28.5 C
Brasília
quinta-feira, 18 abril, 2024

“Não é possível resgatar mais nada sob o capitalismo”

Por Eleutério F. S. Prado [*]

Para demonstrar empiricamente a tese contida no título deste artigo é preciso considerar, primeiro, o fenômeno da financeirização que vem se exacerbando desde os anos 80 do século passado. Eis que ele não se apresenta como uma passagem episódica na história do capitalismo, mas como um acontecimento decisivo. Faz ver que não se encontrou uma solução virtuosa para a crise de acumulação engendrada no “período de ouro” do capitalismo, ocorrido após o fim da II Guerra Mundial. Como se sabe, essa crise se manifestou já nos anos 70 por meio de uma forte e longa queda da taxa de lucro. Apontando para um impasse, a figura em sequência apresenta esse fenômeno. E o faz mostrando uma discrepância crescente entre o PIB global e a soma dos ativos financeiros globais. Por que isso ocorreu?

PIB global e ativos financeiros globais.

A crise de lucratividade dos anos 1970, que atingiu fortemente o centro do sistema – mas também a periferia –, nunca foi plenamente resolvida porque os principais Estados capitalistas optaram por evitar uma recessão profunda. Como está teria efeitos econômicos, sociais e políticos devastadores – por causa das ondas de falências e do altíssimo desemprego da força de trabalho que produziria –, preferiram uma alternativa que evitasse a destruição e a desvalorização dos capitais acumulados no passado. Ocorre que esse choque disruptivo é necessário para que ocorra uma verdadeira restauração da taxa de lucro. Foi assim que o capitalismo se recuperou várias outras vezes no passado. Mas desta vez, não.

Fugindo desse trauma, buscaram restaurar a lucratividade por meio de um processo mais lento de reformas, ditas neoliberais, as quais visavam em última análise elevar a taxa de exploração numa economia globalizada. Era preciso destruir o mais possível o que fora criado no passado, ou seja, o estado de bem-estar social. Em linhas gerais, os Estados se esforçaram para não elevar ou mesmo reduzir os salários reais no centro do sistema, para mudar os processos de trabalho, para forçar a supressão das proteções das economias nacionais existentes na periferia, para deslocar as indústrias trabalho intensivas para a Ásia etc. O neoliberalismo reinventou de novo o capitalismo que fora transformado pelo keynesianismo e pela socialdemocracia. Tudo isso, no entanto, precisava de um complemento.

Para criar um sistema nacional e internacional de dominação financeira e, ao mesmo tempo, para montar um mecanismo de estímulo à demanda efetiva global, desregulou-se os mercados financeiros e se permitiu uma enorme expansão do crédito mundialmente. O resultado dessa eleição foi o empilhamento consecutivo de dívidas do qual resultou uma “exuberância irracional” nos mercados de capitais em geral. Ora, isso não poderia ter ocorrido sem que fosse criada também uma “magnífica” fonte de crises financeiras.

O descolamento progressivo do montante de ativos financeiro em relação à magnitude do PIB global, conforme visto na figura acima, não parou de crescer desde 1980. Agora, ele aparece como um prenuncio do fenecimento do capitalismo por meio de um colapso financeiro de grandes proporções. Mas isto não é tudo.

Para demostrar, teoricamente agora, a tese resumida no título deste artigo, é preciso começar por um recorte de conhecida tese de Karl Marx, depositada no prefácio de Para a crítica da Economia Política, escrito em 1859. No trecho abaixo transcrito, ele resume a sua compreensão do processo de emergência, desenvolvimento e fenecimento dos modos de produção em geral. Enquanto subsistem historicamente, esses modos regulam as ações dos seus componentes individuais e coletivos, condicionando a vida social como um todo; passam por longos períodos progressivos que desembocam, ao fim e ao cabo, em impasses históricos. Crescem, então, movimentos sociais que produzem instabilidades, rupturas e transformações, no curso das quais são criadas novas formas de sociabilidade.

