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quinta-feira, 28 março, 2024

Duas em uma: Irmã Helena, Irmã Vilma

José Bessa Freire

Final da década de 1970. Primeiro dia de aula de História da Cultura Amazonense para uma turma do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas. Sala cheia. Começo a chamada. Cada um vai se apresentando seguindo a lista em ordem alfabética. Chega a letra H:

– Helena Augusta Walcott.

– Presente – responde lá da última fila a dona de duas graciosas bochechas negras e de um par de expressivos olhos azeitonados.

Pelas barbas do profeta Silvio Tendler! Só pode ser ela – eu penso. Finjo, porém, que não a reconheci. Disfarço a emoção:

– Ah, tive uma professora no Colégio Aparecida, uma freira, que era muito parecida com você. Vilma. Irmã Vilma. Faz uns vinte anos.

– Era eu – confirma Helena, fingindo também não lembrar deste seu aluno capeta. Embora nunca tenha me dado sequer um merecido puxão de orelhas, por via das dúvidas, impetrou um habeas corpus preventivo:

–  A Vilma era muito severa e mandona. Hoje sou outra pessoa. Mudei muito.

– Já eu, danado e bagunceiro, não mudei nada. Continuo briguento e encrenqueiro – respondi, também por via das dúvidas.

Ela riu. Rimos. É muito raro, mas aconteceu: minha ex-professora era agora minha aluna e desse lugar continuava nos ensinando sábias lições. Trazia para a sala de aula uma trajetória rica de lutas, que merece ser lembrada na primeira crônica deste Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2021.

O hábito e o monge

Quem é Vilma, quem é Helena?

A noviça Helena fez a profissão de votos religiosos na Congregação das Irmãs Adoradoras do Preciosíssimo Sangue, recebendo o nome de Irmã Vilma com o qual me deu aulas. Trajava o hábito antigo do tempo da finada Beata Maria de Mathias. Depois que o Concílio Vaticano II mudou a relação com o mundo, as freiras começaram a deixar a clausura e a vida contemplativa e mergulharam de cabeça na realidade, vestidas em traje leigo, o que facilitava a opção preferencial pelos pobres, com quem passaram a conviver fora do convento.

O vestido longo, o capelo ou touca rígida que emoldurava o rosto e o véu branco que escondia as madeixas são hoje coisas de museu. Literalmente. Quem quiser conhecer o hábito tradicional da irmã Vilma pode visitar o Museu das Bonecas Freiras – o Nun Doll Museum – em Michigan (EUA), com um acervo de mais de 500 modelos, que representam – olhem só! – vestes de 217 ordens religiosas das Américas. Ou então ver dois filmes: “A Noviça Rebelde” com Julie Andrews e “A história de uma freira” com Audrey Hepburn.

O hábito faz a monja? Nem o hábito, nem o nome. A ex-irmã Vilma manteve as promessas e votos de freira, vestida modestamente como qualquer vizinha do bairro pobre da Compensa, lugar de sua nova morada. Recuperou o nome Helena, com o qual foi batizada em Guajará Mirim (RO), onde nasceu em 1934, caçula dos sete filhos de Lorenzo Walcott e Clarissa Knights, um casal que no início do séc. XX migrou de Barbados – ex-colônia britânica nas Antilhas – para trabalhar na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Descendentes de negros escravizados arrancados da Guiné Bissau e do Senegal, traziam impressa na memória a mãe África.

Semeadora de bairros

As cicatrizes dessas feridas, que o convento não conseguiu apagar, marcaram a irmã Helena, líder nas décadas de 1970 e 1980 da luta pelo direito à moradia popular, com ocupação de áreas da União griladas por latifundiários urbanos, para quem aquilo era uma “invasão”, um ataque comunista contra a propriedade privada. De “invasão” os grileiros entendem, afinal foi o que fizeram quando se apropriaram das terras devolutas.

No balanço final, o Movimento dos Sem Tetos com o apoio da Pastoral da Terra conquistou moradia para quase meio milhão de pessoas, os lascados da vida, que criaram pelo menos 15 novos bairros em Manaus, entre eles: Zumbi dos Palmares I e II, Terra Nova, São José, João Paulo II, Nossa Senhora de Fátima, Novo Israel, Armando Mendes, Japiim, Nova Luz, Santa Etelvina, Monte das Oliveiras, Lírio do Vale, Val Paraíso e Redenção apelidado de forma racista de “Planeta dos Macacos”.

