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quarta-feira, 27 março, 2024

Janeiro vermelho: nenhuma gota de sangue indígena

José Bessa Freire*

“Volveré y seré millones” (Túpac Katari, maio de 1781)

Por volta das 15 horas, o jovem sarado enfrenta o calor senegalesco, trajando terno azul e gravata quadriculada. Tem pinta de advogado ou de auxiliar de segurança da Petrobrás (meu Deus, como eles se parecem!). Caminha em direção ao Fórum, ao lado da moça meio periguete, que usa vestido sem mangas, cinta marrom na barriga e sandália bebecê de salto alto. Os dois dão uma paradinha para ver que furdunço era aquele nas escadarias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Uma índia de cocar discursa. O aspirante a desembargador (ou será segurança?) olha com desdém e diz em voz alta:

– São apenas quatro gatos pingados.

Ele não sabe contar. Ali, naquele momento, éramos umas quatro centenas de gatos, capazes de arranhar quando atacados. Leões e leoas de várias etnias que moram no Rio, ligados à Associação Indígena Aldeia Maracanã (AIAM), tinham o apoio de felinos das tribos aliadas: antropólogos, professores, estudantes, historiadores, profissionais da saúde, sindicalistas, representantes de movimentos sociais, deputados do PSOL – Renata Souza, Eliomar Coelho e Flávio Serafini – um ex-presidente da FUNAI, Márcio Meira, e até advogados do bem em trajes adequados ao calor, que nem pareciam seguranças.

Aquele ato público no Rio fazia parte da programação de encerramento da campanha Janeiro Vermelho – Sangue Indígena, Nenhuma Gota a Mais”, organizada pela Articulação Nacional dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) em 60 cidades e aldeias de 22 estados e do Distrito Federal, assim como no exterior: Europa, Canadá e Estados Unidos. Foi a primeira manifestação popular contra o governo Bolsonaro e sua decisão de reduzir os direitos indígenas previstos na Constituição, incluindo a posse da terra.

No Brasil

No Rio, em nome dos manifestantes, Carlos Tukano, Marize Parareté e Vãngri Kaingang subiram as escadarias e protocolaram uma denúncia junto à presidência da ALERJ contra o deputado bolsonarista Rodrigo Amorim (PSL vixe, vixe) por quebra de decoro parlamentar, quando declarou que “a Aldeia Maracanã é um lixo urbano e quem gosta de índio que vá para a Bolívia”. Foi denunciado por injúria racial ao Ministério Público Federal e à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em Paraty (RJ), índios Guarani e Pataxó, lotaram as estreitas ruas da cidade.

Um grupo em frente à estátua de Tiradentes acompanhava no celular as manifestações pelo mundo afora que ocorriam naquele momento em cidades e aldeias: marchas, passeatas, atos públicos, bloqueios de estradas, rituais, rezas e danças.

São Paulo não nega fogo. Na Avenida Paulista, em frente ao Masp, cerca de quatro mil “gatos pingados”, segundo a APIB, protestavam contra a entrega da Funai à bancada ruralista, entre elas o rapper Criolo, o vereador Eduardo Suplicy e lideranças indígenas como Vanusa Kaimbé e Cleiciane Guarani, que discursou: “A gente estava cantando para devolverem as nossas terras e não destruírem a nossa natureza”. Os manifestantes se solidarizaram com as vítimas do rompimento da barragem de Brumadinho.

No Ceará não tem disso não. Uma marcha desfila pelo centro de Fortaleza. Ceiça Pitaguary destaca o papel da mulher indígena na luta e denuncia que seu povo vive rodeado por pedreiras: “Tentam decepar 300 hectares das nossas terras para entregar às mineradoras”. Ela diz que os povos indígenas vêm alertando sobre os crimes como o que a Cia. Vale do Rio Doce cometeu em Brumadinho, porque “os governos beneficiam empresas em detrimento do meio ambiente, de povos e comunidades, de vidas de espécies animais e vegetais”.

