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sexta-feira, 29 março, 2024

Integração económica e livre mobilidade do trabalho

por Prabhat Patnaik [*]
Há uma visão de que o descontentamento entre os trabalhadores ingleses que provocou o voto no Brexit não foi por causa da integração económica europeia em si, mas por causa da política de livre migração interna que tem acompanhado esta integração; de que se a Europa não houvesse instituído a livre migração dentro da UE, então a sua integração económica teria tido mais êxito. A sua integração económica teria assim permanecido confinada apenas ao livre movimento de bens e capital mas não ao do trabalho, e que este movimento livre, isto é, apenas de bens e capital, é benéfico para os países a serem economicamente integrados.
A globalização contemporânea, pode-se recordar, também está confinada apenas ao movimento livre de bens e capital e não se estende ao livre movimento do trabalho. Segue-se da afirmação acima, portanto, que esta globalização deve ser benéfica para países capturados na sua teia e que estão errados os que argumentam que integração económica envolvendo movimento livre de bens e capital é danoso para o povo dos países que estão a ser integrados,.
Esta visão foi avançada recentemente ( The Hindu, 14 de Julho) pelo Dr. C. Rangaraja, o bem conhecido economista e ex-governador do Banco de Reserva da Índia, para contestar aqueles que vêem o próprio facto de estarem presos no movimento livre de bens e capital como a causa subjacente básica da aflição da classe trabalhadora inglesa e interpretam o voto no Brexit como uma revolta não auto-consciente contra isto.
Esta argumentação de que integração económica envolvendo movimento livre de bens e capital numa certa região é provável que tenha êxito se não for acompanhada pela livre mobilidade do trabalho nessa região, entretanto, vai em sentido contrário aos postulados da teoria económica convencional (“mainstream”) sobre a qual está fundado o próprio projecto da UE.
Gunnar Myrdal, o famoso economista sueco e que recebeu um Prémio Nobel, argumentou há muito que quando o capital se localiza num lugar particular ele tende a atrair outros capitais àquele lugar. Segue-se disto que se há liberdade de movimentos de capital e de bens numa região, então alguns segmentos desta tornar-se-ão “desenvolvidos” ao passo que outros se tornarão “subdesenvolvidos”, através do que ele denominou um processo de “causação cumulativa”.
Uma tal dicotomia, pode-se pensar, seria auto-negadora, uma vez que, na ausência de mobilidade do trabalho do segmento subdesenvolvido para o desenvolvido, os salários no primeiro cairiam abaixo dos salários dos últimos e que este facto atrairia capital do último para o primeiro. Por outras palavras, o processo de “causação cumulativa”, seria enquadrado em algum ponto pelo desenvolvimento de uma diferença salarial entre os dois segmentos.
Mas isto não acontece. A vantagem potencial que o capital obteria localizando fábricas no segmento subdesenvolvido de salários mais baixos pode ser mais do que compensada pela desvantagem de se afastar do segmento desenvolvido onde várias “economias externas” (tal como infraestrutura adequada) estariam disponíveis, especialmente se o custo do trabalho for comparativamente uma pequena parte do custo total de produção (de modo que salários mais baixos não fazem grande diferença).
Pode-se dizer exactamente o mesmo acerca da depreciação da taxa de câmbio no segmento subdesenvolvido. Mesmo se as taxas salariais nos dois segmentos forem iguais à taxa de câmbio inicial e nada mudar na taxa salarial, a depreciação da taxa de câmbio no segmento subdesenvolvido tem o efeito de embaratecer seu custo de produção, exactamente do modo como uma queda na sua taxa salarial o faria. Mas se a redução da taxa salarial não pode ultrapassar a “causação cumulativa”, então uma depreciação da taxa de câmbio também será ineficaz pela mesma razão. Além disso, dentro de uma área com divisa comum, a questão da depreciação da taxa de câmbio de um segmento particular da área não se coloca.
Mesmo quando os dois segmentos não pertencem a uma área com divisa comum, uma depreciação pode no entanto ser contornada devido às suas consequências inflacionárias (porque inputs importados então custam mais e isto é “transmitido” na forma de preços mais altos). Tais consequências inflacionárias, além de prejudicarem o povo (por causa dos ganhos incertos decorrentes de uma depreciação da taxa de câmbio), em certa medida negam mesmo o efeito da própria depreciação. Se por exemplo houver uma depreciação de 10% da taxa de câmbio em termos nominais e se isto causar, através de efeitos custos a mais, uma ascensão de 6 por cento nos preços, então a depreciação efectiva real já não é mais de 10 por cento e sim de apenas 4 por cento, isto é, 10-6, cujo impacto correspondente na ampliação do nível de actividade no segmento subdesenvolvido fica diminuído.
Finalmente, uma depreciação da taxa de câmbio é sempre contrariada pelos interesses financeiros pertencentes a um segmento particular. Isto acontece porque a confiança dos possuidores de riqueza em manter sua divisa, ou activos denominados nesta divisa, fica minada se a sua divisa adquirir a reputação de estar sujeita a depreciações, as quais portanto reduzem os negócios dos interesses financeiros localizados naquele segmento. (Isto, diga-se de passagem, é a razão porque a Grã-Bretanha, apesar de não ser uma área com a divisa comum e apesar de ter um défice em conta corrente na balança de pagamentos que actualmente chega a 7 por cento do PIB, nada faz para reduzir o valor da libra esterlina: a City de Londres, onde estão localizados os interesses financeiros britânicos, opõe-se à desvalorização da libra esterlina).
