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sexta-feira, 19 abril, 2024

Chomsky: ”A velha toupeira de Marx está logo abaixo da superfície”

Créditos da foto: (Asadr1337/Wikimedia)

Noam Chomsky fala sobre seu novo livro, a tentativa de golpe no Capitólio, a inquietação de 2020, e as perspectivas de progresso com Biden

A política estadunidense recentemente foi perturbada por crises convergentes, desde a pandemia, passando por levantes sobre justiça racial até a insurreição no Capitólio em 6 de janeiro. Quais são as perspectivas para a política progressista com a nova administração Biden? Noam Chomsky fala sobre clima, raça, imigração e revolução nessa versão editada de uma conversa de rádio entre o linguista e o anfitrião da Alternative Radio, David Barsamian, conduzida em 15 de março desse ano, no Arizona. Estabelecida em 1986, a rádio é um programa semanal premiado de uma hora que fala sobre relações públicas e é oferecido gratuitamente para estações públicas de rádio. Seus arquivos contam com uma das maiores coleções mundiais de conversas e entrevistas de Chomsky.

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David Barsamian: Você tem um livro novo, Consequências do Capitalismo: Produzindo Descontentamento e Resistência, co-escrito por Marv Waterstone, seu colega da Universidade do Arizona. É baseado no seu curso “O que é a política?” no qual você foi professor adjunto. Fale mais sobre ele.

Noam Chomsky: Basicamente é um registro expandido dos cursos que nós viemos concedendo nos últimos cinco anos, tanto para estudantes quanto para a comunidade. As palestras são divididas em séries. Começamos com perguntas sobre a fundamentação do modo como sabemos e acreditamos nas coisas. Como o senso comum hegemônico gramsciniano é imposto? Como o consentimento é produzido, para tomar emprestada a frase de Walter Lippmann? Então, vamos para áreas particulares, começando com as mais importantes para sobrevivência – militarismo e guerra nuclear, destruição ambiental – e partimos daí para uma variedade de questões domésticas: resistência aos movimentos sociais, o que podem alcançar, como são tomados os esforços para controlá-los. Trazemos palestrantes ativistas semanalmente para descrever o que eles fazem, quais tipos de problemas enfrentam e que tipos de oportunidades existem. E atualizamos essas palestras a cada ano. Tem sido uma experiência bem vivaz.

DB: Você escreve no prefácio, “A espécie sobreviverá? A vida humana organizada sobreviverá? Essas perguntas não podem ser evitadas. Não tem como ficar à margem.”

NC: Querendo ou não, isso é um fato. É essa geração que vai decidir se a sociedade humana continuará de alguma forma organizada, ou se alcançamos limites irreversíveis, e nos desmembraremos em total catástrofe. A mesma questão permanece em relação à crescente ameaça das armas nucleares: simplesmente não há alternativa para além da decisão imediata. E temos outros problemas. A pandemia vai, de alguma maneira, ser controlada com um enorme e desnecessário custo sobre as vidas, mas temos outros problemas vindo em nossa direção. E eles podem ser até mais sérios a menos que tomemos medidas para nos prepararmos – tanto no trabalho científico quanto no cenário social. Então, teremos outros problemas com relação à sobrevivência de outras espécies – não somente a espécie humana. Estamos rapidamente destruindo outras espécies em uma escala incrível, que não é vista há 65 milhões de anos. E agora está acontecendo muito mais rápido do que naquela época. É o que chamamos de quinta extinção. Estamos agora em meio a sexta extinção.

DB: Um dos tópicos que você discute no livro é a conexão entre o filósofo iluminista do século 18 David Hume e o pensador marxista do século 20 Antonio Gramsci. Qual é essa conexão?

NC: Hume foi um grande filósofo. Ele escreveu um ensaio importante, Os Primeiros Princípios do Governo (1741), um dos textos clássicos sobre o que chamamos agora de filosofia política ou ciência política. Ele abre seu estudo levantando um questionamento. Ele está surpreso em ver a “facilidade” com a qual as pessoas se subordinam aos sistemas de poder. Isso é um mistério, porque são as próprias pessoas que detêm o poder. Por que elas se sujeitam aos mestres? A resposta, ele diz, deve ser o consentimento: o mestre obtém êxito no que chamamos agora de consentimento produzido. Mantem o público na linha de acordo com sua própria crença de que eles devem se subordinar aos sistemas de poder. E ele diz que esse milagre ocorre em todas as sociedades, independentemente do nível de liberdade ou de brutalidade.

Hume escrevia na esteira da primeira revolução democrática, a Revolução Inglesa da metade século 17, que levou à criação do que chamamos de constituição britânica – basicamente, de que o rei seria subordinado ao Parlamento. O Parlamento na época era representado por mercadores e produtores. Adam Smith, amigo próximo de Hume, escreveu sobre as consequências da revolução. Em seu livro famoso A Riqueza das Nações (1776), ele apontou que os agora soberanos “mercadores e produtores” são os verdadeiros “mestres da humanidade”. Eles usaram seus poderes para controlar o governo e garantir que seus próprios interesses fossem bem cuidados, independentemente da severidade do efeito deles no povo inglês – e até pior, nas pessoas que são sujeitas ao que ele chamava de “injustiça selvagem dos europeus”, se referindo principalmente ao comando britânico na Índia.

