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quinta-feira, 28 março, 2024

MAIS UMA CONTRADIÇÃO DO CAPITALISMO

Taxa de desemprego nos EUA.

Prabhat Patnaik [*]

Nos Estados Unidos há ainda quatro milhões de pessoas que permanecem desempregadas em relação ao período anterior à pandemia. No entanto, a tentativa da administração Biden de estimular a economia já entrou em crise com o ressurgimento da inflação – não só naquele país, mas também noutros lugares do mundo capitalista. O Federal Reserve Board (o equivalente do banco central dos EUA) está a planear elevar em breve as taxas de juro (que estão agora próximas de zero) e mesmo a expansão orçamental será difícil de sustentar face à inflação. Tudo isto truncará a recuperação que se tem verificado. Por outras palavras, mesmo no principal país capitalista do mundo – cuja divisa é “tão boa como ouro” e que, portanto, não deveria temer quaisquer fugas de capitais – a capacidade do Estado para estimular a atividade dentro das suas próprias fronteiras tornou-se seriamente constrangida.

Esta é uma nova contradição básica que surgiu no capitalismo mundial e merece séria atenção. O prognóstico de John Maynard Keynes, o mais importante economista burguês do século XX, de que embora o capitalismo na sua espontaneidade fosse um sistema defeituoso que mantinha grandes massas de trabalhadores desempregados, a intervenção do Estado poderia corrigir esta falha, já havia sido negada pela globalização das finanças. Ao enfrentar um Estado-nação, as finanças globalizadas tinham enfraquecido suficientemente esse Estado para impedir a sua intervenção a fim de ultrapassar a deficiência da procura agregada. Mas o único Estado que ainda parecia ter capacidade de intervir era o Estado norte-americano porque a sua divisa era considerada mesmo pelas finanças globalizadas como “tão boa como ouro” e, portanto, a intervenção por parte deste não desencadearia qualquer êxodo sério das finanças. Mas agora, ao que parece, até essa perspectiva desapareceu. Vamos ver porquê.

A razão pela qual governos de outros países não podiam estimular adequadamente as suas economias era porque as suas políticas orçamentais estavam limitadas pela condição imposta pelas finanças de restringir os défices orçamentais em relação ao PIB a um determinado valor estipulado. As suas políticas monetárias, por outro lado, tinham de estar atadas à política monetária dos EUA. As suas taxas de juro, por exemplo, tinham de ser suficientemente mais elevadas do que a taxa de juro dos EUA, pois de outra forma haveria graves saídas financeiras. As suas mãos, portanto, estavam atadas – e isto era válido mesmo para os países capitalistas avançados. Os EUA, entretanto, tinham uma certa autonomia. Mesmo que houvesse um défice orçamental superior ao de outros países e mesmo que tivesse taxas de juro próximas de zero, isto não desencadearia quaisquer saídas financeiras graves. A administração Biden procedeu com base neste pressuposto. No entanto, agora surgiu outra mosca na manteiga.

Os manuais de teoria económica dizem-nos que taxas de juro baixas estimulam o investimento privado porque reduzem o custo da contração do empréstimo. Isto é o caso certamente, mas uma via ainda mais forte através da qual taxas de juro baixas têm operado ultimamente tem sido através do estímulo a bolhas de preços de ativos. Quando a “bolha dot.com” nos EUA entrou em colapso no início deste século, o presidente do Fed, Alan Greenspan, baixou as taxas de juro, o que estimulou uma nova bolha naquele país, a da habitação. Isto, ao promover artificialmente a riqueza de muitos indivíduos, deu um impulso às despesas de consumo e também ao investimento em habitação e outros projetos que provocaram um novo boom.

Em suma, a política de juros baixos do Fed funcionou não só através do seu efeito direto na redução do custo do empréstimo como também, significativamente, através do estímulo de uma bolha especulativa de preços de ativos, em que o preço de um cativo sobe muitas vezes mais do que o seu ” valor verdadeiro”, ou seja, o que os seus ganhos descontados ao longo da sua vida útil justificariam. Isto acontece porque embora todos esperem que o preço do cativo acabe por cair, aqueles que detêm o cativo acreditam que ele subiria por mais algum tempo. Eles esperam vendê-lo dentro desse tempo e embolsar os ganhos de capital. E esta procura especulativa do cativo é ajudada se as taxas de juro forem mantidas baixas.

