“Baby”, “Vapor barato”, “Força estranha”, “Vaca profana”, “Lágrimas negras”, “Barato total” são algumas das canções históricas de sua carreira – Fernando Frazão / Agência Brasil
“A minha voz é o espelho da minha alma”, definiu Gal, uma das maiores artistas do Brasil, que morreu aos 77 anos
Seu nome é Gal. Mas ainda era Maria das Graças Costa Penna Burgos quando, no começo dos anos 1960, ela deu um jeito de acompanhar um cronista do Jornal da Bahia a um encontro com João Gilberto, seu maior ídolo. O criador da bossa nova já tinha ouvido falar da “menina que cantava”, sua conterrânea baiana. Pediu que ela buscasse um violão. Ela assim o fez e foi ficando tensa à medida que cantava o repertório dele, que pedia que continuasse, mas a escutava em silêncio. João Gilberto, cujo perfeccionismo se tornou anedótico, então, cravou: “você é a maior cantora do Brasil”.
O timbre único, os 40 discos gravados ao longo das quase seis décadas de carreira, as 30 indicações a prêmios e 480 parcerias fizeram com que a opinião de João Gilberto não ficasse solitária. E é assim que, nesta quarta-feira (9), o país se vê obrigado, de forma abrupta, a se despedir de um dos maiores nomes de sua cultura.
Aos 77 anos, Gal Costa morreu enquanto se recuperava de uma cirurgia que retirou um nódulo da fossa nasal e tinha shows da turnê “As várias pontas de uma estrela” já agendados para dezembro.
“Eu vou trabalhar até quando eu puder, quero cantar até quando Deus quiser”, disse Gal, em abril deste ano. Foi o que fez, ativa até o fim. Sua última apresentação foi em São Paulo, no festival Coala, em setembro, e está disponível na íntegra no Youtube.
Nenhuma dor
Símbolo de uma revolução na música e nos costumes provocada pela geração com a qual despontou, na década de 1960, Gal morre em um momento em que novas compilações de sua trajetória chegam ao público. A sua cinebiografia, o filme Meu nome é Gal, tem lançamento nos cinemas previsto para 2023. O longa é dirigido por Dandara Ferreira, que fez também uma série documental de mesmo nome, disponível na HBO.
Numa revisita a algumas de suas canções clássicas, agora até ganhando ares de passada de bastão, o disco mais recente de Gal, lançado em 2021, foi gravado em duetos com artistas das novas gerações. Criolo, Rubel, Rodrigo Amarante, Seu Jorge, Silva, Tim Bernardes, Zé Ibarra, Zeca Veloso, o português António Zambujo e o uruguaio Jorge Drexler a acompanham no álbum “Nenhuma dor”.
O nome do disco é também o de uma canção de Caetano Veloso, o maior compositor das músicas gravadas por Gal, e feita a partir de um poema de Torquato Neto. Nesta nova versão da música, a cantora é acompanhada pelo filho de Caetano, Zeca. O ponto central do álbum, ela chegou a dizer, foi trazer artistas homens influenciados por seu trabalho, como foi João Gilberto para ela.
De Gracinha a Gal Costa
Filha única, nascida na Barra Avenida, em Salvador, em 26 de setembro de 1945, Gal Costa nunca estudou canto formalmente. Mas, segundo contava sua mãe e grande incentivadora Mariah Costa Pena, o estímulo para que ela fosse uma “pessoa musical” veio desde que estava ainda na barriga. Durante a gravidez, como que num ritual, Mariah passava uma hora por dia concentrada, ouvindo música clássica.
Com o pai ausente, Gracinha – como era chamada – foi criada pela mãe e a tia. Desde menina era levada ao teatro, ao cinema e a concertos de música e não demorou para que, apesar de tímida, decidisse a que queria se dedicar. Adolescente, arranjou um emprego como balconista da principal loja de vinis de Salvador, a Roni Discos, e lá se alimentava das novidades.
Em 1963, uma amiga marcou um encontro, na galeria Bazarte, entre Gal e Caetano, ambos ainda desconhecidos – entre si e do público. Segundo conta Gal em entrevista ao Roda Viva em 1995, Caetano parecia meio de saco cheio. A amiga já o tinha apresentado a duas outras cantoras com quem a sintonia não rolou. Mas com ela foi diferente, assim que descobriram compartilhar da idolatria por João Gilberto. Caetano pegou o violão e lhe ensinou uma de suas músicas: “Sim, foi você”.
Esta canção, junto com “Eu vim da Bahia”, de Gilberto Gil, foram gravadas no seu primeiro compacto, cujos primeiros 80 exemplares foram vendidos pela própria Roni Discos. Depois de Caetano, não demorou para que conhecesse Bethânia e Gil, pessoas com quem descreveu ter uma “irmandade espiritual”: “Éramos velhas almas conhecidas”.