Mundo afora

No Maranhão, em Santa Inês, os índios ocupam a Praça da Rodoviária e em São Luís, uma concentração na sede do Incra reúne Tremembé, Guajajara, Krikati, Gavião e Canela pintados de urucu e jenipapo que gritam palavras de ordem contra o desmonte da Funai. Na Bahia, os Tupinambá de Olivença bloqueiam a BR-101 e em Santa Catarina, os Guarani e os Kaingang fazem o mesmo com a BR-386. Os Terena da Aldeia Bananal (MS) e os Kisêdjê do Xingu (MT) focam na denúncia da medida provisória 870 que anula os direitos indígenas e nas medidas recentes do governo Bolsonaro.

No Rio, diante da estátua de Tiradentes, a telinha do celular mostra agora em Brasília, a concentração na fachada do Ministério da Agricultura. Sônia Guajajara, candidata a vice-presidente e Joênia Wapixana, a primeira mulher indígena eleita para o Congresso Nacional dão entrevista coletiva à imprensa, chamando a atenção para a defesa da floresta e para às mudanças climáticas: “Esse não é um Governo do Brasil, mas do agronegócio e das grandes empresas”.

Em Rondônia, Roraima, Acre, Amapá, Amazonas e outros estados as manifestações acontecem. A marcha em Belém saiu do Teatro da Paz e desfilou pelas ruas do centro, com a participação de índios Warao da Venezuela. Os manifestantes protestam contra a retórica anti-indígena de Bolsonaro, que encorajou os recentes ataques às aldeias cometidos por jagunços e pistoleiros a serviço de fazendeiros.

Contrastando com o calor das cidades brasileiras, as manifestações nos países da Europa, Estados Unidos e Canadá, foram realizadas no frio siberiano. Em Montréal, a temperatura 26 graus abaixo de zero não impediu que integrantes do Comitê pelos Direitos Humanos na América Latina (CDHAL) protestassem e entregassem carta ao Consulado do Brasil. Em Londres, ao lado dos manifestantes, a atriz Julie Chistie, vencedora do Oscar, se fez presente em frente à Embaixada do Brasil e se pronunciou contra o genocídio.

Serei milhões

Seriam enviadas pelo deputado racista para a Bolívia todos os “gatos pingados” que se multiplicaram em diversas cidades: Los Angeles, Nova Iorque, Washington-DC, Lisboa, Porto e Coimbra, Zurique, Berlim e Paris, e até em Edimburgo na Escócia.

O jovem sarado e a periguete não têm a menor ideia do que está acontecendo em seu país, nem serão informados pela mídia que, com raras exceções, guardou sigilo sobre a matéria. Uma extensa cobertura online nas redes sociais é feita pela Agência Amazônia Real, com 18 jornalistas espalhados por esses brasis.

Isso é só o começo. Os índios saíram na frente, indicando o caminho da resistência. Afinal, como diz Ailton Krenak, eles têm experiência acumulada: estão brigando há 519 anos sem interrupção. Enfrentaram os canhões dos portugueses, os castigos dos missionários, a violência dos bandeirantes, dos colonos, dos fazendeiros, das mineradoras, do agronegócio, dos jagunços, dos pistoleiros e até a indiferença de parte da sociedade brasileira e seus aparelhos ideológicos: escola, museu, mídia.

A profecia de Túpac Katari começa a se realizar: “Voltarei e serei milhões”. Dos 57 milhões de votantes em Jair Bolsonaro, quantos gatos pingados estão agora dispostos a sair às ruas para defender o presidente que elegeram?  Quantos brigarão por Queiroz, Flávio Bolsonaro et caterva?

P.S.1 –Jonathan Swift relata que seu personagem central Gulliver chega a ilha de Lilliput, cujos moradores tem apenas 15 centímetros de altura e o veem como um gigante. Apesar disso ou por isso mesmo, Gulliver é aprisionado pelos lilliputos. Na ilustração do Tijolaço, Dias Toffoli, minúsculo, é um lilliputo do Brasil moderno.  Sérgio Moro é outro.

P.S.2 Cobertura da Agência Amazônia Real

http://amazoniareal.com.br/especial-indigenas-ocupam-as-ruas-do-pais-para-protestar-contra-bolsonaro/

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