Nós tentávamos obter lotes de terra junto à prefeitura e ao governo. Quando não era possível, entrávamos na marra e forçávamos a doá-los. O povo não podia esperar o governo fazer alguma coisa. As pessoas precisavam muito. Não era uma atividade pacífica, mas nos organizávamos e usávamos o apito para comunicar os momentos de agir” – disse Irmã Helena ao Informativo da Arquidiocese de Manaus de outubro de 2013.

O apito funcionava. Mas um dia, ao sair de reunião comunitária no bairro Armando Mendes, Irmã Helena sofreu um atentado comandado pelo grileiro Paulo Farias. O capanga errou o tiro e matou Altenor Cavalcante, um menino de 14 anos que estava ao lado dela. Com a arma em punho, o grileiro perseguiu a freira, salva pela comunidade, que a escondeu dentro de uma fossa. Perseguida, ela se exilou na Guiné-Bissau em 1997 e só voltou ao Brasil em 2003, fixando domicílio no Pará. Em 2009 voltou ao Amazonas e foi morar em Manacapuru.  Agora, somos informados, de que está residindo em Manaus.

Abençoada Irmã Helena, semeadora de bairros e moradias! Padeceu o diabo: ameaças de morte, atentados, espancamento, prisão, exílio e até a clandestinidade. Comeu a mandioca que o capiroto ralou. Mas não desistiu. As ocupações se transformaram em grandes e populosos bairros da capital amazonense, habitados por pessoas carentes, filhos de negros, índios, nordestinos, ribeirinhos.

Memória em disputa

A trajetória da irmã Helena se confunde com as lutas da população pobre e deserdada da periferia de Manaus, com histórias que estão implorando para serem filmadas. Quem sabe, o cineasta amazonense Aurélio Michilles se anima e contribui para que a gente não esqueça essa gesta?

A luta pela moradia permanece subterrânea, disputando espaço com a memória oficial que glorifica nomes pomposos de coronéis e políticos de duvidosa reputação em monumentos e logradouros. Uma vitória: a Escola Municipal Helena Augusta Walcott, localizada na avenida Itaúba, num dos bairros que ajudou a criar, carrega seu nome. Da mesma forma, a quadra poliesportiva coberta de quase 600 metros quadrados erguida nas dependências da Escola é a Quadra Helena A. Walcott destinada à prática esportiva e a atividades recreativas de 1.5 mil estudantes do Ensino Fundamental e da Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Várias escolas foram criadas por moradores das ocupações, antes de serem municipalizadas. Uma delas foi a Escola Prof. Alfredo Linhares, no bairro São José I. A outra começou quando dez professores voluntários, em um mutirão, limparam um local e lá ergueram a escolinha comunitária pré-moldada que recebeu o nome da Irmã Helena. Quando a Prefeitura municipalizou e reconstruiu aquela unidade educativa, o nome permaneceu.

Muitos anos depois, em 2015, por proposta do deputado José Ricardo Wendling (PT), Irmã Helena foi condecorada pela Assembleia Legislativa, que realizou uma sessão especial no Dia Nacional da Consciência Negra. Hoje, com 86 anos de idade, ela continua vivinha da silva e permanece no coração de milhares de moradores da periferia. Centenas deles a homenagearam, em postagens no grupo “Manaus de Antigamente” do facebook, agradecendo sua atuação responsável pela mudança em suas vidas.

No entanto, surgiram alguns poucos comentários desairosos que a atacaram sordidamente, tentando difamá-la. Já sabemos de onde partem.  Fazer o quê? Toda sociedade produz lixo e dejetos. Para isso existem garis e aterros sanitários. O que importa é que Vilma e Helena são muitas, são todas aquelas e aqueles que lutam contra a injustiça social.

P.S. – Sobre os bairros surgidos em Manaus entre 1970 a 2000, que contaram com a ação da Irmã Helena ver: Tatiana da Rocha Barbosa. Ocupações irregulares e a (re) produção do espaço urbano da Zona Leste de Manaus (AM): da ilegalidade do processo à legalidade da questão da moradia. Tese de doutorado e Geografia. Universidade Federal de Uberlândia. 2017.

Agradecemos ainda as postagens, fotos e artigos indicados no grupo “Manaus de Antigamente”, que realiza importante trabalho de documentação da história da cidade.

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