Um ano antes da publicação de A Riqueza das Nações, eclodiu a Revolução Americana. Uma década depois, a constituição americana foi formada, em um processo bem parecido com o que aconteceu no primeiro levante democrático. Que foi apresentado como um conflito entre o rei e o Parlamento. E que terminou, como eu disse, com o rei sendo subordinado ao Parlamento, a classe ascendente de mercadores e produtores.

Mas essa não é a história toda. Também havia o público em geral, que não queria ser governado pelo rei ou pelo Parlamento. Foi um período panfletário. Trabalhadores itinerantes e pastores alcançavam boa parte do público comum. Seus panfletos e conversas exigiam que fossem comandados por camponeses, que sabiam o que as pessoas queriam, e não por soldados e cavalheiros que somente desejavam oprimir a população. Eles exigiam acesso universal à saúde e à educação e muitas outras coisas. Mas foram eventualmente derrotados. Hume e Smith ambos escreveram após a vitória dos mercadores e produtores na Grã-Bretanha – não somente sobre o rei, mas sobre o público em geral.

Isso foi reconstituído na constituição americana, como documenta Michael Klarman em seu livro The Framers’ Coup (2016). O povo queria democracia. Os formuladores – homens ricos, quase metade composta por donos de escravos – queriam evitar a ameaça à democracia, enquanto homens de “melhor qualidade”, como se autointitulavam durante a primeira revolução democrática. Não levou muito tempo para que James Madison percebesse o que Smith percebeu antes. Em 1791, ele escreveu uma carta ao seu amigo Thomas Jefferson em que lamentava o colapso do sistema democrático que ele esperava ter estabelecido – não tanta democracia, mas pelo menos alguma. As instituições financeiras da época, lamentou Madison, haviam se tornado a “ferramenta e tirania” do governo. Elas trabalhavam para o governo, mas também o controlavam, trabalhando em prol de seus próprios interesses.

Muitos dos mesmos problemas existem hoje. A versão gramisciniana dá conta dos mesmos princípios em termos modernos. E muitos dos mesmos problemas surgem. Então, sim, há uma conexão.

DB: Vamos falar sobre o papel dos intelectuais – “orgânicos” e “intelectuais” nos termos de Gramsci. Os últimos são, às vezes, menosprezados como estenógrafos. Existe a ideia dos “intelectuais responsáveis”. Gramsci os chamou de “especialistas em legitimação”. E então, é claro, temos o que Henry Kissinger adicionou à definição mais ampla.

NC: A ideia de intelectuais “responsáveis” vem dos principais teóricos liberais da democracia moderna – pessoas como Walter Lippmann (às vezes chamado de pai do jornalismo moderno), Harold Lasswell (um dos fundadores da ciência política moderna), Edward Bernays (um dos fundadores da indústria de relações públicas), Niebuhr (considerado o teólogo do establishment liberal, bastante reverenciado). Todos escreveram textos sobre como a democracia deveria funcionar. Eles disseram que os homens responsáveis – intelectuais educados – têm que manter o poder. O público geral, eles dizem, é burro e ignorante; as pessoas não podem conduzir suas próprias relações. Elas têm que ser controladas por meio do que Niebuhr chamou de “ilusão necessária” e “supersimplificações emocionalmente potentes”. Elas têm um lugar, como colocou Lippmann. Elas são “espectadoras”, não “participantes”, mas têm um papel. Elas têm que comparecer a cada quatro anos para apertar um botão e escolher um dos homens responsáveis para liderá-las, e então devem voltar para seus próprios assuntos e não nos incomodar. Os homens responsáveis devem estar livres do “barulho e do atropelo do rebanho desnorteado”. Não deveríamos, como colocou Lasswell, nos dominar por “dogmas democráticos” sobre as pessoas serem capazes de tomar o controle, para trabalhar em prol de seus próprios interesses. Durante a era Kennedy, você deve se lembrar que tínhamos que nos curvar perante os tecnocratas e a elite. “Os melhores e mais brilhantes”, como os chamou David Halberstam.

Então tinham os homens maus: os intelectuais orientados por valores, as pessoas preocupadas com direitos e justiça. Eles eram o que McGeorge Bundy – o conselheiro nacional de segurança de Kennedy e Johnson e ex-reitor de Harvard – chamou “os homens selvagens de asas”. Bundy fez essa observação em 1967 quando estava castigando as pessoas questionando não somente as táticas da elite, como também seus motivos e planos. Bundy pensou que tínhamos de nos livrar deles, das pessoas marchando nas ruas e dos intelectuais orientados por princípios que as alimentavam.

Essa distinção remonta a um passado histórico. O termo “intelectual” em seu sentido moderno, foi realmente desenvolvido durante os anos do caso Dreyfus no final do século 19 na França, quando Émile Zola e outros escritores e intelectuais criticavam o grosseiro tratamento de Alfred Dreyfus – no caso das informações fabricadas. Estavam criticando o exército e o Estado. Estavam amargamente condenados pelos imortais da Academia Francesa por ousarem criticar essas grandes instituições. Eles eram os homens selvagens de asas. Zola teve que sair da França para escapar dos ataques, e outros foram presos. Isso é história. Se você é um homem selvagem de asas, e está ousando ir além da obediência ao poder, é provável que você sofra de uma maneira ou de outra.

