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sexta-feira, 29 março, 2024

Do Mar Negro ao Oriente Médio, não provoque o urso russo

– Os EUA não deveriam ter provocado o urso russo. Agora ele está totalmente desperto: depois da Ucrânia, os russos provavelmente farão uma limpeza dos beligerantes estrangeiros que infestam o Mediterrâneo Oriental e o Mar Negro.

Pepe Escobar [*]

Isto é o que acontece quando um bando de hienas miseráveis, chacais e pequenos roedores provocam o Urso:   nasce uma nova ordem geopolítica a uma velocidade de tirar o fôlego.

De uma reunião dramática do Conselho de Segurança da Rússia a uma lição de história da ONU dada pelo presidente russo Vladimir Putin e o subsequente nascimento dos bebês gêmeos – as Repúblicas Populares de Donetsk e de Lugansk – até o apelo das repúblicas separatistas a Putin para intervir militarmente a fim de expulsar do Donbass as forças ucranianas de bombardeamento apoiadas pela OTAN, foi um processo contínuo, executado em alta velocidade.

A palha (nuclear) que (quase) quebrou as costas do Urso – e o forçou a atacar – foi o comediante/presidente ucraniano Volodymy Zelensky, de volta da Conferência de Segurança de Munique repleta de russofobia, onde foi louvado como um Messias, dizendo que o memorando de Budapeste de 1994 deveria ser revisto e a Ucrânia deveria ser rearmada nuclearmente.

Isso seria o equivalente a um México nuclear ao sul do Hegemon.

Putin imediatamente pôs a Responsabilidade de Proteger (R2P) de cabeça para baixo:   uma construção americana inventada para lançar guerras foi adaptada para impedir um genocídio em câmara lenta no Donbass.

Primeiro veio o reconhecimento dos Bebés Gémeos – a mais importante decisão de política externa de Putin desde a inserção de jactos russos no espaço aéreo da Síria em 2015. Esse foi o preâmbulo para a próxima virada de jogo: uma “operação militar especial… destinada à desmilitarização e desnazificação da Ucrânia”, como Putin a definiu.

Até o último minuto, o Kremlin tentava confiar na diplomacia, explicando a Kiev os imperativos necessários para evitar o trovejar do material bélico: reconhecimento da Crimeia como russa; abandono de quaisquer planos de adesão à OTAN; negociação direta com os Bebés Gémeos – um anátema para os americanos desde 2015; finalmente, desmilitarizar e declarar a Ucrânia como neutra.

Os manipuladores de Kiev, previsivelmente, nunca aceitariam este pacote – assim como não aceitaram o Pacote Mestre que realmente importa, o qual é a exigência russa de “segurança indivisível”.

A sequência, então, tornou-se inevitável. Num piscar de olhos, todas as forças militares ucranianas entre a chamada linha de contacto e as fronteiras originais dos oblasts de Donetsk e Lugansk foram reformuladas como um exército de ocupação em territórios aliados da Rússia que Moscou havia jurado proteger.

Saia – Do contrário…

O Kremlin e o Ministério da Defesa russo não estavam a fazer bluff. No final do discurso de Putin anunciando a operação, os russos decapitaram com mísseis de precisão tudo o que importava em termos militares ucranianos em apenas uma hora:   Força Aérea, marinha, aeródromos, pontes, centros de comando e controle, todo a frota de drones turcos Bayraktar.

E não era apenas o poder bruto russo. Foi a artilharia da República Popular de Donetsk (DPR) que atingiu o quartel-general das Forças Armadas da Ucrânia no Donbass, o qual na verdade abrigava todo o comando militar ucraniano. Isto significa que o Estado-Maior ucraniano perdeu instantaneamente o controle de todas as suas tropas.

Isso foi como [a operação] Choque e Pavor contra o Iraque, 19 anos atrás, mas ao contrário:   não para conquista, não como prelúdio para uma invasão e ocupação. A liderança político-militar em Kiev nem mesmo teve tempo de declarar guerra. Eles ficaram congelados. Tropas desmoralizadas começaram a desertar. Derrota total – em uma hora.

O abastecimento de água à Crimeia foi instantaneamente restabelecido. Corredores humanitários foram criados para os desertores. As forças ucranianas remanescentes agora incluem sobretudo nazistas sobreviventes do batalhão Azov, mercenários treinados pelos suspeitos habituais da Blackwater/Academi e um bando de jihadistas salafistas.

Previsivelmente, a mídia corporativa ocidental enlouqueceu totalmente, rotulando isto como a tão esperada ‘invasão’ russa. Um lembrete:   quando Israel bombardeia rotineiramente a Síria e quando os sauditas bombardeiam rotineiramente civis iemenitas, nunca há nenhum pio nos media da OTAN.

Tal como está, a realpolitik indica um possível final de jogo, como foi expresso pelo presidente de Donetsk, Denis Pushilin:   “A operação especial no Donbass terminará em breve e todas as cidades serão libertadas”.