Na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade. (…) Em certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes (…). De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. [1]

Para reinterpretar esse trecho, sustenta-se aqui em primeiro lugar que, implicitamente, Marx toma o sistema econômico como aquilo que atualmente é chamado de um sistema complexo ou de um sistema social complexo. Como tal, ele está internamente estruturado por determinadas relações de produção e estas determinam-no como uma totalidade que tem características próprias e que possui certas “leis” tendenciais de desenvolvimento.

Tais sistemas não são descritíveis por quaisquer sincronias, já que se caracterizam por existirem como processos contraditórios, abertos ao futuro e dependentes do próprio modo como evolvem. Enquanto tais, essas totalidades condicionam o modo de ser histórico dos próprios homens que se situam em sua própria base e que se atribulam em seu interior para sobreviver, buscando atender as suas próprias necessidades e realizar os seus desejos mais profundos.

Dizer que o modo de produção capitalista é um sistema complexo é dizer que possui a propriedade da auto-organização e que enfrenta permanentemente problemas de sustentabilidade, sejam de ordem interna, sejam de ordem ambiental. Eis que os sistemas complexos em geral apresentam certa resiliência, mas não deixam também de possuir fragilidades. Existem para sobreviver, mas podem falecer por causas internas e externas.

O que caracteriza sobretudo os sistemas complexos são os nexos internos que ligam entre si as suas partes constituintes e formam a sua estrutura, mas eles podem e devem ser apreendidos também pelos nexos externos, ou seja, pelos modos segundo os quais essas partes interagem entre si e determinam o seu dinamismo no tempo. É desse modo que, numa perspectiva de cientificidade positiva e vulgar, fala-se usualmente da complexidade tendo apenas por referência à dinâmica de interação dos múltiplos elementos do sistema em consideração, os quais estão entretidos em processos de auto-organização.

Mesmo quando essa cientificidade – que ainda se atém apenas aos nexos externos entre os fenômenos – transcende o determinismo que pretende prever o futuro com base nos fatos passados, o reducionismo, ou seja, o método característico da ciência moderna (Bacon, Descartes e Newton) que pretende sempre explicar o todo a partir das partes, e a norma analítica que manda isolar e separar as dificuldades na compreensão de tudo que se afigura complicado, ela ainda não vai longe o suficiente. É preciso, pois, dizer o porquê.

Apreende, assim, certas características dos sistemas complexos tais como os seus ciclos de realimentação, as não-linearidades causais, as redes de interação, mas não acolhe de modo adequado e suficiente a propriedade da emergência – pois, esta não pode ser explicada apenas pelas configurações engendradas pelas interações aparentes dos elementos do sistema complexo. Eis que essa propriedade crucial não resulta apenas das interações dinâmicas entre as partes, mas provém, fundamentalmente, do evolver das contradições inerentes à sua estrutura na temporalidade histórica.

Como o sistema econômico – um sistema social complexo – em sua generalidade é sobretudo um sistema de produção de coisas objetiva ou subjetivamente necessárias à vida humana, fica claro que as relações de produção mencionadas por Marx se referem ao modo específico pelo qual se organiza o trabalho socialmente necessário numa determinada etapa histórica. No capitalismo, como se sabe, o atendimento das necessidades está subordinado à acumulação de riqueza abstrata, ou seja, de valor. E o “valor que se valoriza”, isto é, o capital é – isso não se pode ignorar – um sujeito automático insaciável.

Crucial aqui é interpretar a noção de força produtiva de um modo adequado aos propósitos deste artigo que não vê o capitalismo nem em sua juventude (século XIX) nem em sua maturidade (primeiros dois terços do século XX), mas em sua velhice (do último terço do século XX em diante). Numa leitura produtivista, “força produtiva” significaria simplesmente capacidade de se apropriar da natureza e, nesse sentido, poderia ser resumida pela noção técnica de produtividade do trabalho. Ora, essa leitura seria bem insuficiente porque toma o sistema econômico como um sistema determinado tecnologicamente que, em princípio, dura senão para sempre, pelo menos indefinidamente.