Desse modo, existem homens selvagens de asas e os estenógrafos do poder. Kissinger, mestre da arte, colocou lindamente. Ele disse que o papel do intelectual da política é articular o pensamento daqueles no poder, “elaborando e definindo” seu “consenso”. Se eles não se expressarem de maneira exata, nós vamos articular corretamente para eles. Esse é o papel do intelectual sério. E é assim que você se torna um intelectual respeitado e responsável.

DB: Vamos partir do livro para o noticiário. Tem um veículo no Planeta Vermelho, o “Perseverance”, enviando fotos para a Terra. Anos atrás você falou sobre um jornalismo de Marte. Como o veículo cobriria a pandemia e a introdução das vacinas?

NC: Nos EUA um número significativo de pessoas está se recusando a tomar a vacina. São esmagadoramente Republicanas, e dão muitos motivos: desconfiança no governo e na ciência. Mas não é algo somente dos EUA. Na França, por exemplo, somente cerca de 40% das pessoas pretendem tomar a vacina. Há evidências esmagadoras sobre a importância da vacina se quisermos controlar essa praga, mas medo e desgosto do governo, ciência e autoridade alcançaram tamanha proporção que as pessoas estão tomando ações perigosas para evitar o que deve ser feito.

Compare com outros países. A Austrália controlou a doença rapidamente. Uma razão principal é que eles possuem um sistema de saúde altamente eficaz, no qual as pessoas confiam. Estão dispostos a ter responsabilidade coletiva uns pelos outros. Eles aceitaram lockdowns rigorosos, que foram exitosos, e a doença foi essencialmente controlada. O mesmo aconteceu na Nova Zelândia, Taiwan, Coréia do Sul e outros países. Mas têm países onde o descontentamento e a desconfiança são tão altos que muitas pessoas simplesmente não estão dispostas a se unirem ao esforço coletivo para controlar a acabar com a doença.

DB: Você tomou a vacina?

NC: Tomei a segunda dose há dois dias. Estou com o braço um pouco dolorido.

DB: Esse descontentamento sofreu uma reviravolta dramática em 6 de janeiro, com o ataque ao Capitólio. Qual é a sua opinião sobre o que aconteceu?

NC: Primeiramente, foi explicitamente uma tentativa de golpe. Estavam tentando derrubar o governo eleito: isso é um golpe. Em relação aos participantes, uma característica chocante – vejam as fotos – é que poucos jovens estavam envolvidos. Tinham pessoas mais idosas e de meia idade, e eram todos apoiadores de Trump. Ele os estava incitando.

Eles aparentemente acreditam fortemente que a eleição foi roubada, que seu país está sendo roubado deles por forças malignas. Lembre-se, quase metade dos eleitores Republicanos acha que Trump foi enviado por Deus para salvar o país dos maléficos, que englobam os pedófilos Democratas, minorias e outros que estão prejudicando e destruindo sua forma de vida cristã tradicional. Tinham elementos lá que pertenciam às milícias mais violentas como os “Proud Boys”. Foi uma questão bem violenta. Cinco pessoas morreram; poderia ter sido bem pior. Foi um ato desesperado por pessoas que estão desesperadas. Não podemos ignorar esse fato. E uma grande parte do país apoia isso.

É interessante ver o que aconteceu com o Partido Republicano após 6 de janeiro. As pessoas que basicamente são donas do país – os mestres da humanidade de Smith, a classe que financia partidos – estavam tolerando Trump; não gostam dele. Ele interfere com a imagem deles enquanto pessoas humanas, a mensagem deles de que são confiáveis. Eles não gostam dessa vulgaridade, das palhaçadas, mas toleraram ele porque estava enchendo seus bolsos. Seu programa legislativo completo foi desenhado para jorrar dinheiro nos bolsos dos ultra-ricos, de corporações beneficentes, e para eliminar regulações que protegem as pessoas, mas interferem nos lucros. Enquanto Trump fazia isso, estavam dispostos a tolerá-lo. Mas 6 de janeiro foi demais. E quase instantaneamente, os maiores centros de poder econômico – Câmara de Comércio, a “távola redonda” dos empresários, grandes corporações – se movimentaram rapidamente e disseram objetivamente para Trump: vá embora.

Bem, Trump foi de avião para Mar-a-Lago. Mitch McConnell, a figura mais importante no Partido Republicano, ouviu os doadores e começou a criticar Trump; ele e outros senadores Republicanos começaram a correr para as saídas. Mas não foram muito longe: estão enfrentando as multidões enfurecidas que Trump havia mobilizado. O Partido Republicano está, desde então, encalhado. Eles vão ouvir os doadores e restaurar uma versão mais gentil do trumpismo? Ou serão varridos pelas forças que permanecem nos bolsos de Trump?

McConnell e Trump pessoalmente não se suportam, mas têm um interesse em comum: garantir que o país esteja ingovernável, que Biden não alcance nada. Não é segredo – é o que McConnell anunciou claramente e explicitamente quando Barack Obama foi eleito. Naquela altura, McConnell não tinha Congresso. Ele disse que a tarefa era garantir que Obama não tivesse sucesso fazendo nada. Então ele cortou o estímulo que era necessário e de outas maneiras dificultou os esforços para governar o país e lidar com os problemas da nação. Temos todas as razões para crer que ele fará o mesmo agora.

