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quarta-feira, 17 abril, 2024

Economia mundial: O risco de uma tempestade perfeita

Juan Torres Lopez.

Por: Juan Torres Lopez [*]

Quando as economias afundaram após o Covid-19, líderes políticos e economistas de grandes organismos internacionais diziam que não se sabia quando chegaria a recuperação mas que, uma vez começada, as economias iriam registá-la de modo muito potente e duradouro. Outros, pelo contrário, dissemos que isso não iria ocorrer porque a economia internacional não estava afectada só pelos efeitos do confinamento mas também por uma crise muito profunda que começara a manifestar-se já antes da pandemia.

Os dados macroeconómicos que se vão conhecendo nas últimas semanas deram-nos razão. Os preços estão a registar as maiores subidas das últimas três décadas e o crescimento do PIB é bastante mais baixo do que o estimado há apenas uns poucos meses.

Em Espanha surpreendeu-nos a subida dos preços homólogos em fins de Setembro (5,5%) por ter sido a mais elevada dos últimos 29 anos, mas é exactamente o mesmo recorde que o da Alemanha (4,5%) e um ano menos que o dos Estados Unidos (4,4%), o mais alto desde 1992, segundo dados do Banco Mundial.

Os dados da evolução do Produto Interno Bruto também mostraram que as economias já perderam o fôlego, o qual disparara com enorme força ao acabar o confinamento.

Em Espanha, o crescimento tem estado muito abaixo do previsto. O Instituto Nacional de Estatística registou um crescimento homólogo de 17,5% de Maio a Junho deste ano. Contudo, o percentual estimado para o período de Junho a Setembro foi de 2,7%, o que dá ideia da travagem. Sobretudo, se se considerar que o consumo das famílias caiu no trimestre do Verão (-0,5%), ainda que não o investimento (2%) nem as exportações (6,4%).

Na Alemanha verificou-se mais ou menos o mesmo. O PIB cresceu 1,8% no terceiro trimestre deste ano, quase a metade do previsto em Abril e duas décimas menos que a Espanha. E uma investigação recente de David Blanchflower, professor de Dartmouth e ex-membro do Comité de Política Monetária do Banco da Inglaterra, e Alex Bryson, professor do University College de Londres, sugere que os Estados Unidos entrarão em recessão no fim do ano.

Aqueles que antes diziam que a recuperação seria poderosa e sem reservas, agora assinalam que nos encontramos diante de problemas “transitórios”. Dizem que não deve haver demasiadas preocupações com a subida de preços porque é devida a circunstâncias passageiras como a alta nos custos da energia ou os desajustes provocados pela pressão de procura retirada durante o confinamento. O enfraquecimento da actividade parece tê-los surpreendido tanto que não acabam de explicá-la.

A meu ver, é um erro acreditar que nos encontramos perante um simples incidente como consequência da pandemia e, portanto, passageiro e resolúvel à medida que tudo se vá normalizando.

Para entender o que nos está a acontecer é preciso colocar os dados que agora se começam a registar por todo o mundo junto àqueles que tínhamos antes da pandemia.

A fazê-lo, poder-se-á descobrir que não estamos a sofrer só o impacto de um simples transtorno, por muito grave que tenha sido aquele provocado pelo Covid-19 e pelo confinamento que paralisou grande parte da actividade económica.

Sofremos o que os médicos chamam “morbilidade associada”. Ou seja, a confluência, não necessariamente ao mesmo tempo, de outros males com a enfermidade primária.

O erro é acreditar que as economias sofreram ou continuam a sofrer o efeito da pandemia como enfermidade única, quando a realidade é que foi uma patologia económica associada a outra – a primária – de que já se estava a sofrer anteriormente.

É verdade que o confinamento produziu um bloqueio nos canais de abastecimento por diferentes razões: muitas empresas produtoras tiveram que fechar e não tiveram capacidade material de recuperar o ritmo de produção anterior, outras compradoras aumentaram os seus pedidos excessivamente por precaução mal gerida, produzindo açambarcamento; e as de logística e transporte viram-se afectadas por mudanças tão imprevistas e rápidas na oferta e na procura quando, além disso, há problemas de rotação nos mercados laborais. E também é verdade que a procura, em quase todas as economias, inicialmente saltou com força após o confinamento, provocando uma inevitável pressão sobre os preços.

Mas a prova evidente de que não se trata apenas de problemas de ajuste conjuntural é que afectam de modo muito desigual diferentes sectores. E a complexidade do desajuste é demonstrada pelo facto de que não se está a resolver como a economia convencional diz que se deveria resolver – mediante o mecanismo dos preços. Estamos a comprovar, efectivamente, que a subida de preços não só não reduz o excesso de procura como inclusive que esta aumenta à medida que se vão elevando.

Para entender o presente é preciso analisar o que já estava a acontecer bem antes da pandemia.