Mapa histórico da Ucrânia.

Mapa histórico da Ucrânia.

Dentro em breve poderíamos testemunhar o nascimento de uma Novorossiya independente – a leste do Dnieper, ao sul ao longo do Mar de Azov/Mar Negro, do modo que era em 1922 quando foi anexada à Ucrânia por Lenine. Mas agora estaria totalmente alinhada com a Rússia e proporcionando uma ponte terrestre para a Transnístria.

A Ucrânia, é claro, perderia qualquer acesso ao Mar Negro. A história adora pregar partidas: o que em 1922 era uma “prenda” para a Ucrânia, cem anos depois pode-se tornar uma prenda de despedida.

É tempo de destruição criativa

Será fascinante observar o que o Prof. Sergey Karaganov descreveu magistralmente, em pormenor, como a nova doutrina Putin da destruição construtiva irá interligar-se com a Ásia Ocidental, o Mediterrâneo Oriental e mais adiante à estrada do Sul Global.

O presidente turco Recep Tayyip Erdogan, o cerimonial sultão da NATO, denunciou o reconhecimento dos bebés gémeos como “inaceitável”. Não é de admirar: essa viragem esmagou todos os seus planos elaborados de posar como mediador privilegiado entre Moscovo e Kiev durante a próxima visita de Putin a Ancara. O Kremlin – assim como o Ministério das Relações Exteriores – não desperdiça tempo a falar com subalternos da NATO.

O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, por sua vez, teve um acordo recente e muito produtivo com o ministro das Relações Exteriores da Síria, Faisal Mekdad. A Rússia, no fim de semana passado, encenou uma espetacular exibição de mísseis estratégicos, hipersónicos e não hipersónicos, apresentando Khinzal, Zircon, Kalibr, Yars ICBMs, Iskander e Sineva – ironia das ironias, em sincronia com o festival da russofobia em Munique. Em paralelo, navios da Marinha Russa das frotas do Pacífico, do Norte e do Mar Negro realizaram uma série de exercícios de busca de submarinos no Mediterrâneo.

A doutrina Putin privilegia o assimétrico – e isso se aplica ao que está próximo e mais além. A linguagem corporal de Putin, nas suas duas últimas intervenções cruciais, expressa uma exasperação quase máxima. Como ao perceber, não de modo auspicioso, mas sim com resignação, que a única linguagem que os neoconservadores da Beltway e os “imperialistas humanitários” entendem é o trovejar bélico. Eles são definitivamente surdos, mudos e cegos para a história, a geografia e a diplomacia.

Assim, pode-se sempre enganar os militares russos – por exemplo, impondo uma zona de exclusão aérea na Síria para efetuar uma série de visitas do Sr. Khinzal não apenas aos jihadistas protegidos pelo guarda-chuva turco em Idlib como também aos jihadistas protegidos pelos americanos na base de Al-Tanf, perto da fronteira Síria-Jordânia. Afinal de contas, esses espécimes são todos proxies da OTAN.

O governo dos EUA ladra sem cessar acerca de “soberania territorial”. Assim, a jogar o jogo, o Kremlin pede à Casa Branca um roteiro para sair da Síria:   afinal de contas, os americanos estão a ocupar ilegalmente uma parte do território sírio e a acrescentar um desastre extra à economia síria aí roubar-lhe o seu petróleo.

O mentecapto líder da OTAN, Jens Stoltenberg, anunciou que a aliança está a desempoeirar os seus “planos de defesa”. Isso pode incluir pouco mais do que se esconderem por trás das suas dispendiosas mesas de Bruxelas. Eles são tão inconsequentes no Mar Negro quanto no  Oriente Médio – pois os EUA permanecem bastante vulneráveis ​​na Síria.

Existem agora quatro bombardeiros estratégicos russos TU-22M3 na base russa de Hmeimim na Síria, cada um capaz de transportar três mísseis anti-navio S-32 que voam a Mach 4,3 supersónico com um alcance de 1.000 km. Nenhum sistema Aegis é capaz de lidar com eles.

A Rússia também estacionou alguns Mig-31K na região costeira síria de Latakia equipados com Khinzals hipersónicos – mais do que suficiente para afundar qualquer espécie de grupo de superfície dos EUA, incluindo porta-aviões, no Médio Oriente. Os EUA não têm nenhum mecanismo de defesa aérea sequer com uma probabilidade mínima de interceptá-los.

Assim, as regras mudaram. Drasticamente. O Hegemon está nu. O novo acordo começa com a viragem do cenário pós-Guerra Fria estabelecido na Europa Oriental completamente ao contrário. O Oriente Médio virá a seguir. O Urso está de volta, ouça-o rugir.

[*] Analista geopolítico.

O original encontra-se em thecradle.co/Article/columns/7266

Este artigo encontra-se em resistir.info

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