Trump quer o mesmo com objetivos diferentes. Os dois estão juntos no esforço para garantir que o país seja ingovernável, que a população sofra tanto quanto possível, na esperança de que os culpados sejam os Democratas e que eles possam voltar com tudo em 2022 e 2024. É o que vimos na lei de auxílio que foi recém aprovada. Os Republicanos agora estão tipo o velho Partido Comunista. Eles seguem o princípio do que os leninistas chamam de centralismo democrático. O partido tem uma política. É estabelecida de cima, e todos devem aceitar uniformemente. Não é tolerável nenhum desvio. Então, embora alguns senadores Republicanos e deputados possam apoiar aspectos do auxílio, e mesmo sabendo que seus eleitores o apoiam, eles têm que votar contra. Essa é a situação em que nos encontramos no momento.

Eu devo dizer que o que Biden tem feito até agora é uma surpresa prazerosa para mim. É melhor do que eu esperava. Ele é muito criticado na esquerda por falhas e omissões na política doméstica. Essas críticas estão, na minha visão, corretas, mas um pouco injustas. Há um limite para o que você consegue fazer quando metade do Senado, independentemente do que você faça, fica completamente contra você. E quando têm Democratas que seguirão com eles, coloca-se um limite no que você pode alcançar. A política externa é um outro assunto.

DB: Você favoreceria a eliminação do obstrucionismo, o qual Obama descreveu como “relíquia da época Jim Crow”?

NC: Primeiramente, eu duvido que isso possa ser feito. Então basicamente não é uma questão; se deveria ser feito é um outro assunto.

O obstrucionismo tem sido usado de maneiras muito destrutivas. Mas, no passado, também foi usado de modo a barrar legislações racistas. A questão mais fundamental é que temos dois partidos políticos, ambos dependentes da mesma selecionada classe de riqueza e poder – a classe dos doadores, basicamente. Um deles é tão extremo que simplesmente abandonou a política parlamentar. E agora está lutando desesperadamente para se manter enquanto um partido minoritário. Boa parte dos grandes problemas que se aproximam não tem muita relação com o auxílio, mas sim com leis aprovadas na Câmara.

A HR1, a primeira lei aprovada pela Câmara Democrata, é muito significativa. Basicamente fortifica o direito ao voto: isso é muito importante. Há um grande ataque Republicano aos direitos eleitorais. Existem literalmente centenas de propostas de lei no país – em estados onde os Republicanos controlam a legislatura – para tentar prevenir que minorias e pobres votem, de modo que os Republicanos possam se manter no poder. Eles são um partido da minoria; eles quase sempre perdem as eleições; mas eles mantêm o poder de várias maneiras. E isso está se tornando mais significativo. O resultado dessa batalha terá um grande efeito no futuro.

Os Republicanos têm um tipo de vantagem estrutural nas eleições porque a base eleitoral Democrata está em sua maior parte concentrada nas cidades. Isso significa que muitos votos depositados no nosso sistema parlamentar apenas são perdidos. Se 80% dos votos para um candidato são depositados em um local, 30% deles são essencialmente perdidos. Os votos Republicanos, por contraste, são espalhados em condados rurais e cidades pequenas que possuem uma representação bem maior que a sua população. Tudo isso dá aos Republicanos uma vantagem estrutural: eles podem ganhar uma eleição mesmo se perderem os votos por 4 ou 5%. Seus esforços atuais estão focados no fortalecimento dessa vantagem estrutural de modo que eles possam se manter no poder, mesmo se tiverem menos votos.

Isso vai ao encontro do grande projeto de McConnell enquanto ele esteve no poder: tentar lotar o judiciário, em todos os níveis, com advogados jovens e de extrema direita. Eles estarão bem posicionados para barrar legislações progressistas por uma geração, independentemente do que o público possa querer daqui há anos. Todas essas dificuldades fazem parte do nosso sistema político altamente regressivo que, mesmo nas melhores circunstâncias, levaria a uma crise constitucional. Isso é dado: você não consegue continuar funcionando como sociedade democrática sob provisões radicalmente anti-democráticas da Constituição. O caso mais extremo, é claro, é o Senado, que recompensa dois votos por estado. Isso significa que Wyoming, com cerca de 600.000 pessoas, tem a mesma representação que a Califórnia, com cerca de 40 milhões. E então temos o Colégio Eleitoral.

Essas e muitas outras coisas são problemas profundos de todo o sistema constitucional que não podem ser consertados por emendas: cidades menores não permitirão. Esses são problemas que estamos enfrentando acima dos problemas verdadeiramente existenciais. Mas a não ser que lidemos com a eminente catástrofe ambiental, a ameaça crescente de uma guerra nuclear, a séria ameaça de novas pandemias, nada mais importará.

DB: De fato, das últimas oito eleições presidenciais os Republicanos ganharam por voto popular somente uma vez. Mas para voltar para 6 de janeiro, quão importante é a notícia falsa de que a eleição foi roubada? Eu lembro da Alemanha pós 1ª GM: a teoria faca nas costas que os nazistas usaram de maneira tão eficaz. Nós ganhamos a guerra, eles disseram, mas os comunistas, socialistas e judeus nos sabotaram e nos venderam. Vamos ver uma recapitulação disso hoje?

