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quinta-feira, 28 março, 2024

De volta ao futuro: Talibanistão, Ano 2000

Pepe Escobar[*]

Caro leitor: isto é muito especial, uma viagem pelos caminhos da memória tal como nenhuma outra: de volta aos tempos pré-históricos – o mundo pré-9/11, pré-YouTube, pré-redes sociais.

Bem-vindo ao Afeganistão do Talibã – Talibanistão – no Ano 2000. Foi quando o fotógrafo Jason Florio e eu próprio o atravessámos lentamente, por terra, de leste para oeste, desde a fronteira paquistanesa em Torkham até à fronteira iraniana em Islam qillah. Como reconheceram trabalhadores de ONG afegãs, fomos os primeiros ocidentais a conseguir isto em muitos anos.

Aqueles eram os dias em que Bill Clinton desfrutava o seu período final na Casa Branca. Em que Osama bin Laden era um discreto convidado do Mullah Omar – aparecendo só ocasionalmente nas primeiras páginas dos jornais. Não havia qualquer indicação sobre o 11 de Setembro, a invasão do Iraque, a “guerra ao terror”, a perpétua crise financeira, a parceria estratégica Rússia-China. A globalização imperava e os EUA eram o incontestável chefe mundial. A administração Clinton e os Talibãs estavam profundamente enraizados no território do Pipelinistão – discutindo sobre o tortuoso proposto gasoduto Trans-Afegão.

Tentámos tudo, mas nem sequer conseguimos ter um vislumbre do Mullah Omar.   Osama bin Laden também não era visto em lado nenhum.   Mas experimentamos o Talibanistão em acção, em grande detalhe.

Hoje é um dia especial para revisitá-lo. A Guerra para Sempre no Afeganistão está acabada. A partir de agora será um mestiço híbrido, no pano de fundo da integração do Afeganistão nas Novas Estradas da Seda e na Grande Eurásia.

Em 2000 escrevi um relato de viagem especial no Talibanistão para uma revista política japonesa, agora extinta, e dez anos depois uma mini-série em três partes revisitando-o para o Asia Times.

A parte 2 desta série pode ser encontrada aqui e a parte 3 aqui.

Mas este ensaio em particular – a parte 1 – havia desaparecido completamente da Internet (isso é uma longa história). Encontrei-o recentemente, por acaso, num disco duro. As imagens são da filmagem que fiz naquele tempo com uma Sony mini-DV: acabei hoje de receber o ficheiro de Paris.

Isto é um relance de um mundo perdido há muito. Pode chamá-lo de um registo histórico de um tempo em que ninguém sequer sonhava com um “momento Saigon” reencenado – com guerreiros convenientemente rotulados como “Talibã”, depois de aguardarem, ao estilo Pashtun, durante duas décadas, a louvarem Alá por lhes ter finalmente dado a vitória sobre mais um invasor estrangeiro.

Agora vamos fazer-nos à estrada.


KABUL, GHAZNI – Fatima, Maliha e Nouria, que eu costumava chamar As Três Graças, já devem agora ter 40, 39 e 35 anos, respectivamente. No ano 2000 elas viviam numa casa vazia e bombardeada, ao lado de uma mesquita cheia de balas, num parque temático apocalíptico semi-destruído, em Cabul – nessa altura a capital mundial do contentor descartado (ou reconstituído por um míssil e reconvertido numa loja); uma cidade onde 70% da população era refugiada, legiões de crianças sem abrigo levavam sacos de dinheiro às costas (US$1 valia mais de 60.000 afeganis) e ovelhas em número superior ao dos autocarros Mercedes da década de 60.