Em primeiro lugar, um processo que vinha desde há muito de queda da taxa de lucro na indústria em consequência da travagem no investimento produtivo e da constante retenção da procura de consumo por causa da queda da massa salarial.

Em segundo lugar, o enfraquecimento da globalização dominante nas últimas década em consequência das assimetrias e brechas cada vez maiores que veio produzindo, não só entre grupos sociais e nações como inclusive entre as diferentes franjas do capital, das empresas.

Em terceiro lugar, um encurtamento do ciclo económico como consequência da continuada aplicação de políticas económicas inadequadas que travam a extensão das fases expansivas ou de recuperação e assim impedem que se possa criar suficiente produção e emprego.

Em quarto lugar, o continuado privilégio da actividade financeira que criou uma economia droga-dívida-dependente com milhões de empresas zumbis que têm de dedicar todos os seus lucros, se é que os têm, para pagar a dívida e que paralisam o aumento da produtividade e da inovação. Um estudo da Bloomberg calculou que assim se encontram 527 das 3000 maiores firmas dos Estados Unidos e algumas estimativas assinalam que a nível global poderiam estar nessa situação mais de 20% das empresas.

Nesse contexto e por essas causas, já antes da pandemia vinha-se verificando um processo de relocalização empresarial, de busca de novos nichos de aprovisionamento e vendas e, sobretudo, o início de uma autêntica revolução no sistema global de logística.

Este último é, na realidade, o que explica (e não a pandemia) a maior parte dos estrangulamentos que vêm provocando a escassez de abastecimentos que acarreta tantas perdas (110 mil milhões de dólares, calcula-se, para a indústria mundial do automóvel) e que está a obrigar muitas empresas a realizar movimentos estratégicos de grande porte para não desaparecer se as perturbações prosseguirem.

Durante o confinamento observaram-se os primeiros sintomas da perturbação (dissociações, bloqueios de estradas, atraso de contentores, aumento de tarifas, escassez de transportadores) e muitas empresas tiveram que diversificar rapidamente suas cadeias de abastecimento para evitar riscos. Isso exacerbou os desajustamentos, certamente, mas se tudo isso está a resultar tão problemático é porque se estava a verificar uma mudança crucial anterior. E a prova é que as coisas, em vez de melhorar à medida que se vão recuperando os intercâmbios, estão a piorar.

O sistema global de logística estava a responder à crise industrial e da globalização que mencionei gerando uma autêntica revolução tecnológica orientada para automatizar as redes globais mediante a digitalização e a inteligência artificial, um processo desenvolvido através de estratégias diferentes e com diferentes velocidades e resultados, sobretudo, entre a China e os Estados Unidos. E aqui está a chave.

A pandemia acelerou o processo (tal como ocorreu em outros momentos da história em que se verificaram choques inesperados) mas o que ocorreu com a pandemia não é o próprio processo.

O que está em cima da mesa e gera os problemas que estão a sofrer as empresas e a economias no seu conjunto não é a normalização do sistema de abastecimento anterior à crise do Covid. Este não vai voltar a ser o que era. Agora trata-se de algo mais importante. A globalização já não vai continuar guiando-se pela mesma lógica de competição anterior. O custo e o preço vão deixar de ser determinantes do lucro e passarão a sê-lo na imediaticidade e na segurança e as empresas hão de modificar suas estratégias de produção, abastecimento e localização. Esta é a desordem na qual começamos a mover-nos e a que provoca a escassez e subidas de preços. Por isso é ingénuo acreditar que se vai resolver numa questão de meses.

O que está em jogo é o redesenho e o controle do novo sistema logístico global digitalizado e automatizado graças à inteligência artificial que está em processo de desenvolvimento e à readaptação produtiva e espacial das empresas para adaptarem-se à mudança. A nova guerra fria terá aí um dos seus cenários principais. Quem a dominar, dominará o mundo na nova fase da história cujo nascimento foi acelerado pelo Covid-19.

Muito em breve vamos ver como este tema passa a primeiro plano nas agendas internacionais, ainda que de maneira a cada dia mais conflitiva entre as duas grandes potências e sem solução a curto prazo para os bloqueios no abastecimento e na subida de preços. Estes vão subir mais porque nem os governos nem os bancos centrais estão em condições de por ordem para aliviá-los sem romper a lógica que guia um capitalismo neoliberal ferido pelo seu fracasso em tornar-se sustentável (ao concentrar o rendimento e a riqueza triunfou plenamente). De facto, agudizaram o problema ao não ter tido presente a mudança que se estava a verificar na hora de injectar os recursos tão vultuosos que proporcionaram às economias. Se continuarem a equivocar e desencadearem uma crise de dívida teremos a combinação que provocará uma tempestade perfeita.

[*] Catedrático da Universidade de Sevilha, Departamento de Análise Económica e Economia Política.

O original encontra-se em juantorreslopez.com/economia-mundial-el-riesgo-de-una-tormenta-perfecta/

Este artigo encontra-se em resistir.info (Portugal)

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