NC: Eu não sei sobre Trump, mas seus apoiadores fervorosos e apaixonados claramente acreditam nisso. Eles acreditam que a eleição foi roubada, que o país está sendo roubado deles, e que sua tradição cristã e suas comunidades brancas estão sendo roubadas deles. Eles têm algum fundamento para tanto. Ande por uma cidade rural nos EUA, e o que você vê são casas a venda, negócios fechados, avenidas principais vazias, o banco fechado. Talvez ainda haja uma igreja, mas as indústrias foram embora, os jovens estão indo embora. Não é mais uma comunidade branca cristã, onde os outros sabiam seus lugares.

Isso é real. É a base para a disposição em acreditar em histórias como a eleição roubada, embora, na realidade, tenham sido os Republicanos o grupo em maior número “limpando” votos, impedindo votações, dificultando o voto dos afro-americanos. Mas eles acreditam nisso fervorosamente. Então eu não acho que devemos chamar isso de hipocrisia. É muito mais perigoso que isso. É uma crença selvagem, baseada em elementos da realidade. E essa é o tipo de crença que é extremamente perigosa, mas que também oferece promessa, porque você pode lidar com os elementos da realidade nela e deixar as crenças ruírem quando você se livrar dos elementos da realidade fundamentais. É verdade, o Estados Unidos rural foi destruído pela globalização neoliberal. É um fato.

Isso não precisa acontecer. Você pode superar esses fatos. E com isso, os sistemas de crença começarão a ruir. Nem todos eles, os que são baseados na supremacia branca, no tradicionalismo e nacionalismo cristãos. Esses estão profundamente enraizados. São problemas culturais profundos. Não vamos lidar rapidamente com o fato de que quase metade da população espera que a volta de Jesus ocorra em seu tempo de vida. Você não vai lidar com isso resolvendo problemas econômicos. Lidando com coisas que estão dentro da nossa capacidade de negociação – como o colapso da base econômica das comunidades rurais, a destruição dos fazendeiros pobres, a tomada pelo agronegócio – podemos progredir, minando as fundações de sistemas de crenças muito perigosos. Não há outro jeito de proceder. E você só tem que esperar que dê certo.

DB: Enquanto isso, a crise climática segue seu rumo. No início de fevereiro, calotas polares em derretimento nos Himalais causaram enchentes e danos a represas, levando morte e destruição rio abaixo no estado indiano de Uttarakhand. Apenas algumas semanas depois, um grande iceberg se soltou da barreira de gelo da Antártida. Com uma área de 490 km2, o iceberg é 62% maior do que a cidade de Nova Iorque. O que faremos perante o caos climático?

NC: Podemos descrever esses problemas. Qualquer pessoa que lê revistas científicas sabe que vemos regularmente descobertas de problemas piores à frente. E eles vão acontecer quer queiramos ou não. Isso é causado pelo dióxido de carbono já presente na atmosfera. O número de partículas por milhão está crescendo progressivamente em direção a uma verdadeira zona de perigo, e isso vai continuar simplesmente por causa dos danos que já fizemos. O que podemos perguntar é: podemos tomar medidas para mitigar as ameaças e superar os problemas? A resposta é sim.

Bob Pollin e eu lançamos um livro alguns meses atrás, A Crise Climática e o Acordo Verde Global. Em sua maior parte, é baseado em seu trabalho detalhado sobre como lidar com a catástrofe climática. Salienta medidas que podem ser tomadas de maneira eficaz para lidar com a crise de um modo plausível, com cálculos que indicariam aproximadamente que 2 ou 3% do PIB seriam o suficiente para controlar a crise e determinar as bases para um caminho a um futuro melhor. Isso não é uma perda: é um mundo melhor para todos nós. Menos poluição, melhores empregos, melhores oportunidades, melhor estilo de vida – todos são possíveis com uma porcentagem do PIB que é bem menos do que gastamos durante a 2ª GM.

É claro, é dito que a 2ª GM foi uma guerra para sobrevivência. Mas essa é uma guerra muito maior. Os EUA teriam sobrevivido se o mundo tivesse sido dividido em um mundo controlado pela Alemanha e outro controlado pelos EUA, como anteciparam estrategistas estadunidenses no início da guerra. Teria sido um mundo muito feio, mas teriam sobrevivido. Se não lidarmos com essa crise, não haverá nenhuma sobrevivência.

Agora, se Trump tivesse tido mais quatro anos de mandato, é possível que tivéssemos alcançado literalmente ápices irreversíveis, ou nos aproximado deles. Seus maiores programas visavam destruir o meio-ambiente o mais rápido possível, maximizar o uso de combustíveis fósseis, e eliminar o aparato regulador que de alguma maneira os controlava, com o objetivo de aumentar o lucro de curto prazo para setores da indústria, de combustíveis fósseis e outros. Esse é o programa mais malicioso na história da humanidade. E quase não é discutido; não é esse o motivo pelo qual Trump é criticado. Mas qualquer outra coisa que ele tenha feito, se torna totalmente insignificante em comparação com isso. Outros quatro anos disso, e poderíamos estar bem perto do fim.