Como não há produção sem apropriação – transformação e destruição – da natureza, é preciso associar de imediato a noção de força produtiva à noção de sustentabilidade. Eis que o sistema econômico mora no ambiente formando pela natureza não humana e, ao se manter ou mesmo prosperar em seu bojo, degrada-o de algum modo. E, ao fazê-lo, pode minar as condições externas que dão sustentação ao movimento expansivo do sistema econômico. Portanto, essa categoria guarda em si o seu contrário, a insustentabilidade. Ora, essa contradição evolve com o próprio evolver do modo de produção não apenas devido à destruição das condições externas, necessárias que são ao próprio mover-se do sistema econômico, mas também devido ao desenvolvimento de suas contradições internas, assim como a todos os desdobramentos que delas decorrem.

O evolver das contradições internas ao sistema econômico gera conflitos, embates entre classes sociais, os quais, mediante tensões crescentes, podem eventualmente resolverem-se por meio de movimentos de massa, revoltas agônicas e mesmo revoluções que mudam radicalmente a estrutura do modo de produção. Assim, a contradição central inerente ao desenvolvimento da sociedade de que fala Marx pode ser entendida como uma contradição entre as forças que dão sustentabilidade ao modo de produção e as relações de produção, dentro das quais aquelas forças se desenvolvem. Nesse sentido, entende-se por força produtiva não mais, simplesmente, a produtividade do trabalho, mas a capacidade do sistema assim constituído de dar sustentação à vida humana.

Segue-se aqui a tese de Murray Smith em seu livro Leviatã invisível [2] segundo a qual se está, desde o começo dos anos 1980, na presença do ocaso do capitalismo – um processo que não deixou de se aprofundar desde então. Pois, nessa década, ele entrou – enquanto modo de produção – numa crise estrutural da qual ainda não saiu e não poderá sair incólume. O neoliberalismo, nessa perspectiva, não se afigura como uma superação das dificuldades sistêmicas do capitalismo, as quais se apresentaram já na década dos anos 1970, mas como um recurso derradeiro para que possa continuar funcionando, ainda que cada vez mais precariamente. Nesse ocaso, ciclos de alta e baixa aconteceram e continuarão a acontecer, mas a tendência se apresenta como um declínio persistente. Segundo ele – concorda-se com o que diz – apenas um marxismo crítico resoluto pode apreendê-la adequadamente:

Somente Marx oferece um arcabouço teórico necessário para apreender a trajetória contraditória, irracional e crescentemente perigosa do modo de produção capitalista – um conjunto de relações sociais e capacidades humanas, organização societária e tecnológica que, mais do que nunca, demanda ser compreendida num contexto global que, não menos do que no passado, mantém-se prisioneira de suas relações de produção que põem a lei capitalista do valor-trabalho.

Como base nessa premissa, Smith sustenta que três contradições “marxianas” estão na base dessa crise estrutural. Sabendo que aqui se acrescentará uma quarta, é preciso explicitá-las:

A primeira delas está no fundamento de uma crise de superacumulação que vem entravando o moto próprio do capitalismo globalizado desde a década dos anos 1970. Para aumentar continuamente a produtividade do trabalho na produção de mercadorias, a concorrência capitalista tende a elevar a razão entre o montante capital empregado na produção e o valor total dessa própria produção – e isso tende a reduzir fortemente a taxa de lucro. Como esse sistema – que nunca está desacoplado do Estado – não pode mais permitir que as crises destruam irrestritamente o capital acumulado, permitindo assim uma recuperação dessa taxa, ele próprio como um sistema mundial passou a enfrentar uma crise permanente de valorização, ou seja, uma crise estrutural originada da produção “insuficiente” de mais-valor. [3]

Só lhe restou o neoliberalismo; grosso modo, essas práxis sócio-política procurou criar contra tendências à queda da taxa de lucro. Para tanto, buscou decompor mais e mais a sociedade em indivíduos, liberar os movimentos do capital financeiro, transferir as indústrias intensivas em trabalho para a periferia, reduzir os salários reais dos trabalhadores etc. Ora, tudo isso gerou uma recuperação fraca principalmente no centro do sistema, que durou entre 1982 e 1997, aproximadamente. A partir dessa última data, a tendência de queda da taxa de lucro se impôs novamente sem perspectivas robustas de que essa situação depressiva possa mudar.