Sob a impiedosa teocracia Talibã, as Três Graças sofriam tripla discriminação – como mulheres, Hazaras e xiitas. Viviam em Kardechar, um bairro totalmente destruído nos anos 90 pela guerra entre o Comandante Masoud, o Leão do Panjshir, e os Hazaras (os descendentes de casamentos mistos entre os guerreiros mongóis de Genghis Khan e os povos turcos e tajiques) antes de os Talibãs tomarem o poder em 1996. Os Hazaras foram sempre o elo mais fraco da aliança tajiques-usbeques-hazaras – apoiada pelo Irão, Rússia e China – que confrontavam os Talibãs.

Todos os desanimados intelectuais de Kabuli com quem me encontrei, invariavelmente definiam os Talibãs como “uma força de ocupação de fanáticos religiosos” – o seu medievalismo rural era totalmente absurdo para os tajiques urbanos, habituados a uma forma tolerante do Islão. Segundo um professor universitário, “a sua jihad não é contra os kafirs [1]; é contra outros muçulmanos que seguem o Islão”.

Passei longo tempo a conversar com as Três Graças que falavam em dari dentro da sua casa bombardeada – com tradução do seu irmão Aloyuz, que havia passado alguns anos no Irão apoiando a família a longa distância. Este simples facto em si mesmo garantiria que, se apanhados, seríamos todos mortos a tiro pelo V & V talibã – o notório Departamento para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, a polícia religiosa talibã.

A aparência da Cabul bombardeada em 2000.O sonho das Três Graças era viverem “livres, sem pressão”. Elas nunca haviam estado num restaurante, num bar ou num cinema. Fátima gostava de música “rock”, o que no seu caso significava a cantora afegã Natasha. Ela disse que “gostava” dos Talibãs, mas acima de tudo queria voltar para a escola. Elas nunca mencionaram qualquer discriminação entre Sunitas e Xiitas; na realidade, queriam partir para o Paquistão.

A sua definição de “direitos humanos” incluía a prioridade para a educação, o direito ao trabalho, e a conseguir um emprego no sector estatal; Fátima e Maliha queriam ser médicas. Talvez estejam, hoje, em terra Hazara; 21 anos atrás passavam os seus dias a tecer belos xales de seda.

A educação era terminantemente proibida para meninas com mais de 12 anos. A taxa de alfabetização entre mulheres era de apenas 4%. Fora da casa das Três Graças, quase toda mulher era uma “viúva de guerra”, envolvida em poeirentes burkas azul claro, a mendigar para alimentar seus filhos. Não só isto era uma insuportável humilhação no contexto de uma sociedade islâmica ultra-rígida, isto contradizia a obsessão Talibã com a preservação da “honra e pureza” das suas mulheres.

A população de Cabul era então de 2 milhões de habitante; menos de 10%, concentrados na periferia, apoiavam o Talibã. Os verdadeiros habitantes de Cabul encaravam-nos como bárbaros. Para o Talibã, Cabul era mais remota do que Marte. Todos os dias no por do sol o Hotel Intercontinental, naquela época uma ruína arqueológica, recebia um inevitável grupo de visita Talibã. Eles vinham para andar no elevador (o único na cidade) e passear à volta da piscina vazia e do campo de ténis. Faziam uma pausa no cruzeiro pela cidade na sua frota de Toyota Hi-Lux importada de Dubai, completa com homilias islâmicas pintadas nas janelas, Kalashnikovs à mostra e pequenos chicotes à mão para impor aos infiéis o comportamento apropriado, islamicamente correcto. Mas pelo menos as Três Graças estavam a salvo; nunca deixaram o seu abrigo bombardeado.

Dúvida é pecado, debate é heresia

Poucas coisas eram mais estimulantes no Talibanistão há 21 anos atrás do que ir à Pul-e-Khisshti – a lendária Mesquita Azul, a maior do Afeganistão – numa sexta-feira à tarde depois das orações de Jumma e confrontar o elenco das Mil e Uma Noites reunido. Qualquer imagem desta apoteose de milhares de guerreiros rústicos com turbantes pretos ou brancos, com kohl nos olhos e o necessário olhar machista, seria toda a fúria na capa da [revista] Uomo Vogue. Até pensar em tirar uma fotografia era anátema; a entrada da mesquita estava sempre enxameada de informadores da V & V.

