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quinta-feira, 28 março, 2024

Eleições no Chile: a raiva não basta

Manifestação popular em Santiago do Chile.
– Apresentação do livro Chile: sueños, derrotas, esperanzas

José C. Valenzuela Feijóo [*]

“Queremos aqui na terra,

o reino dos céus construir”.

E. Heine

Nos últimos anos ou pouco mais, o Chile sofreu de duas “pandemias”. Uma, que é a associda ao “Coronavírus”, que pandemai em sentido estrito, com toda a carga de sofrimentos que isto implica. A outra, é a grande revolta popular contra o modelo económico e político neoliberal. “Pandemia” entre aspas e que nos enche de alegria.

Nenhuma grande revolta pode ser dada se não for satisfeito um ingrediente primário e básico: a espontaneidade com que “sentem”, aborrecem-se e reagem os “revoltosos”. Digamos que operam sentimentos muito fortes que se foram acumulando, daqueles que geram uma grande contrariedade e que desembocam nesse grito maciço do “já basta”, do “não suportamos mais.

Sem o ingrediente da contrariedade e da cólera espontânea, nenhuma mudança sócio-económica significativa pode verificar-se. Mas a cólera e a raiva (a dos “enragée” da Revolução Francesa), não bastam. Como se costuma dizer, operam como condição necessária mas não suficiente.

Os desconfortos e protestos que se vêm processando no Chile são um fenómeno complexo e que não respondem só a situações de pobreza extrema, como acontece na maior parte da América Latina. De facto, sim no Chile existem núcleos de pobreza extrema, mas são bastante menores do que se observa em outros países da região. Além disso, verifica-se que o grosso da população reside em zonas urbanas e o emprego agro-pecuário (que não é alto), responde quase todo a uma de tipo capitalista mais ou menos moderna. Em suma, a componente pré-capitalista que possa ocorrer nos protestos chilenos é baixa. E é necessário precisar: no Chile de hoje, a distribuição do rendimento é muito regressiva. Mas isto é algo inerente a todo regime capitalista e, ainda com maior força, se se trata de um capitalismo neoliberal e periférico.

Se a bem da brevidade saltarmos alguns passos intermédios, podemos enunciar uma primeira hipótese básica:  o actual mal-estar e ira dos chilenos é contra o sistema capitalista. Assim enunciada, a hipótese pode dar lugar a grandes mal-entendidos. Para evitá-los podemos examinar muitas declarações de trabalhadores jovens: “gosto de marchar, sinto-me rodeado de companheiros solidários, dão-me confiança, apoio. Posso compartilhar as alegrias, sonhar junto a eles, sentir que pode haver um mundo melhor. Nada a ver com a fábrica, ali impera a vida dura, a desconfiança, a traição, o gerente é um déspota, o capataz um filho da puta…”. Em suma, na fábrica, no trabalho, não se pode ser feliz.[1]

Ao aqui assinalado, de imediato devemos acrescentar dois aspectos chave: a) o desgosto é contra os efeitos ou consequências; b) pelo menos por agora, não visa as raízes do fenómeno; c) para a necessária conexão entre a) e b), ainda existe uma cegueira bastante extensa. Ou seja, não há clareza ou consciência sócio-política adequada sobre as raízes ou fundamentos do mal-estar. Em suma: sabemos ou “sentimos” o que não nos agrada. Queremos mandá-la para o lixo. Mas não está claro com o que a devemos substituir.

A falta de clareza sobre as origens e fundamentos do mal-estar implica um desconhecimento nada menor sobre os traços mais essenciais (seus “fundamentos”) do modo de produção capitalista. Em simultâneo, este défice cognitivo vem determinado por um traço chave da prática política maioritária hoje observável: do horizonte mental que opera a grande maioria dos insurrectos desapareceu quase por completo a noção de um regime pós-capitalista. Digamos, de tipo socialista. Muito menos quando o regime socialista é concebido como uma fase de transição (não curta) a um modo de produção superior: o comunista. Entendendo este não como um ideal utópico e sim como algo que já começa a ser factível, pelo menos no capitalismo mais desenvolvido.

No movimento actual há insuficiências sérias. Podemos deter-nos em duas delas: 1) a quase inexistente unificação e organização política; b) a clareza insuficiente sobre o tipo de transformações que se deveriam buscar. Em que 1) e 2) devem ser congruentes com as transformações que efectivamente permitam resolver o actual mal-estar.

