratação sobre aquilo que escrevi no dia 11 de julho. Um dia depois de comemorar o Dia do Historiador, que se celebra em 19 de agosto, eis aqui a única resposta que pude oferecer aos que me acompanham e aos que, inadvertidamente, acreditam que há algo de bom nos conteúdos da produtora gaúcha. Considerando que não pretendo debater o que quer que seja com uma empresa que vem ganhando bastante dinheiro supostamente oferecendo “narrativas alternativas” sobre a história e outros temas, é tudo o que tenho a dizer. Essa é, para mim, a única resposta possível e, como diz Pierre Vidal-Naquet, “o preço da coerência intelectual”.

 

Carlos Zacarias de Sena Júnior é professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas em Humanidades (CRH) da FFFCH-UFBA e coordenador do Politiza, Grupo de Pesquisa História Política, dos Partidos e Movimentos Contemporâneos de Esquerda e Direita.

 

[1] Reportagem de Fábio Zanini publicada na Folha de S.Paulo mostra o crescimento meteórico da Brasil Paralelo, que apenas em 2020 aumentou o faturamento em 335%.

[2] A edição brasileira do livro tem a seguinte referência LIPSTADT, Deborah E. Negação. Uma história real. São Paulo: Universo Livros, 2017.

[3] Reportagem de Juliana Sayuri publicada no The Intercept Brasil deu ampla visibilidade às investidas e tentativas de intimidação da Brasil Paralelo contra pesquisadores.

[4] VIDAL-NAQUET, Pierre. Os assassinos da memória. Um “Eichmann de papel” e outros ensaios sobre o revisionismo. Campinas-SP: Papirus, 1988, p. 11. O que Vidal-Naquet chama de “revisionismo” em seu livro, publicado originalmente em 1987, na França, é na verdade o que aqui e em outros lugares se chama de “negacionismo”.

[5] LIPSTADT, D. E., op. cit., p.384.

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