Na fronteira Afeganistão-Irão, em Islam qilla.Finalmente, numa dessas movimentadas tardes de sexta-feira, consegui ser introduzido no Santo Graal – os aposentos isolados do maulvi (padre) Noor Muhamad Qureishi, até então o Profeta Talibã em Cabul. Ele nunca havia trocado pontos de vista com um ocidental. Foi certamente uma das entrevistas mais surrealistas da minha vida.

Qureishi, como todos os líderes religiosos Talibãs, foi educado numa madrassa paquistanesa. A princípio, era o típico deobandi linha dura; os deobandi, como o Ocidente descobriria mais tarde, eram um movimento inicialmente progressivo nascido na Índia em meados do século XIX para reavivar os valores islâmicos face ao império britânico em expansão. Mas logo descarrilaram para a megalomania, a discriminação contra as mulheres e o ódio contra os xiitas.

Acima de tudo, Quereishi era o produto complexo de um boom – a conexão entre o ISI e o partido Jamaat-e-Islami (JI) durante a jihad anti-soviética dos anos 80, quando milhares de madrassas foram construídas na cintura Pashtun do Paquistão. Os refugiados afegãos tinham direito a educação gratuita, um tecto sobre as suas cabeças, três refeições por dia e treino militar. Os seus “educadores” eram maulvis semi-iletrados que nunca haviam conhecido a agenda reformista do movimento deobandi original.

Reclinado numa almofada esfarrapada sobre um dos tapetes em fiapos da mesquita, Qureishi estabelecia a lei deobandi em pashtum durante horas. Entre outras coisas, ele disse que o movimento era “o mais popular” porque os seus ideólogos sonhavam que o Profeta Maomé lhes ordenara a construção de uma madrassa em Deoband, na Índia. Portanto, esta era a forma mais pura do Islão “porque veio directamente de Maomé”. Apesar do formidável catálogo de atrocidades dos Talibãs, ele insistiu na sua “pureza”.

Qureishi insistiu na inferioridade dos hindus por causa das suas vacas sagradas (“porque não cães, pelo menos eles são fiéis aos seus donos”). Quanto ao budismo, isto era positivamente depravado (“Buda é um ídolo”). Ele teria tido um ataque cardíaco múltiplo com as raparigas budistas da Tailândia, a dançarem em topless à noite e oferecendo incenso no templo na manhã seguinte.

Os anciões da aldeia, em Herat.A dúvida é pecado. O debate é heresia. “A única verdade conhecida é o Corão”. Ele insistiu em que todas “as formas de moderno conhecimento científico vieram do Corão”. Como um exemplo, ele citou – o que mais – um verso corânico (o Corão, a propósito, na sua versão neo-debandi, talibanizada, proíbe as mulheres de escreverem e permite a educação só até os 10 anos de idade). Não pude deixar de me lembrar daquele francês anónimo do século XVIII – um produto típico do Iluminismo – que escreveu o Tratado dos Três Impostores – Moisés, Jesus e Maomé; mas se eu tentasse inserir o Iluminismo europeu no (seu) monólogo, provavelmente seria morto a tiro. Basicamente, Qureishi conseguiu finalmente convencer-me de que todo este jogo de sombras religiosas era para provar que “a minha seita é mais pura do que a sua”.

Actue outra vez, infiel

O Talibanistão vivia sob uma rigorosa cultura Kalashnikov. Mas a suprema arma letal anti-Talibã não era uma pistola, nem mesmo um morteiro ou RPG. Era uma câmara. Eu sabia inevitavelmente que esse dia viria, e veio no estádio de Cabul, construído pela ex-URSS para exaltar o internacionalismo proletário; uma outra sexta-feira, às 17 horas, a hora semanal do futebol – a única forma de entretenimento ausente do Index Prohibitorum dos Talibã, para além das execuções públicas e do sorvete de manga.