Pelo lado da organização política é evidente a falta de um partido político capaz de unificar politicamente a classe operária e, ao mesmo tempo, de impulsionar a criação de uma ampla frente classista. Que actividades (formas de lutar) desenvolver, em que momentos e lugares, com que variedade e coordenação? Em suma, trata-se de identificar: a) as tarefas de transformação a cumprir; b) as forças impulsionadoras, as neutralizáveis e as inimigas; c) as formas de luta a descobrir.

Em vista disso, dever-se-iam organizar (preparar, coordenar) as actividades pertinents, avaliar seus resultados, corrigir, etc. Em todos os casos é preciso que as formas de organização e as actividades desenvolvidas seja congruentes com as transformações centrais que se procuram. Nunca esquecer que por vezes a eficácia de curto prazo torna-se muito daninha para os propósitos centrais e de mais longo prazo. Aqui, a chave é construir, fortalecer e preservar o Poder Popular. Por exemplo: i) impulsionar os Conselhos Operários de fábrica: os trabalhadores devem aprender a mandar; ii) evitar que os chefes se tornem independentes e se separem do mandato das bases: evitar, então, a peste burocrática sempre presente como possibilidade. Neste âmbito, torna-se imprescindivel estudar com seriedade e rigor os êrros que levaram a degenerar os experimentos de construção do socialismo. Que factores e circunstâncias e provocaram o fracasso? Seria possível prevenir e corrigir? Que ensinamentos se podem deduzir, que medidas e acções poderiam evitar as deformações e fracassos?

No movimento chileno actual parece haver uma consciência clara sobre a possibilidade de deformações burocráticas. Não tanto sobre os modos de evitá-las sem cair em estilos anarquistas que em nada ajudam.

Vale a pena acrescentar: no plano da economia tão pouco se verifica clareza. Há molhos de medidas, mas não se vê um programa compacto de industrialização e desenvolvimento. Não basta falar de democracia: é preciso sabê-la materializar no plano decisivo da produção e do crescimento. Do contrário, poder-se-iam repetir fracassos conhecidos, aqueles que ao insistirem no aspecto distributivo esquecem-se do factor chave: a produção.

Todo propósito prático (isto é, de transformação) exige conhecimento certo. Maior ou menor conforme a profundidade das mudanças que se tenta alcançar. Se se trata de romper frontalmente com o capitalismo é preciso uma teoria muito profunda, verdadeira e radical. E nesta mudança, a teoria de Marx e seus sucessores é imprescindível. E não existe , nem remotamente, algum outro paradigma que se lhe possa sequer aproximar. No entanto, no momento actual e ainda mais se pensarmos no Chile, verificamos que muito poucos, para não dizer que quase ninguém, se preocupam em estudar tais teóricos. E muito menos de desenvolvê-los criticamente e adequá-los ao actual momento histórico. Na verdade, nem sequer o Manifesto Comunista é um texto lido (muito menos estudado) pelos rebeldes do momento actual. Diríamos que a não poucos, tal literatura parece-lhes “aborrecida”[2] E está muito claro: se não se pretende superar o sistema capitalista, essas fontes teóricas tornam-se prescindíveis, algo ou muito escolásticas, suporíferas e inúteis. O impacto que gera esta carência é brutal, equivale a “ir à guerra sem fusil”. E que isto aconteça no Chile, é mais que preocupante. Por exemplo, o golpe de Estado de Pinochet e a cruenta ditadura que lhe seguiu é uma confirmação diríamos que estrondosa da validade da teoria de Lenine sobre a natureza mais essencial do Estado capitalista. Mas o texto clássico de Lenine sobre “O Estado e a revolução” é algo que hoje muito poucos conhecem e ainda menos estudam.

Afinal de contas, poderíamos perguntar-nos: se não existe a vontade consciente de ir para além do capitalismo, para que estudar as lei que regulam uma mudança social maior, que impliquem romper com o capitalismo? Fazê-lo, pareceria um simples desporto, adequado para gente ociosa e aborrecida, que recolhe e estuda papiro egípcios.

A situação é lamentável. Mas se do horizonte histórico e mental das pessoas desapareceu a possibilidade real de avançar para um regime pós-capitalista, a consequência é inevitável. Em suma, quando não se visualiza no futuro um regime pós-capitalista, nem sequer como desejável, para que embarcar em divagações ociosas?

No que temos assinalado emerge uma dissociação maior: ao nível da consciência (do factor subjectivo), o socialismo não existe. Mas no plano material (no técnico e no económico), o capitalismo mais desenvolvido (o dos EUA, da Europa Ocidental, o do Japão) está prenhe de socialismo. É como a mãe que com sete ou mais meses de gravidez não faz ideia disso.