Em 1964, junto com eles e Tom Zé, montou o espetáculo musical Nós, por exemplo. Um vídeo deste período em que ele a descreve, aliás, é digno de passagem. “Eu chego para ver ela e eu vejo ela e me arrebato por ela e me arrebento por ela, me desarrumo por ela, não sei, é sempre surpreendente, eu nunca sei o que vai acontecer, cada vez acontece uma coisa estranha. É como se a vida estivesse se partindo, se começando, se acabando, Gal Costa é muito maravilhosa”, sorri Tom Zé.
Em 1966, por sugestão do empresário Guilherme Araújo, que dizia que Maria da Graça era nome de cantora de fado, ela adota seu nome artístico. E pela primeira vez como Gal Costa participa do I Festival Internacional da Canção, com “Minha senhora”, de Gilberto Gil e Torquato Neto. Mas foi em 1967 que ela e Caetano estrearam, juntos, o primeiro disco: “Domingo”.
Divina e maravilhosa
A guinada do estilo da bossa nova para o tropicalista foi marcada pela interpretação, em 1968, de “Divino maravilhoso”, composta por Gil e Caetano. Com um vestido colorido, o cabelo armado e uma voz rasgada inspirada em Janis Joplin, Gal se apresentou no palco do festival da TV Record com o arranjo “extrovertido” que tinha pedido que Gil fizesse. “Metade da plateia vaiava, metade aplaudia. Era uma coisa inteiramente nova pra mim”, contou.
“Você tem que estar sempre atento e forte”, Gal citou um trecho da música em entrevista recente, ao comentar o contexto político brasileiro sob a gestão Bolsonaro. “Para não deixar uma ditadura de direita se instalar no Brasil. O Brasil acabou de sair de uma ditadura”, completou.
E foi no auge desta, da qual o país saiu há menos de 40 anos que, com o disco “Tropicália ou Panis et Circencis“, o movimento tropicalista foi oficialmente fundado em 1968.
Tendo o nome inspirado em uma obra do artista Hélio Oiticica, que propunha novas experiências sensoriais a partir do que considerava elementos brasileiros, o tropicalismo misturava rock, concretismo, guitarras, samba, baião, contracultura, desbunde. Uma crítica à caretice, da direita e da esquerda. Em plena ditadura militar, defendia a transformação a partir de novas experiências estéticas, culturais, relacionais.
Quando Gil e Caetano foram obrigados pelo regime militar a se exilar na Europa, em 1968, Gal passou a ser uma das principais figuras do tropicalismo no país. Um dos mais concorridos pontos da contracultura do Rio de Janeiro, onde ela vivia na época, ganhou até seu nome. As “Dunas da Gal” ou “Dunas do barato” ficavam em um trecho da praia de Ipanema. Ninguém ia porque estava acontecendo uma construção ali. E, por isso, podendo ficar de boa, acender um, ela, Jards Macalé, Jorge Mautner, entre outros, começaram a frequentar. Virou moda.
No começo dos anos 1970, Gal faria o show “Fa-tal” que, com longa temporada no Teatro Teresa Raquel, no Rio de Janeiro, teve grande repercussão na música popular brasileira. Depois se tornaria um dos seus mais famosos discos. Foi ali que, com Pepeu Gomes na guitarra, Gal lançou a música “Vapor Barato”.
Para comemorar uma década de sucesso de suas carreiras individuais, Gal, Bethânia, Gil e Caetano se juntam no grupo Doces Bárbaros, em 1976, para uma turnê. Tendo no repertório canções até então inéditas, como “Um índio”, “Pássaro proibido” e “O seu amor”, o sucesso foi tão grande que o show virou disco e a turnê, documentário. O filme retrata quando, passando por Florianópolis, Gil foi detido por porte de maconha. Em 2002, o quarteto se juntou de novo para apresentar “Doces Bárbaros” em um histórico show em Copacabana.
Arte como sustentação para seguir
Em uma declaração dada em fevereiro do ano passado, na qual comentou torcer para que “tenha vida depois que a gente apague”, Gal disse que o mundo “está ruim” e “difícil”. “A gente vê tanta injustiça, tanta desigualdade”, avaliou: “mas a gente não pode deixar de ser esperançoso, porque é isso que move a humanidade”.
Em outra entrevista, a gigante da música brasileira definiu a arte – coisa que ela tanto deu ao mundo ao longo de seus 77 anos – como “a identidade de um povo”: é o que “dá energia e sustentação para as pessoas seguirem em frente em suas jornadas”.
“Pensar em Gal”, escreveu Tom Zé nesta quarta (9), poucas horas depois de sua morte, “me lembra que meu rosto pode sorrir”.