Mas taxas de juro baixas podem encorajar a especulação não só nos mercados de ativos como também nos mercados de commodities. E isto é precisamente o que tem acontecido nos EUA, porque após o colapso da bolha imobiliária os especuladores tornaram-se particularmente cautelosos quanto à especulação no mercado de ativos. A especulação pode surgir não só naqueles bens que, por uma razão ou outra, podem estar temporariamente em escassez ou onde pode haver estrangulamentos temporários e cujos preços, por conseguinte, se espera que aumentem imediatamente. Ela também pode surgir em commodities onde a procura é inelástica (ou seja, não cai demasiado quando os preços sobem) de modo que, mesmo que não haja estrangulamentos na oferta, a escassez artificial pode ser criada lucrativamente. E a procura torna-se particularmente inelástica quando o crédito é facilmente disponível (pois então as pessoas contraem empréstimos para manter a procura).

Uma vez verificados tais aumentos de preços, segue-se a procura por aumentos salariais a fim de compensar os trabalhadores pelas suas perdas de rendimento real com a elevação dos preços. Assim, toda uma espiral de preços-salários pode ser desencadeada mesmo quando não existem grandes estrangulamentos de oferta de qualquer espécie que ameacem o boom. E uma vez iniciada essa espiral inflacionista, o estímulo à economia é forçosamente travado – como está a acontecer agora nos EUA.

O petróleo é um candidato óbvio a tal aumento artificial de preços e não é surpreendente que os preços da gasolina nos EUA em novembro de 2021 tenham sido mais elevados do que os de novembro de 2020 em até 58%, o qual foi o mais alto verificado em qualquer mês desde 1980. O aumento em 1980 foi consequência do segundo choque petrolífero. Contudo, o presente aumento dos preços do petróleo verificou-se sem que houvesse quaisquer altas de preços administrados pelos países da OPEP. De facto, a administração dos EUA tem considerado a possibilidade de utilizar o seu próprio stock de petróleo a fim de manter baixos os preços do óleo.

A especulação com commodities geralmente tem sido ignorada na formulação de políticas económicas em países capitalistas avançados. É dado como certo que taxas de juro baixas estimulariam a procura agregada através de bolhas de preços de ativos e possivelmente através da elevação direta do investimento via redução dos custos dos empréstimos. O facto de taxas de juro baixas também poderem encorajar a especulação com commodities de modo a que o consequente aumento de preços pudesse levar a uma redução da procura agregada ao invés de a aumentar tem sido escassamente reconhecido. No entanto, isto está agora a emergir como consequência de uma política de taxas de juro baixas, a qual tornaria muito mais difícil qualquer intervenção estatal para elevar o nível da procura agregada.

O capital financeiro internacional opõe-se à intervenção orçamental de qualquer governo para estimular a procura, embora seja mais tolerante com a intervenção através da política monetária, pois esta funciona através das decisões dos capitalistas e, portanto, não tem o efeito de deslegitimar o sistema contornando (bypassing) os capitalistas. Mas se a política monetária também se tornar infrutífera, mesmo nos EUA, uma vez que dá origem à inflação muito antes de o sistema se deparar com qualquer grande estrangulamento do lado da oferta, então o sistema fica sem instrumentos para relançar a atividade e ultrapassar o desemprego em massa.

Até agora, a política monetária era considerada, na pior das hipóteses, como um instrumento bruto (blunt). Quando, mesmo com uma taxa de juro próxima de zero, não houve grande relançamento do investimento, muitos argumentaram que a taxa de juro deveria ser empurrada para a região negativa. Isto teria sido difícil de sustentar em qualquer caso, uma vez que qualquer sistema financeiro que cobrasse taxas de juro negativas aos potenciais investidores, não poderia continuar a pagar taxas de juro positivas aos depositantes. Estas últimas taxas também teriam de ser negativas, não havendo, no entanto, qualquer razão para alguém depositar dinheiro em uma instituição financeira ao invés de se limitar a detê-lo como cash.

Mas verifica-se que, além da ineficácia até de uma taxa de juro quase nula em estimular o investimento, também tem o efeito de dar origem à inflação através da especulação de commodities. Isto basicamente deixa o sistema capitalista sob a hegemonia das finanças globais sem qualquer instrumento para estimular a procura agregada, mesmo no principal país capitalista.

A persistência do desemprego mantém quase estagnado o perfil dos salários reais na economia mundial, mesmo quando o perfil das produtividades laborais aumenta internacionalmente, elevando a fatia do excedente económico na produção mundial e dessa forma empurrando a economia mundial para uma crise ainda mais profunda de sobre produção. Se ao mesmo tempo não houver instrumentos disponíveis para elevar o nível da procura agregada, ou seja, para combater a crise, então o capitalismo mundial fica condenado a um estado de perene desemprego em massa, o que só pode minar a sua estabilidade política. As implicações de tal estado de coisas para economias como a da Índia são imensas e profundas.

02/janeiro/2022

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2022/0102_pd/yet-another-contradiction-capitalism. Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em resistir.info

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