Ou seja, tal dissociação responde a razões muito poderosas.

Uma, respeitante ao Chile, é a cruenta derrota sofrida em 1973 e a longa ditadura que se seguiu. O impacto destes acontecimentos costuma ser profundo:   para uma nova tentativa há que pensá-la duas vezes. Ou, pior ainda, o melhor é apagar os ideais da cabeça.[3] São perigosos e muito pouco rentáveis.

Dois, a operar com força maior, temos as consequências do ruidoso fracasso e derrube dos experimentos conhecidos de construção do socialismo. Trata-se em especial do caso da União Soviética, que de super-potência “mãe e guia” desintegrou-se num ápice. E o que era o muito “poderoso campo socialista” (ainda que de socialista já tivesse pouco ou nada) caiu como um castelo de cartas e pôs a nu dramas, enganos e insuficiências maiores. Curiosamente, a esquerda em vez de realizar uma profunda análise auto-crítica, salvo muito poucas excepções, caiu primeiro no estupor e no desencanto. Depois, num quase silêncio e muito depressa, a nível de dirigentes, incorporou-se com brutal cinismo nas fileiras da direita neoliberal. Por vezes, disfarçados de sociais-democratas.

Naturalmente, o ocidente cristão aplicou rapidamente seu imenso poder mediático para cravar uma palavra-de-ordem central:  o socialismo era um fracasso total, era “feio”, “cinzento” e criminal. Algo que se dirige contra a própria natureza humana. Em suma, um impossível.

No aqui assinalado opera também uma relação implícita:  se acreditarmos que o socialismo não pode chegar a existir, terminaremos por acreditar que não há pós-capitalismo que opere como possibilidade real: a história acabou.[4] Logo, procuraremos resolver o fundo mal-estar actual dentro dos espaços do capitalismo. Alguns já falam de um “capitalismo com rosto humano” (??), que é como falar de um quadrado redondo. Outros pedem voltar a Keynes, o que buscava reformas que pudessem salvar o capitalismo. Na síntese aguda da sua discípula Joan Robinson, “Marx representa o socialismo revolucionário, Marshall a defesa satisfeita do capitalismo e Keynes a defesa desiludida do capitalismo. Marx tenta compreender o sistema a fim de acelerar a sua destruição. Marshall procura fazê-lo aceitável apresentando-o sob uma perspectiva benigna. Keynes tenta descobrir o que falhou no mesmo com o objectivo de idear os meios para salvá-lo da auto-destruição”.[5]

Um capitalismo na onda keynesiana poderia chegar a impor-se, com muitas dificuldades e fortes concessões ao bando neoliberal (ou neoclássico). E não devemos esquecer que, em países dependentes e subdesenvolvidos como o Chile, o problema chave é o do crescimento (o industrial, em especial) e Keynes, ainda que em jovem trabalhasse na Índia, jamais se preocupou com o subdesenvolvimento e a sua superação. Sua teoria gira em torno da procura global e seu impacto nos níveis do rendimento e do emprego. Com a oferta e seus determiantes preocupou-se pouco ou nada. Para entender o desenvolvimento é preciso ir a outros lados. Por exemplo, no estruturalismo cepalino clássico (Prebisch, Furtado, Ahumada, Pinto, etc), en soviéticos como Feldman, Preobrallenski, Kantorovich, Nemchinov; polacos como Lange, Kalecki, Brus; a escola indiana (Mahalanobis e outros), em Baran, Sweezy et al. Suponhamos, com muito optimismo, que no Chile se verifique uma quebra do neoliberalismo e o país se coloque numa rota semelhante à que agora segue o Vietname ou – desde muito tempo antes – a Coreia do Sul. Se o experimento frutificasse, elevar-se-ia o PIB per capita e o nível de vida material. Mas o que sucederia com o trabalho alienado e o darwinismo social?6 Certamente se acentuariam. Hoje, os chilenos que se rebelam levantaram-se contra as suas consequências. Não a chamam assim (não leram o Marx dos Manuscritos) e tão pouco sabem bem das suas raízes. Mas sentem-no como uma grande dor, como algo a superar e podemos esperar: quando souberem das suas raízes, sua luta será dirigida contra o capitalismo em si, sem adjectivos.[7]7

