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sexta-feira, 29 março, 2024

Conheça a bancada dos dados 

Eu fui com o milho, o lobby voltou com o bolo de fubá.

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Tatiana Dias
Editora Sênior do Intercept Brasil

Nos últimos dias, gastei algumas horas costurando as relações que envolvem a Frente Digital, uma bancada criada no Congresso para discutir, eles dizem, tecnologia e inovação. A apelidamos carinhosamente de ‘bancada do like’ – em referência à proximidade ideológica e financeira com as gigantes da tecnologia, especialmente Google e iFood. Mostramos como o alinhamento com a indústria não é só ideológico, mas também financeiro.

E o retorno é garantido: a bancada do like legisla a favor do setor, propondo projetos e alterações nas leis baseadas na autorregulação – ou seja, liberando geral para as raposas tomarem conta do galinheiro. Já aprovou um projeto de lei sobre inteligência artificial (que garante liberdade para as empresas e coloca em risco os usuários) e, agora, avança para afrouxar o PL de fake news, que está em discussão na Câmara.

Na quinta-feira, 25, enquanto fechávamos o texto para publicação, a indústria dava mais um passo largo na cooptação de parlamentares para defender seus interesses no Congresso. Naquela tarde, foi lançada a Frente Parlamentar da Inteligência Artificial, um novo conglomerado político para discutir a regulamentação do tema. Sim. Mais um. Podemos chamá-la de bancada dos dados, a irmã da bancada do like. (Mas, nessa toada, vai faltar apelido para a influência corporativa sobre os parlamentares).

No evento de lançamento, o ministro Marcos Pontes dividiu o palanque com executivos de empresas como Nubank e IBM, diretamente interessadas na regulação do tema. Também estavam ali os cabeças da bancada do like: a presidente, Luísa Canziani, do PTB paranaense, o ex-presidente, Vinícius Poit, no Novo, e Felipe Melo França, diretor do instituto que funciona como o CNPJ da bancada para ter interlocução com as empresas. O presidente da nova frente, Eduardo Bismarck, do PDT cearense, estava representado por uma assessora.

Mas o maior contingente ali eram as empresas. A representação oficial do setor privado ficou a cargo de Andriei Gutierrez, diretor de relações governamentais da Kyndryl, braço da gigante IBM que oferece serviços de infraestrutura de tecnologia.

Gutierrez, também ex-executivo da IBM, é coordenador do Movimento Brasil, País Digital, que se apresenta como “movimento de pessoas apaixonadas por tecnologia” para “pensar o Brasil sob a ótica da transformação digital”. Trata-se, na verdade, de uma reunião de associações de empresas de tecnologia para fazer campanhas e articulação política para a área. Fazem parte delas corporações com foco, principalmente, em software, certificação digital, propaganda online e análise de dados, como Microsoft, IBM, Meta, Google, Taboola, Twitter, Tivit, Intel, AWS, Adobe e dezenas e dezenas de outras. Em outras palavras: lobby.

O setor privado estava em peso em Brasília para o lançamento da Frente. Daniel T. Stivelberg, diretor de políticas e privacidade do Nubank, foi um dos que postou foto no Instagram. A Brasscom, associação que representa a indústria de telecom, e executivos da área de relações governamentais da Microsoft, IBM e da Serasa também estavam ali aplaudindo a iniciativa.

O interesse é óbvio. Elas querem que a Frente ajude a articular a aprovação rápida do Marco Legal da Inteligência Artificial, projeto apresentado por Bismarck, para regular o tema. Sob a relatoria de Luísa Canziani – que depois se tornou presidente da bancada do like –, ele tramitou em tempo recorde e foi aprovado na Câmara sem muito debate público. Especialistas criticam a forma pouco transparente como o processo foi conduzido e também o conteúdo do projeto, que mais parece uma carta de boas intenções e salvaguarda jurídico para as empresas que trabalham com inteligência artificial poderem operar sem muito incômodo.

Ele difere muito das principais iniciativas regulatórias do setor no mundo. Vamos pegar as diretrizes da OECD, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, por exemplo. Logo de cara, elas afirmam que a inteligência artificial deve beneficiar as pessoas, o desenvolvimento sustentável e o bem estar. Também deve respeitar as leis, direitos humanos, valores democráticos e diversidade, e permitir intervenção humana quando necessário para garantir uma sociedade justa. Mencionam também que deve haver transparência para que as pessoas entendam os impactos dos sistemas de inteligência artificial. São princípios semelhantes aos propostos pela União Europeia.

Já aqui no Brasil, o discurso é diferente. O texto começa citando os objetivos: desenvolvimento científico, tecnológico, promoção de desenvolvimento sustentável e inclusivo, aumento da competitividade e da produtividade, melhoria na prestação de serviços públicos e promoção de pesquisa e desenvolvimento, entre outros pontos baseados em retornos econômicos. As pessoas e a defesa de igualdade, diversidade e direitos humanos não parecem ser um ponto central. O projeto brasileiro também defende a liberdade de expressão e o estímulo à autorregulação como “fundamento”.

Apesar do discurso das empresas e defensores do PL seja o de promover a inovação e o desenvolvimento tecnológico, não há muito no texto que garanta que o projeto protegerá a indústria nacional. O mercado de análise de dados é marcado pela concentração – multinacionais gigantescas, com maior capacidade computacional, têm a dominância do setor. Na Europa, legisladores estão avançando sobre mecanismos para tentar diluir essa concentração – um debate que não acontece no Brasil. Aqui, o projeto não tem mecanismos para proteger os pequenos de práticas abusivas do mercado, apenas limita o tema ao que prevê a nossa lei de concorrência.

Transparência? O PL brasileiro até propõe, mas coloca uma série de condições. De acordo com ele, as pessoas só têm direito a serem informadas de “maneira clara, acessível e precisa sobre a utilização das soluções de inteligência artificial” em três hipóteses: se estiverem conversando com robôs, sobre a identidade da pessoa física e jurídica que opera os sistemas e sobre os “critérios gerais que orientam o funcionamento” quando houver “potencial de risco relevante para os direitos fundamentais”.

Em um mundo em que a inteligência artificial está em serviços públicos e de saúde, bancos, entretenimento, relações de trabalho e mais incontáveis áreas, a transparência é fundamental para você saber, por exemplo, por que aquele seu pedido de empréstimo foi negado, ou por que o seu plano de saúde teve um reajuste tão grande.

Sem contar o problema do artigo 6°, sobre o qual vários juristas escreveram uma carta aberta para contestar. O artigo simplesmente exige que, em caso de algum dano, são as vítimas que precisam provar que foram lesionadas pelo sistema de inteligência artificial. Ou seja: se você for vítima de um reconhecimento facial errôneo, uma demissão ou a negativa de um crédito, por exemplo, vai ter que rebolar para mostrar que a culpa foi do sistema.

É um tipo de legislação que cria um ambiente bem favorável, por exemplo, à IBM – grande fornecedora de sistemas de big data para outras empresas ou para o governo. Ou à Microsoft. Ou, quem sabe, ao Serasa.
No texto no Linkedin em que divulgou o evento de lançamento da nova frente, Gutierrez, do braço da IBM, destacou a necessidade de uma parceria entre a Câmara e o Senado, além do poder executivo. Agora, está nas mãos dos senadores avaliar o PL – há pressão para que a votação aconteça ainda neste ano. Em um comentário no post, José Euclides Franco Filho, chefe de gabinete de Luísa Canziani, mostrou disposição para ajudar. “Muito bom Andriei! Conte conosco”, ele escreveu.

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