Felizmente fomos poupados disso, embora possa voltar em dois ou quatro anos. O programa McConnell-Trump poderia ser bem sucedido, se fosse, estaríamos em uma situação desesperadora. Se essas políticas forem renovadas, você já consegue prever o resultado. Agora temos tempo para tentar fazer algo a respeito. Mas eu acho que haverá uma verdadeira batalha sobre a continuidade ou preservação do programa de Biden. E ele deve continuar se quisermos sobreviver a isso. Essa é a esperança.

O mesmo é verdade para outras questões. Vejamos o auxílio, que possui muitos aspectos bons em relação à pobreza infantil, rendas maiores para os pobres, e por aí vai. Mas são temporários. Se não forem ampliados, não vai importar muito. Então haverá uma batalha para estendê-los e ir além do que eles já fornecem.

Essas são grandes batalhas que estão por vir. Os Republicanos aparentemente vão apenas bloquear tudo. No curto prazo há muita pouca esperança de dissuadir qualquer um deles de tentar tornar o país ingovernável e tomar o poder, talvez retrocedendo os direitos eleitorais e outras medidas. Isso parece uma força incansável. Mas dentro dos Democratas há muito a ser feito, e deve ser feito. Todos podemos nos lembrar que quando Obama tomou posse, ele veio com uma enorme assistência de um exército de voluntários jovens que trabalharam muito para elegê-lo. Assim que entrou na Casa Branca, ele basicamente os mandou para casa. Obrigada. Adeus. Está tudo sob controle; podem ir. Infelizmente, eles foram embora. Isso significou que ele poderia quebrar suas promessas – o que ele fez, e dentro de dois anos ele perdeu o Congresso.

Se você comete o mesmo erro hoje, é isso o que vai acontecer. O que quer que você pense sobre Biden, ele estará sob pressão do setor conservador do Partido Democrata e do setor “Clintonita” neoliberal de Wall Street. Eles vão recuar os programas progressistas, o que será ruim o suficiente para o país, mas para o clima será desastroso.

DB: Ao longo da crise do ano passado, esforços comunitários, auxílio mútuo e solidariedade se tornaram mais importantes e essenciais – bancos alimentares e despensas, vestimentas, cooperativas. O que elas podem fazer? Mondragon, na região Basca, é frequentemente citada como um modelo de sucesso.

NC: Foi um desenvolvimento interessante que aconteceu espontaneamente em muitos locais – pessoas se unindo em comunidades para fornecer ajuda entre si. Se há uma pessoa idosa que não pode sair de casa, vamos levar comida. Se não há comida suficiente, vamos levar água para as pessoas. Às vezes aconteceu de maneiras impressionantes.

Um dos exemplos mais extraordinários foi nas áreas extremamente pobres do Rio de Janeiro – as favelas, que são áreas miseráveis com barracos que ficam uns em cima dos outros, basicamente comandadas por gangues. As pessoas não têm água. Não tem como praticar o distanciamento social. Não têm assistência médica. Mas eles se organizaram – através das gangues, que tentaram ajudar as pessoas a sobreviverem a essas condições impossíveis. E isso aconteceu em regiões pobres por todo canto.

Esse tipo de compromisso com um auxílio mútuo e solidariedade se revelaram de diversas formas. Mesmo antes da pandemia já tínhamos o início do desenvolvimento de indústrias comandadas por trabalhadores, cooperativas e coletivos e localismo na agricultura. Existem muitos esforços para tentar lidar com os efeitos extremamente prejudiciais das políticas de globalização neoliberal, que tiveram um verdadeiro efeito chocante sobre a população geral em quase todos os cantos. Mas vimos tentativas para lidar com isso. Em áreas do Cinturão da Ferrugem nos EUA, onde banqueiros em Nova Iorque e Chicago decidiram que a indústria do aço deveria ir para a China, os trabalhadores não simplesmente desistiram. Eles tentaram comprar as indústrias de aço, mas os donos não concordaram. Eles queriam mais lucros, e eles não gostam da ideia de uma indústria de trabalhadores: é perigosa. O que aconteceu, ao invés, é uma proliferação de empresas comandadas por trabalhadores envolvidos na crescente economia de serviços, hospitais, universidades e outras áreas.

Gar Alperovitz escreveu muito sobre isso e tem se envolvido na iniciação de boa parte desse trabalho com o Projeto “The Next System”. Tem acontecido muito disso. Algumas ações por parte de alguns sindicatos – não sei até onde irão – como os trabalhadores do aço, para alcançar acordos com alguns dos mais bem sucedidos conglomerados comandados por trabalhadores, principalmente na Espanha, no país Basco, em Mondragon, para ver se algo similar poderia ser desenvolvido aqui. Todas essas coisas poderiam ser muito importantes – não somente em si mesmas, mas também para mostrar a direção na qual a sociedade deve seguir em busca de maior responsabilidade coletiva, atividade democrática participativa, se esperamos sair dessas crises com algum tipo de sociedade decente. Todas essas coisas estão acontecendo. E o apoio mútuo em reação à pandemia, que você mencionou, é uma parte extremamente importante disso.

DB: Vamos falar sobre a fronteira sulista e imigração. Você está a apenas 96 km da fronteira com o México, onde crianças desacompanhadas estão sendo detidas aos milhares. Qual seria uma política imigratória justa e equitativa?