Jason e eu estávamos alojados na tribuna VIP – menos de 10 cêntimos de US dólar para o bilhete. O estádio estava lotado – mas silencioso como uma mesquita. Duas equipas, a vermelha e a azul, jogavam da forma islamicamente correcta – com saias extra debaixo dos seus troncos. A meio tempo todo o estádio – ao som de “Allah Akbar” – corria para rezar junto ao relvado; aqueles que não o faziam eram espancados ou atirados para a prisão.

Jason tinha as suas câmaras penduradas ao pescoço, mas não estava a usá-las. Mas isso foi mais do que o suficiente para um histérico adolescente informante do V&V. Fomos escoltados para fora da tribuna por um pequeno exército sorridente, fraternidade homo-erótica, os quais eram então mencionados como “soldados de Alá”. Finalmente fomos apresentados a um Talibã com turbante branco e olhos de assassino. Era nada menos do que o mulá Salimi, o vice-ministro da polícia religiosa em Cabul – a reencarnação do Grande Inquisidor. Fomos finalmente escoltados para fora do estádio e jogados dentro de uma Hi-Lux, com destino desconhecido. Subitamente ficamos mais populares com a multidão do que a própria partida de futebol.

Tecelões de tapetes, em Herat.Num “escritório” talibã – uma toalha sobre a relva em frente de um edifício bombardeado, decorado com um telefone-satélite mudo – somos acusados de espionagem. As nossas mochilas são minuciosamente revistadas. Salimi inspecciona dois rolos de filme das câmaras de Jason; nenhuma foto incriminatória. Agora é a vez da minha câmara de vídeo Sony mini-DV. Pressionámos “play”; Salimi recua com horror. Explicamos que nada está gravado no ecrã azul. O que estava realmente gravado – bastava carregar em “rebobinar” – seria suficiente para nos enviar para a forca, incluindo muitas cenas com as Três Graças. Mais uma vez, reparámos que os Talibãs precisavam muito não só de directores de arte e agentes de relações públicas como também de garotos para info-tecnologia.

Na anti-iconografia talibã, o vídeo, em teoria, pode ser permitido, porque o écran é um espelho. De qualquer forma, saberíamos depois pela boca do leão, isto é, o Ministério da Informação e Cultura em Kandahar: TV e vídeo permaneceriam perpetuamente banidos.

Naquel tempo, uns poucos estúdios fotográficos sobreviviam próximo de uns dos bazares de Cabul – só documentos fotos 3×4 para documentos. Os proprietários pagavam suas contas a alugarem suas máquinas Xerox. O Zahir Photo Studio ainda tinha nas suas paredes uma colecção de fotos em branco e preto e a sépia de Cabul, Herat, minaretes, nómadas e caravanas. Entre Leicas, soberbas Speed Graphic 8 X 10 e empoeiradas câmaras panorâmicas russas, o Sr. Zahia lamentava-.se: “a fotografia está morta no Afeganistão”. Pelo menos, isso não seria por muito tempo.

Assim, após um debate interminável em pashtum com algum urdu e inglês à mistura, somos “libertados”. Alguns Talibãs – mas certamente não Salimi, ainda a perfurar-nos com os seus olhos de assassino – tentam um pedido formal de desculpas, dizendo que isto é incompatível com o código de hospitalidade pashtum. Todos os pashtum tribais – tal como os Talibãs – seguem o pashtunwali [2], o código rígido que enfatiza, entre outras coisas, a hospitalidade, a vingança e uma vida islâmica piedosa. De acordo com o código, é um conselho de anciãos que arbitra disputas específicas, aplicando um compêndio de leis e punições. A maior parte dos casos envolve assassinatos, disputas de terras e problemas com mulheres. Para os pashtum, a linha entre o pashtunwali e a Sharia era sempre confusa.

