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quinta-feira, 28 março, 2024

Música de BaianaSystem traz versos da luta camponesa na Paraíba contra regime militar

Capa do disco Cantata pra Alagamar, de 1979 / Reprodução – Foto

“Reza Forte” inclui trechos de “Cantata pra Alagamar” (1979), que narra luta de famílias camponesas ameaçadas de despejo

Cida Alves
Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |

“Primeiro é nunca matar
Segundo, jamais ferir
Terceiro, estar sempre atento
Quarto, sempre se unir
Quinto, desobediência
Das ordens de sua excelência
Que podem nos destruir”

Os versos que ecoam no epílogo da canção “Reza Forte”, lançada recentemente pela banda BaianaSystem, mostram o brado forte que ecoou da luta das Ligas Camponesas no seu nascedouro na Paraíba, na década de 1970.

Gravada em vinil logo após sua apresentação, em 1979, a peça musical Cantata pra Alagamar denunciava a violência do campo sofrida por famílias camponesas residentes na fazenda Alagamar, entre os municípios de Itabaiana e Salgado de São Félix, na Paraíba. Os versos contam a saga épica, a dor e a luta de um povo contra seus algozes munidos e aparelhados pela ditadura militar.

Em sua interpretação do evento histórico, a banda BaianaSystem contou com participação especial de BNegão. Ouça a música no Spotify, no Deezer ou no YouTube.

 

Contexto histórico

Composta por José Alberto Kaplan e Waldemar José Solha, Cantata pra Alagamar foi apresentada e registrada pela gravadora Discos Marcus Pereira no mesmo ano.

A peça e a gravação em disco foram concretizadas pelo esforço sagaz de Dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba e figura central, tanto na luta da história real, como também no enredo da peça.


Dom José Maria Pires com camponeses da Fazenda Maria de Melo, Alagamar, na sua simplicidade lutando ao lado dos camponeses, sempre se posicionando contra as arbitrariedades da ditadura militar e da classe dominante, e por isso teve seus passos vigiados pela DOPS-PB / Foto: Acervo do Arquivo Eclesiástico da Paraíba

A luta no campo

A obra conta a história, desde a resistência até a conquista, das famílias de camponeses ameaçados de despejo das terras em que trabalhavam há 30 anos. Os 7 mil trabalhadores de Alagamar viviam e trabalhavam pacificamente em 14 fazendas pagando aforamento ao proprietário, que morreu em 1975, quando as fazendas foram, então, vendidas a investidores que pretendiam plantar cana e criar gado, expulsando os moradores. A resistência em Alagamar contou com o apoio crucial do arcebispo de João Pessoa, Dom José Maria Pires (Dom Pelé).

Visita de Ernesto Geisel à Paraíba

Durante uma visita do general Ernesto Geisel à capital, eles se concentraram diante do palácio do governo paraibano. Impedidos de entrar no palácio, conseguiram chamar a atenção do general erguendo faixas e cantando hino sobre sua luta e reivindicações. Foram três anos de batalha durante os quais camponeses e religiosos sofreram violência por parte da Polícia Militar e de jagunços a serviço dos novos proprietários da terra.

De volta a Brasília, Geisel decretou a desapropriação de 2 mil hectares da terra, cerca de um décimo da área total, para o assentamento de 80 famílias. Os trabalhadores se fortaleceram na luta para a desapropriação total da área. Sofreram ainda mais dois anos de conflito, com uso recorrente de violência contra eles.

Em janeiro de 1980, as terras cultivadas foram invadidas e pisoteadas pelo gado dos proprietários. O bispo foi até a região juntamente com outros sacristãos, entre eles D. Helder Câmara, para ajudar pessoalmente os camponeses na expulsão do gado e na retomada da terra.

A repercussão do episódio forçou o governo da Paraíba a comprar toda a área de Alagamar e entregá-la formalmente às famílias dos lavradores.


Folheto de W.J.Solha/ Foto: Reprodução

A obra

“Criado em clima de versos meus, de cordel, martelo agalopado e gemedeiras, num patamar que a resgata do efêmero, momentâneo, para a história. Houve aqui na Paraíba um poderoso movimento liderado por Dom José Maria Pires, que reinventou a não violência de Gandhi, objetivando a Reforma Agrária”, disse W. J. Solha em entrevista para o jornal A União.