Em fins de Novembro (de 2021) será eleito o presidente da república. No fim de Outubro, o favorito nos inquéritos de opinião é Boric, um ex-esquerdista. Numa segunda volta, que é quase certa, poderia voltar a ganhar superando o candidato da direita Kast, uma espécie de reedição chilensis do brasileiro Bolsonaro. Este Boric (um oportunista dos sete costados) maneja um programa com embasamento neoliberal, acompanhado por alguma maior despesa social e seu governo provocará uma frustração maior nos sectores populares.[8] E como costuma acontecer na ausência de uma alternativa de esquerda sólida, as pessoas poderiam alinhar com algum direitista como Kast, grande admirador de Pinochet e do nazismo hitleriano. Tal como sucedeu no Brasil, no qual a direitização de Lula acabou por provocar o apoio ao nefasto Bolsonaro. Ou na Alemanha de fins dos anos vinte e inícios dos trinta do século passado, em que a traição da social-democracia acabou por alimentar a ascensão de Hitler. Os chilenos deverão, se quiserem salvar-se, recordar o lema de Rosa Luxemburgo, “socialismo ou morte”. E actuar em consequência.

Há que acrescentar: com a irrupção da pandemia, a insurgência popular teve que se retirar das ruas e praças onde exibia a sua musculatura. E começou a apagar-se, a perder força. E o que ela perdia era ganho pela política tradicional, a que desde sempre geriu o modelo neoliberal. Aquela que vive nos corredores das grandes corporações e dos diversos aparelho de Estado. A poucos dias das eleições para Presidente (também há para deputados), encontramos seis candidatos. Deles, cinco optam por preservar o “modelo neoliberal” (as muito leves diferenças giram em torno das aspirinas que se recomendam para a dor), nenhum propõe um capitalismo de tipo diferente (como, por exemplo, os que se dão no sudeste asiático) e um dos seis, Eduardo Artés, com não pouco vaguidade, aponta a uma rota mais ou menos anti-capitalista. Ainda que os prognósticos assinalem que ficaria abaixo dos 4% dos votos totais. Em suma, o Chile nos mostra que a pura raiva não chega para derrubar e sepultar o grande capital financeiro.

[1] Se voar fosse uma fonte de dor para os pássaros, o que poderíamos dizer? E se a actividade denominada trabalho, que é a constitutiva do próprio “homo sapiens”, se torna algo doloroso e mortificante, o que podemos dizer?

[2] Além de que a cultura contemporânea castiga bastante a arte da leitura e do estudo.

[3] Diante da Comuna de Paris, com a sua derrota e a duríssima repressão que se segiu, Thiers jurava que o socialismo estava morto para sempre. Mas quase meio século depois houve a revolução bolchevique, dirigida por um Lenine que muito aprendeu com essa derrota. E no Chile, também quase meio século depois, as massas voltam a rebelar-se, senão contra o capitalismo em sim, pelo menos contra a sua variante neoliberal.

[4] É preciso assinalar: nos últimos anos, alguns antropólogos e “filósofos” terceiro-mundistas pré-lógicos pronunciam-se verbalmente contra o capitalismo, sobretudo no seu aspecto distributivo. E muito curiosamente, não propõem avançar para sociedades pós-capitalistas e sim voltar a passados pré-capitalistas (feudais, camponeses, tribais, etc), os quais se passam a idealizar em termos aberrantes. Nesta postura, a emergência e desenvolvimento do capitalismo (e tudo o que implicou) é entendida como um retrocesso histórico que degradou o ser humano e o planeta terra. Pela mesma, seriam os países mais subdesenvolvidos e atrasados os que, eventualmente, se teriam salvado desse “retrocesso histórico” ligado ao capitalismo. É o que o professor López Arévalo designou como “teoria do selvagem feliz”.

[5] J. Robinson, “Teoría del desarrollo. Aspectos críticos”, pág. 11. Edic. Martínez Roca, Barcelona, 1973.

[6] Recordemos o personagem de Brecht: “se alguém chuta, que seja eu. / E se há alguem chutado, que sejas tu.”

[7] Importa advertir: enquanto não surgir pelo menos um país socialista importante no “primeiro mundo”, o avanço deste regime no “terceiro mundo” complica-se bastante.

[8] Para oportunistas como Boric, chegar ao poder é ser reconhecido como “viável” pelo grande capital financeiro.

Novembro/2021

[*] Economista, autor de Chile: sueños, derrotas, esperanzas; Ediciones INEDH, Concepción, Chile, 2021. A edição mexicana do livro pode ser descarregada em resistir.info/livros/chile_valenzuela_feijoo.pdf

Este artigo encontra-se em resistir.info

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