O minarete do século XI em Ghazni, com uma base militar talibã em primeiro plano.A V & V obviamente não foi uma criação do Mullah Omar, o “Líder dos Fiéis”; foi baseada num original da Arábia Saudita. No seu auge, na segunda metade dos anos 90, a V & V era uma agência de inteligência formidável – com informadores infiltrados no Exército, ministérios, hospitais, agências da ONU, ONGs – evocando uma memória bizarra do KHAD, a enorme agência de informação do regime comunista dos anos 80, durante a jihad anti-URSS. A diferença é que a V & V apenas respondia às ordens – emitidas em bilhetes e pedaços de papel – do próprio mulá Omar.

Balouçar a base

O veredicto ecoou como uma adaga a perfurar o ar opressivo do deserto perto de Ghazni. Uma vista panorâmica de 360 graus revelava um fundo de montanhas onde o mineral havia expulso todo o vegetal; a silhueta de dois minaretes do século XI; e um primeiro plano de tanques, helicópteros e lança-foguetes. O veredicto, emitido em pashtum e murmurado pelo nosso assustado tradutor oficial imposto por Cabul, era inexorável: “Será denunciado num tribunal militar. A investigação será longa, seis meses; enquanto isso aguardará a decisão na prisão”.

Mais uma vez, estávamos a ser acusados de espionagem, mas agora a coisa era real. Podíamos ser executados com um tiro na nuca – estilo Khmer Rouge. Ou apedrejados. Ou atirados para uma cova rasa e enterrados vivos por uma parede de tijolo esmagada por um tractor. Os métodos brilhantes dos talibãs para a solução final eram uma miríade. E pensar que tudo isto estava a acontecer por causa de dois minaretes.

Uma caravana de nómadas Kuchi a ir para sul, rumo a Kandahar.Caminhar por cima de um campo supostamente minado para tentar alcançar dois minaretes não foi propriamente uma ideia brilhante em primeiro lugar. Peritos do Exército Vermelho, na década de 1980, enterraram 12 milhões de minas no Afeganistão. Diversificaram-nas como loucos; mais de 50 modelos, desde os RAP-2 do Zimbabwe até às NR-127 da Bélgica. Funcionários da ONU tinham-nos assegurado que mais da metade do país estava minada. Os funcionários afegãos no Centro de Detecção de Minas em Herat, com os seus 50 pastores alemães altamente treinados, disseram-nos mais tarde que seriam necessários 22.000 anos para a desminagem de todo o país.

Meus objectos de desejo em Ghazni eram duas “Torres da Vitória”; duas superestruturas circulares, isoladas no meio do deserto e construídas pelos Sassanidas como minaretes – comemorativas, não religiosas; nunca houve uma mesquita nos arredores. Em meados do século XIX, estudiosos atribuíram o grande minarete a Mahmud, protector de Avicena e ao grande poeta persa Ferdowsi. Hoje sabe-se que o pequeno minarete data de 1030 e o grande minarete, de 1099. São como dois foguetes de tijolo apontando para o céu que nos protege e a clamar pela atenção dos que viajam pela então horrível auto-estrada Cabul-Kandahar, uma Via Dolorosa de pneus furados multinacionais – russos, chineses, iranianos.

O problema é que, há 21 anos atrás, mesmo junto aos minaretes, existia uma invisível base militar talibã. A princípio só se podia ver um enorme depósito de armas. Pedimos a um sentinela para tirar algumas fotos; ele concordou. Andando à volta do depósito – entre carcaças de tanques russos e de carros blindados – encontrámos algumas peças de artilharia em funcionamento. E uma bandeira talibã, branca e solitária. E não uma alma viva. Aquilo parecia mesmo um depósito abandonado. Mas depois batemos num helicóptero russo destruído – um prodígio da arte conceptual. Demasiado tarde: logo somos interceptados por um Talibã vindo do nada.