A Cantata (geralmente com temas sacros) pra Alagamar foi a primeira feita em língua portuguesa com tema social. O primeiro passo para a realização da peça foi a redação de um texto didático e popular, o que levou ao nome de W. J. Solha. O escritor conseguiu concluir o texto em apenas uma semana. A base foi o ‘Hino de Alagamar’, um pequeno texto escrito pelo camponês Severino Izidro.

Após ter acesso ao texto, Kaplan ficou em reclusão durante um mês e meio trabalhando na criação de um material baseado em ritmos e melodias regionais, a exemplo do xaxado, baião e do folclore nordestino.


Reza Forte – BaianaSystem Feat. BNegão / Card de Divulgação

Comunhão de ideologias

Dom José Maria Pires, com receio de represália da ditadura, optou por estrear a Cantata na capela da Igreja de São Francisco, no Centro Histórico de João Pessoa, no dia 17 de junho de 1979. Cerca de 400 espectadores estavam presentes, além de Dom Hélder Câmara, Bispo Dom Ivo Lorscheider e Bispo Dom Fragoso.

Autor de dissertação de mestrado em Música pela UFPB sobre o tema, o músico Esdras Sarmento destaca o aspecto filosófico da obra.

“Para mim, o maior significante que a Cantata traz pra a história da Paraíba é a existência de uma possibilidade de fraternidade, de comunhão com ideologias bastante distintas – o pensamento de um ateu, com um judeu e um bispo. O ateu tinha feito uma obra, um livro bem antropocêntrico, onde praticamente negava a existência de Deus. Dom José Maria Pires era exatamente o oposto, era o pináculo do cristianismo na Paraíba. E Kaplan era judeu, tinha feito uma viagem à Alemanha e trazia toda uma reflexão filosófica a respeito do que havia acontecido com seu próprio povo”, conta ele.


Contra-capa da Cantata pra Alagamar. Um texto escrito à mão por D. Helder Câmara pode ser lido: “A Cantata pra Alagamar merece ser ouvida por todas as pessoas de boa vontade que amam a verdade, o Belo e sonham com um mundo mais respirável e mais justo mais humano. […]Vem a Cantata e põe diante dos nossos olhos que ‘desenvolvimento’ em nosso país vem sendo crescimento econômico de u’a minoria que não chega a 20% de nossa população e fabricação de miséria em ritmo alarmante” / Foto: Reprodução

Releituras

Vocalista da banda Pau de Dar em Doido, Ilsom Barros já cantava os versos da Cantata nos palcos.

“Toda a história a respeito de Alagamar está descrita dentro da Cantata. Ela conta todos os acontecimentos, passo a passo, tudo que aconteceu nesse período desde a época do antigo proprietário que veio a falecer e que permitia que os camponeses tivessem posse da terra, e, quando ele morre, os herdeiros tentam expulsar os camponeses; é aí onde começa esse conflito que acaba chegando aos ouvidos do Governo Federal.  E o Pau de Dar em Doido, na verdade, desde que começou, sempre citava a canção da não-violência como parte do final de uma música da gente, que se chama Cordel”, explica.

A tensão pela temática da obra era evidente, como conta o ator Buda Lira, que fez parte do disco cantando e narrando os versos.

“Nós fomos gravar em Recife, ficamos hospedados no Convento da Sé, em Olinda, e, durante o dia, a gente gravava num estúdio em Recife. Fizemos três apresentações, duas na igreja São Francisco, e, depois, fizemos uma apresentação na região de Alagamar, muito bonita, muito simbólica, com todos os trabalhadores, um negócio muito emocionante e tenso, porque, na época, era difícil. Acho que tinha policiais militares e tudo, na proteção. E fizemos uma última apresentação, no Juazeiro da Bahia. Uma viagem maravilhosa que fizemos de ônibus daqui de João Pessoa para lá”, relembra ele.


Maestro Carlos Anísio – Foto / Reprodução

Nova versão da obra

O maestro Carlos Anísio conta que participou da Cantata desde a sua criação.

“Em 1979, eu fui convidado pelo maestro Kaplan para fazer parte do coral. A gente ensaiava na antiga Reitoria da UFPB, lá perto da lagoa, onde é o INSS. Na época, qualquer espetáculo que fosse para o teatro tinha que ter o texto aprovado pela Polícia Federal, e ela ia assistir ao ensaio para liberar a exibição”.

Carlos conta que sugeriu a Kaplan uma reedição da peça. “Uma vez eu, conversando com ele, deixei escapar: ‘Kaplan, por que você não faz uma nova versão?’ E ele fez, em 2002, mas não teve dinheiro para prensar, e está assim até hoje. Eu fui convidado por ele para reger, pelo fato de eu ter participado desde o começo da Cantata”, disse.