NC: A primeira meta da política deveria ser eliminar as condições pelas quais as pessoas estão fugindo de seus países. Essas pessoas não querem estar nos EUA; elas querem estar em casa. Mas são locais inabitáveis – são forçados a fugir. Temos uma grande responsabilidade por esse fato. Durante os anos Reagan houve um aumento acentuado nos ataques estadunidenses contra a América Central. Centenas de milhares de pessoas foram mortas. Centenas de milhares foram desalojados. Tortura. Destruição. As pessoas ainda estão fugindo hoje dos danos criados pelas guerras de Reagan na América Central. Bom, podemos lidar com esses escombros.

Você talvez lembre quatro ou cinco anos atrás, a principal fonte de refugiados era Honduras. Por que Honduras? Houve um golpe militar, que derrubou o governo reformista moderado de Zelaya, instalou uma ditadura militar, colocou o poder de volta nas mãos da oligarquia super rica, e transformou o país em uma das capitais mundiais do homicídio. As pessoas começaram a fugir. É daí que vêm as caravanas.

Poderíamos ter impedido isso? O problema não eram as caravanas. Era o que estava acontecendo. Enquanto o resto do hemisfério condenava o golpe, Obama e sua secretária de Estado, Hillary Clinton, se recusaram a formalmente designá-lo como um golpe militar – porque se o fizessem, teriam que parar com o apoio militar à junta. Quando você impõe uma câmara dos horrores, as pessoas fogem.

Então, o primeiro passo na política imigratória seria eliminar as razões pelas quais as pessoas estão fugindo. Isso não pode ser feito em um dia, mas podemos agir em direção a isso. Esse é o começo.

O próximo passo é parar com a política criminal de recrutar o México para impedir que as pessoas fujam da América Central para as nossas fronteiras. A única coisa boa que conseguimos dizer sobre isso é que a Europa é ainda pior, mais cruel e sádica com uma política que tenta evitar que as pessoas cheguem das profundezas da África, Niger e outros lugares. Tentando evitar que cheguem em território europeu na Turquia. E nem preciso dizer que a Europa tem um histórico horrível em relação a África e o Oriente Médio. Não precisamos rever isso. Então sim, são ainda piores, mas isso não é desculpa para nós. Temos que encerrar essa política.

A próxima coisa a fazer é garantir as condições básicas da lei internacional – fornecer condições decentes para as pessoas que estão fugindo e oportunidades razoáveis para que possam pedir anistia e admissão. Tudo isso pode ser feito. Ao invés disso, o que temos é: ao sul da gente, como você disse, milhares de pessoas morrendo no deserto, literalmente. O terreno é muito proibitivo. No verão chega a mais de 37 graus. E não tem água.

Desde Clinton, políticas tentaram conduzir essas pessoas para as áreas mais hostis. Bloquear as áreas onde existem trânsitos razoavelmente fáceis – poderiam ser resgatadas por uma política de asilo humanitário – e levá-los para as áreas mais perigosas, onde vão vagar pelo deserto, vão se perder e morrer de fome. Enquanto isso, usam táticas como os helicópteros da Patrulha de Fronteiras sobre as pessoas – então se um grupo está junto, vão se separar, se perder e morrer. Existem alguns esforços de apoio em Tucson – grupos maravilhosos. O grupo principal, “No More Deaths”, tenta enviar pessoas para o deserto para montar acampamentos pequenos, onde podem oferecer ajuda médica se as pessoas chegarem lá. Eles deixam garrafas de água no deserto para as pessoas que estão morrendo de sede. A Patrulha invade os acampamentos, esmaga as garrafas, e por aí vai. Antes de Trump havia um tipo de acordo tácito de que deixariam uns aos outros em paz. Mas piorou muito.

Todas essas histórias de horror não têm que acontecer. As diversas camadas pelas quais as políticas devem ser moldadas são completamente praticáveis.

DB: O assassinato de George Floyd incitou muitos protestos. É dito que foi um momento de reconhecimento racial. Termos como “supremacia branca”, “privilégio branco” e “racismo sistêmico” são muito mais comuns agora do que antes. Para onde você vê o movimento por justiça racial indo?

NC: O levante após o assassinato de George Floyd foi impressionante. Não aconteceu tudo de uma vez. É resultado de anos de organização, educação, ativismo, que prepararam o terreno para quando essa fagulha surgisse, os gravetos pegassem fogo. E foi um levante incrível. Solidariedade. Negros e brancos juntos. Contou com um enorme apoio popular – cerca de dois terços de apoio popular, algo quase desconhecido para um movimento social. Martin Luther King nunca chegou perto disso, mesmo no pico de sua popularidade.

Boa parte dessa energia se manteve. Parte foi dissipada, parcialmente por causa de erros táticos, falhas que deveriam receber atenção. O slogan, “corte o financiamento policial” se destacou rapidamente. É uma ideia prudente, e tem uma interpretação prudente. Foi elaborado por organizadores do Black Lives Matter, por Alexandria Ocasio-Cortez e outros. É um pedido para remover a polícia de atividades das quais ela não pertence. A polícia não tem papel em brigas domésticas, overdoses, tentativas de suicídio, coisas assim. Todas essas questões deveriam envolver organizações de serviço comunitários; deixando a polícia fazer o trabalho policial. No ano passado, quando perguntaram para AOC, “para você, como é um Estados Unidos com corte no financiamento policial?” a resposta dela foi: “a boa notícia é que não precisamos imaginar muito. Parece um subúrbio. Comunidades brancas ricas onde escolhem financiar os jovens, saúde, moradia, mais do que financiam a polícia”. Se uma criança for pega quebrando uma janela para roubar drogas, você não o manda para a cadeia por 30 anos. O que você faz é procurar saber qual é o problema dele e como lidar com ele.