O comandante da base queria saber “sob que lei” nós assumíamos que tínhamos o direito de tirar fotos. Ele queria saber qual era a punição, “no nosso país”, por um tal acto. Quando a coisa estava realmente a ficar dura, tudo transformou-se em Monty Python. Um dos talibãs remontou à estrada para trazer nosso motorista, Fateh. Eles voltaram duas horas depois. O comandante falou com Fateh em pashtum. E então fomos “libertados”, graças ao “respeito pela barba branca de Fateh”. Mas deveríamos “confessar” o nosso crime – o que fizemos de imediato, reiteradamente.

O facto é que fomos libertados porque eu trazia uma preciosa carta assinada à mão pelo todo-poderoso Samiul Haq, o líder de Haqqania, a academia-fábrica, Harvard e M.I.T. dos Talibãs em Akhora Khatak, na Grand Trunk Road entre Islamabad e Peshawar no Paquistão. Legiões de ministros talibãs, governadores de província, comandantes militares, juízes e burocratas haviam estudado em Haqqania.

Vire à esquerda para ir ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, naquele tempo reconhecido apenas pelo Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.Haqqania foi fundada em 1947 pelo estudioso religioso deobandi Abdul Haq, o pai de maulvi e ex-senador Samiul Haq, um velho e astuto apaixonado por bordéis e vendedor de tapetes nos bazares de Peshawar. Ele foi um educador chave da primeira geração afegã detribalizada, urbanizada e alfabetizada; “alfabetizada”, claro, no Islão de Haqqania, ao estilo Deobandi. Em Haqqania – onde vi centenas de estudantes do Tajiquistão, Usbequistão e Cazaquistão doutrinados para depois exportarem a talibanização para a Ásia Central – o debate era heresia, o mestre era infalível e Samiul Haq era quase tão perfeito quanto Alá.

Ele contou-me – sem metáfora intencional – que “Alá havia escolhido o mulá Omar para ser o líder dos Talibãs”. E tinha a certeza de que quando a Revolução Islâmica chegasse ao Paquistão, “seria liderada por um desconhecido ascendendo das massas” – como o mulá Omar. Naquele tempo, Haq era consultor de Omar sobre relações internacionais e decisões baseadas na Sharia. Ele agrupou a Rússia e os EUA como “inimigos do nosso tempo”; culpou os EUA pela tragédia afegã; mas ofereceu-se para entregar Osama bin Laden aos EUA se Bill Clinton garantisse que não haveria interferência nos assuntos afegãos.

De volta a Ghazni, o comandante talibã até nos convidou para um chá verde. Obrigado, mas não obrigado. Agradecemos a misericórdia de Alá ao visitar o túmulo do sultão Mahmud em Razah, a menos de um quilómetro das torres. O túmulo é uma obra de arte – mármore translúcido gravado com letras kúficas. A inscrição Kúfica Islâmica, se observada como desenho puro, revela-se como uma transposição do verbo, do audível para o visível. Assim, a conclusão era inevitável; os Talibãs tinham conseguido ignorar totalmente a história da sua própria terra, construindo uma base militar sobre duas relíquias arquitectónicas e incapazes de reconhecer até mesmo o desenho da sua própria letra islâmica como uma forma de arte.

Fotos tomadas de The Roving Eye Video Archives. Pepe Escobar, 2000

31/Agosto/2021
NT
[1] Kafirs:   os não muçulmanos.
[2] Pashtunwali ou pakhtunwali:   Conceito de vida ou filosofia para o povo pachtum, que tem um código de honra e uma lei não codificada. Embora o pashtunwali remonte ao período pré-islâmico da Báctria, a sua prática pelos pachtuns não contradiz necessariamente os princípios muçulmanos. É praticado pelos pachtuns do Afeganistão, Paquistão e por membros da diáspora pachtum.
[*] Jornalista

O original encontra-se em thesaker.is/back-to-the-future-talibanistan-year-2000/

Este artigo encontra-se em resistir.info

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