Card / Reprodução

Em 2014, o Sesc o convidou para participar de um projeto que homenageia compositores. Ele decidiu apresentar a nova versão da Cantata e realizou duas apresentações, uma na UFPB e outra em Areia, e, também, na entrega do título de Doutor Honoris Causa a Dom José na UFPB.

Na ocasião, o Dom José escreveu para o Maestro Carlos Anísio: “A Cantata é uma obra de arte realizada com coragem e muito amor. Coragem porque vivíamos, então, o tempo da Ditadura e qualquer manifestação pública estava sujeita à censura, de modo que a Cantata só pôde ser apresentada porque, para isso, foi cedida uma de nossas igrejas”.

Waldemar José Solha / Foto: internet

Um judeu, um ateu e um cristão

“A realização da Cantata só foi possível graças a um trio composto por um judeu, um ateu e um bispo. Numa época de tanta violência, a Cantata vem proclamar que todos devemos lutar para que, respeitada a liberdade de pensamento de cada um, busquemos juntos transformar em convergências nossas divergências, contribuindo assim para que o mundo vá deixando de ser um vale de lágrimas e vá se aproximando da visão bíblica de um paraíso”, escreveu D. José na carta para o maestro Carlos Anísio (2014).

José Alberto Kaplan nasceu em Rosário, província de Santa Fé, Argentina. Chegou, em agosto de 1961, à cidade de Campina Grande na Paraíba, onde se tornou professor da UFPB e exerceu a função de regente da Orquestra sinfônica da Paraíba. Foi premiado várias vezes com música erudita e, embora fosse argentino e judeu, suas músicas eram de raízes profundamente brasileiras.

Em 1977, Dom José Maria Pires o levou para a região de Alagamar: “Então o Kaplan, quando foi lá e viu aquele movimento do povo, se apaixonou e, quando chegou na volta, disse para Dom José: eu vou fazer uma Cantata!”, conta o escritor W. J. Solha.

Quarto arcebispo da Paraíba, entre 1965 e 1995, Dom José foi um dos pilares da teologia da libertação no Brasil. Também se tornou um símbolo na luta pelos direitos humanos e na defesa dos pobres, bem como na luta contra a discriminação racial no Brasil. O bispo ficou conhecido entre os demais religiosos por Dom Pelé e Dom Zumbi, um dos poucos homens negros da hierarquia da Igreja Católica no Brasil. Era defensor da estratégia da não-violência. Aposentou-se em 94.

Romancista, contista, poeta, ensaísta, dramaturgo, ator e artista plástico, Waldemar José Solha nasceu na cidade de Sorocaba-SP em 1941 e radicou-se na Paraíba em 1962. Veio para o Nordeste devido à aprovação em um concurso público para o Banco do Brasil e nunca mais quis voltar a sua terra de origem.

Como escritor, recebeu vários prêmios, como o Fernando Chinaglia (1974), para os romances “Israel Rêmora” (Record, 1975), “A canga” (Moderna, 1978) e “A batalha de Oliveiros” (Itatiaia, 1989). Recebeu também o Prêmio João Cabral de Melo Neto (2005) para o poema longo “Triga com corvos” (Palimage, 2004) e o Prêmio Graciliano Ramos (2006) para “História universal da angústia”; também foi finalista no Prêmio Jabuti (2006). No cinema, trabalhou nas produções: “O salário da morte” (1971), “Soledade” (1975), “Fogo morto” (1975), “A canga” (2001), “O som ao redor” (2012), “Era uma vez eu, Verônica” (2012), dentre outros.

Na Cantata pra Alagamar, Solha transformou um conflito nascido por terras em versos cordelísticos que narram, de maneira épica, os sofrimentos do povo diante dos abusos do governo militar e dos grandes latifundiários, e a participação dos religiosos vinculados à teologia da libertação.

“A Cantata foi uma reportagem poética de um fato. Alguém, no Brasil, em plena ditadura militar, sem tirar um til das leis dessa mesma anomalia, servindo-se da eficiente cobertura do departamento jurídico da arquidiocese, conseguiu terras de Alagamar para 350 moradores. Ou seja: os cinco mandamentos da resistência não-violenta funcionam, como asseguravam Gandhi, Luther King e Tólstoi.”, contou Solha para a Reportagem do Brasil de Fato PB.

 

Fonte: BdF Paraíba

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