Por todas estas razões, tentativas de integração económica invariavelmente enfrentam um obstáculo, nomeadamente de que os países que são candidatos à integração temem ficar “subdesenvolvidos” em consequência, especialmente se eles fizerem parte de uma área de divisa comum (de modo que a depreciação da taxa de câmbio é simplesmente impossível). E mesmo que isto possa não acontecer a países como tais, áreas particulares dentro de países podem tornar-se progressivamente cada vez mais “subdesenvolvidas” em consequência da integração económica do país com uma entidade maior.
O caminho óbvio para ultrapassar este obstáculo é pela instituição da livre mobilidade do trabalho entre os diferentes segmentos que estão a ser integrados. Isto assegura que mesmo que o capital não flua para os segmentos atrasados, a força de trabalho do mesmo não permanece presa dentro de um cenário de “subdesenvolvimento” agravado. Ela escapa à aflição através da migração para o segmento desenvolvido.
Uma condição essencial para o êxito da integração económica é portanto a livre mobilidade do trabalho na área que está a ser juntada através de tal integração, pois na sua ausência países soberanos ficarão relutantes em entrar na mesma. E a necessidade da livre mobilidade do trabalho é ainda maior quando a integração assume a forma de uma união de divisas, tal como a Eurozona. A mobilidade do trabalho é de facto tão essencial para o êxito da integração económica que frequentemente economistas julgam as perspectivas de integração verificando se a diversidade cultural e linguística dentro dela dificulta a mobilidade do trabalho.
Portanto, a visão de que a integração económica tal como aquela que a UE representa teria mais êxito na ausência de mobilidade do trabalho vai contra as conclusões básicas da teoria económica “convencional”. E precisamente devido a tais conclusões a UE instituiu a livre mobilidade do trabalho dentro das suas fronteiras, a qual foi considerada uma nova característica que faria a tentativa de integração um êxito, em contraste com tentativas semelhantes feitas em outras partes do mundo (tais como na América Latina).
A razão porque o projecto europeu esta a fracassar não se deve à livre mobilidade do trabalho (embora este fosse o modo como a direita apresentaria o assunto) mas sim à crise aguda na qual a Europa está actualmente envolvida, a qual afectou também a Grã-Bretanha. De qualquer forma, no âmbito do regime de globalização, houve uma mudança de várias actividades da Europa para países com salários mais baixos como a China e a Índia a qual provocou desemprego e dificuldades económicas a certas secções da força de trabalho europeia, incluindo a britânica. (Isto à primeira vista pode parecer contradizer o prognóstico de Gunnar Myrdal, pois sugere que salários mais baixos estão a triunfar sobre o processo de “causação cumulativa”; mas as actividades sendo comutadas para fora das metrópoles são de ordem inferior no espectro tecnológico, o qual ainda deixa a tecnologia mais refinada e de actividades mais intensivas na metrópole). A sobreposição da crise nesta situação só fez as coisas piores para a classe trabalhadora europeia e inglesa.
A crise é um produto da globalização por duas razões óbvias: primeiro, a globalização impede a intervenção do Estado na “administração da procura” em estilo keynesiano, uma vez que o capital financeiro globalizado que tem poderes finais opõe-se a qualquer activismo do Estado excepto para promover os seus próprios interesses. Em consequência, o único possível antídoto para uma crise ou uma tendência incipiente rumo à super-produção é a formação de uma “bolha” de preços de activos. E uma vez que “bolhas” não podem ser fabricadas por encomenda, crises incipientes desenvolvem-se em crises completas e crises completas mantêm-se persistentemente.
Em segundo lugar, a globalização liga (embora não equalize) os salários mundiais e portanto mantêm-nos restringidos devido à existência das maciças reservas de trabalho do terceiro mundo. Logo, o crescimento de salários por toda a parte fica aquém do da produtividade do trabalho, elevando a fatia do excedente, tanto dentro de cada país como globalmente, precipitando uma crise de super-produção generalizada. Estamos a meio de uma tal crise.
O fim desta crise não está à vista em parte alguma. Isto acontece porque aos Estados-nação individuais falta a autonomia, dentro do regime da globalização, para resistir às pressões da finança globalizada e empreender medidas estimuladoras da procura dentro dos seus próprios países (com política comercial adequada para assegurar que tais medidas não tornem a balança de pagamentos insustentável). Ao mesmo tempo, não existe qualquer Estado supra-nacional ou global que possa em princípio ter a fortaleza para resistir às pressões da finança globalizada e empreender a “administração da procura”.
Eis porque a economia mundial, não apenas a Europa ou a Inglaterra, continua a permanecer afundada na crise. Isto também explica porque a classe trabalhadora inglesa não auto-conscientemente votou por se desligar da UE que para ela constitui o teatro da globalização mais próximo. Provavelmente muitas outras revoltas assim se seguirão em outros países. Imaginar que a globalização, juntamente com suas medidas acompanhantes de “austeridade”, acabarão por ser benéficas apenas se restrições forem impostas à livre mobilidade do trabalho é aceitar a visão do mundo das forças de direita na Europa que atacam a imigração mas não a “austeridade”. Tais restrições na melhor das hipóteses exportam um bocado de aflições de trabalhadores de um segmento da Europa para outro – mas não podem acabar com as próprias aflições, mesmo num país que decida deixar a União Europeia e erguer barreiras contra a imigração, uma vez que isto exigiria que a procura fosse estimulada, isto é, que a “austeridade” deveria ser ultrapassada.
24/Julho/2016
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2016/0724_pd/economic-integration-and-free-mobility-labour
Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

28/Jul/16

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