A segunda contradição consiste num desdobramento da contradição entre o caráter privado da apropriação e o caráter social da produção. À medida que o capitalismo se desenvolve, cresce a necessidade de bens e serviços ofertados como bens públicos; eis que eles são necessários para prover a infraestrutura e a proteção social comunitária que garante uma certa unidade ao sistema. Ora, esse provimento onera o orçamento dos Estados nacionais, os quais são alimentados em última análise por recursos extraídos do setor produtivo das economias. Diante da crise de valorização, não lhes restou senão cair numa política de privatização que tende a tornar os bens públicos cada vez mais escassos. Ao erodir a base comum da sociedade, o neoliberalismo difunde a pobreza e o niilismo, concentra a renda e a riqueza, solapa a democracia liberal – ou seja, certos fundamentos que dão sustentação social e política ao próprio [4] capitalismo.

A terceira contradição diz respeito à transnacionalização da produção por meio da financeirização, das empresas que operam em dezenas de países, das cadeias mundiais de componentes, das plataformas digitais etc. e o caráter nacional da regulação macrossocial e macroeconômica. Como se sabe, o Estado é a instância de poder que põe a unidade que falta num meio em que ocorrem frequentes disfunções sistêmicas e que está permeado por antagonismos entre indivíduos, grupos e classes sociais. É ele, ademais, que busca encontrar solução para os problemas originados pelo próprio funcionamento do modo de produção. Contudo, muitos problemas estão sendo gerados agora numa escala global, para além do poder de intervenção dos Estados nacionais. Mais do que isso, frequentemente, eles se encontram constrangidos pelos poderes que prosperam internacionalmente e que se lhe sobrepõem.

Finalmente, é preciso mencionar a contradição entre o caráter inerentemente predatório da produção capitalista e as exigências de conservação e de regeneração do ambiente natural – nas quais se incluem a reprodução da força de trabalho. Há um certo consenso no pensamento crítico de que existe uma crescente “ruptura metabólica” entre a produção mercadorias por meio da qual o capital se realiza enquanto tal e as condições naturais da produção.

Eis que as condições ecológicas da sustentabilidade da civilização humana vêm sendo erodidas com velocidade inaudita por um processo de acumulação de capital que não pode parar e que, por isso, não pode deixar de receber prioridade em cada uma das nações que compõem essa civilização. Mesmo se são feitos acordos internacionais, por exemplo, para reduzir as emissões de carbono, elas continuam crescendo; eis que crescem mesmo se a geração desse tipo de poluição já se encontra em nível bem crítico.

Ao não garantir a sustentabilidade da civilização humana no planeta Terra, o capitalismo se tornou insustentável. É a partir dessa consideração que Smith chega à tese do seu crepúsculo:

Juntas, essas crises inter-relacionadas sugerem que já se entrou na era do ocaso do capitalismo – uma era na qual a humanidade encontra os meios para criar uma ordem social e uma organização econômica mais racionais ou na qual o decaimento progressivo do capitalismo trará junto consigo a destruição da civilização humana.

[1] Marx, Karl – Para a crítica da Economia Política. Coleção Os Pensadores: Marx . São Paulo: Editora Abril, 1978, p. 130.

[2] Smith, Murray E. G. – Invisible Leviathan – Marx’s law of value in the twilight of capitalism . New York: Haymarket Books, 2018.

[3] Ver Prado, Eleutério F. S. – O futuro da economia mundial. In: A terra é redonda , 8 de junho de 2021.

[4] Ver Brown, Wendy – Explicando nossos sintomas mórbidos. In: Outras palavras , 30 de junho de 2021.

[*] Professor titular e sênior do departamento de economia da FEA/USP. Mantém o blog Economia e Complexidade . Correio eletrônico: eleuter@usp.br. O seu vídeo está em www.youtube.com/watch?v=6g9Ed7Qj65M&t=3s .

O original encontra-se em outraspalavras.net/…

Este artigo encontra-se em https://resistir.info

ÚLTIMAS NOTÍCIAS