Mas o slogan foi sequestrado pela direita. Se tornou uma propaganda: olhem para esses loucos lunáticos. Eles querem remover toda a polícia de nossas comunidades para que sejam subjugadas por terroristas, criminosos e estupradores. Bem, ninguém quer isso. Foi um grande tópico para a direita e para a campanha de Trump. Temos uma lição aqui. Temos que ter cuidado e apoiar propostas com programas educacionais, organizacionais e ativistas significativos – e dizer: isso é o que eu quero dizer. É uma boa ideia. É boa para você; você deveria apoiá-la. Não caia na propaganda que está por vir.

Mas basicamente, é um grande passo adiante. E eu acho que podem construir algo em torno dele. Não é o único exemplo. O Projeto 1619 no New York Times foi outro passo adiante muito interessante. É claro, está sendo criticado por historiadores profissionais: você errou nesse detalhe, esqueceu de dizer isso, e por aí vai. Não importa. Foi um reconhecimento poderoso do que 400 anos de tratamento cruel significou para afro-americanos e qual legado permanece. Essa é uma descoberta verdadeira. Alguns anos antes, não havia nada igual. Todos esses são passos adiante.

DB: Você conclui o capítulo sobre mudança social em Consequências do Capitalismo com a velha toupeira de Karl Marx. “Nós reconhecemos nossa velha amiga, nossa velha toupeira”, ele escreveu, “que sabe tão bem como trabalhar no subterrâneo, repentinamente para aparecer: a revolução”.

NC: Marx tinha uma imagem do espírito revolucionário que está logo abaixo da superfície. Voltando para Hume, há o consentimento, e o poder é baseado em consentimento – mas por trás do consentimento há um dizer recorrente: eu não quero isso. Não quero ser comandado por um mestre. E não é preciso muito para esse pensamento avançar. E quando avança, você tem os tipos de mudanças que realmente fazem uma sociedade avançar.

Então, a velha toupeira está escavando lá embaixo, e isso pode tomar diversos caminhos. Olhe o histórico dos primeiros dias do movimento trabalhista, no século 19 e no início da Revolução Industrial. O tema principal do movimento trabalhista é que ter um trabalho é um ataque terrível aos nossos direitos pessoais e dignidade. Ter um trabalho não é algo que você espera ansiosamente. É algo que você pode ser forçado a ter, mas é um ataque à nossa dignidade enquanto seres humanos, aos nossos direitos como seres humanos livres. Ter um trabalho significa ser forçado a viver sob o ordenamento de mestres pela maior parte de sua vida. Nada de maravilhoso sobre isso. Trabalhadores habilidosos no final do século 19 tinham uma imprensa muito vivaz. Eles expressavam sua esperança de que com o tempo as pessoas não iriam sucumbir a esse ataque aos seus direitos – que não aceitariam como normal a ideia de que eles devem se sujeitar a um mestre.

Bem, esse dia chegou. As pessoas de fato pensam que ter um trabalho é a melhor coisa na vida. Mas eu acho que a velha toupeira de Marx está logo abaixo da superfície. Se há uma oportunidade para pensar sobre isso, de reconhecer a possibilidade que você não tem que se sujeitar a um mestre, que você pode comandar sua própria vida, que você pode comandar suas próprias empresas, ela continua a se aproximar da superfície. As greves de braços-cruzados de quando eu era criança durante a Depressão, foram um passo em direção a uma ideia: não precisamos dos nossos chefes, podemos tomar esse lugar e comandá-lo – o que é verdade.

É aí que as atitudes mudam, e o apoio às medidas do New Deal realmente cresce na população. É quando a Suprema Corte parou de bloquear todas essas medidas, quando setores do capital disseram, “Olha, temos que nos acomodar com esses crescentes desenvolvimentos, ou estaremos com problemas”. O próximo Projeto “The Next System” que eu mencionei é um passo nessa direção, dizendo que você pode comandar suas próprias empresas. Não precisam ser os banqueiros de Nova Iorque quem decidem se essa empresa vai se mudar para a China ou não. Você pode decidir: você pode decidir como vai comandá-la.

Você pode decidir em solidariedade com os trabalhadores da China e do México. Vocês têm interesses em comum: tornar a vida melhor para todos vocês. Muitos sindicatos têm a palavra “internacional” em seus nomes. Os nomes normalmente não significam muito, mas podem significar muito e podem ser trazidos à tona. E é importante nesse momento. Estamos em um período no qual o internacionalismo está no primeiro plano. Lidar com a pandemia, lidar com o aquecimento global: são questões internacionais, temos que resolvê-las juntos. Não se pode fazer isso em somente um lugar. Não se pode parar o aquecimento global somente no ocidente. A pandemia não tem fronteiras. Os direitos trabalhistas não têm fronteiras. Podemos trabalhar juntos nisso. Essa é a direção que devemos seguir.

*Publicado originalmente em ‘Boston Review’ | Tradução de Isabela Palhares

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