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quinta-feira, 28 março, 2024

Beethoven: tempos revolucionários

Por Michael Roberts [*]

É o 250º aniversário do nascimento de Ludwig Beethoven, nascido em 16 ou 17 de Dezembro de 1770 (ninguém tinha certeza do dia, nem ele próprio). Beethoven é considerado o mais musicalmente revolucionário dos compositores “clássicos”. E, na minha opinião, isto não é um acidente da história porque Beethoven foi um homem do seu tempo.

Nasceu na época do que foi chamado de ‘iluminismo’, quando o pensamento europeu rompeu com a subserviência à religião e à monarquia e ergueu a bandeira do pensamento livre, da ciência e da democracia – e houve os primeiros vislumbres de uma nova ordem económica baseado no ‘livre comércio e concorrência’. Adam Smith publicou sua obra seminal, A riqueza das nações, quando Beethoven tinha seis anos. E aconteceu a guerra de independência americana, na qual os antigos colonos britânicos romperam com a monarquia britânica, com o apoio financeiro e militar da França, para estabelecer uma república com direito a voto, exercida já no mesmo ano.

Na minha opinião, a jornada musical de Beethoven oscilou com os altos e baixos deste tempo revolucionário que continuou ao longo de sua vida, mas particularmente com os fluxos e refluxos da Revolução Francesa que liquidou a monarquia, os direitos feudais e proclamou igualdade, liberdade e fraternidade para todos (os homens). Enquanto adolescente, Beethoven, como muitos outros jovens “médios” na Europa, foi desde o início um forte apoiante da revolução.

Filho de um músico de uma família de origem flamenga, seu pai, Johann, trabalhava para a corte do Arcebispo-Eleitor de Bonn, na Alemanha. Ele fez sua primeira apresentação pública aos sete anos e mudou-se para Viena em 1792 para estudar com Joseph Haydn, o qual, com Mozart (falecido no ano anterior aos 35 anos), havia moldado a tradição musical da cidade.

Viena estava sob o domínio do império absolutista dos Habsburgos. Mas Beethoven estava envolto em ideias napoleónicas de liberdade. Ele se tornou um republicano convicto e, tanto nas suas cartas como nas suas conversas, falava frequentemente da importância da liberdade. Ele não se importava com a realeza. A um de seus primeiros patronos, o Príncipe Karl Lichnowsky, Beethoven escreveu: “Príncipe, o que você é, você nasceu por acidente; o que sou, devo-o a mim mesmo”. O monarca austríaco, Franz II, alegadamente recusou-se a ter qualquer coisa a ver com Beethoven, com base em que havia “algo revolucionário na [sua] música”. E a amizade do compositor com o grande escritor e poeta alemão Goethe terminou abruptamente em 1812 quando, ao caminharem juntos no parque, encontraram a Imperatriz austríaca. Goethe curvou-se subservientemente; Beethoven virou as costas com desdém.

Este espírito revolucionário habita grande parte da sua obra. Ele impulsionou a música para esta nova era. Reunindo o poder poético da cena literária alemã e as canções francesas da revolução, ele mudou completamente o que poderia ser a música. ” Beethoven é o amigo e contemporâneo da Revolução Francesa e a ela permaneceu fiel mesmo quando, durante a ditadura jacobina, humanitários com nervos fracos do tipo Schiller abandonaram-na, preferindo destruir tiranos no palco com a ajuda de espadas de papelão. Beethoven, aquele génio plebeu, que orgulhosamente virou as costas a imperadores, príncipes e magnatas – esse é o Beethoven que amamos pelo seu optimismo inexpugnável, sua tristeza viril, pelo pathos inspirado da sua luta e pela sua vontade de ferro que lhe permitiu agarrar o destino pela garganta” (Igor Stravinsky). Beethoven mudou a maneira como a música era composta e ouvida. Sua música não acalma, mas choca e perturba.

Penso que podemos dividir a obra musical de Beethoven em quatro períodos que correspondem aos altos e baixos economicos e sociais da sua vida. Ele atravessou a época de três grandes revoluções burguesas: a industrial na Inglaterra; a política em França; e a filosófica na Alemanha. O primeiro período da sua vida como menino e depois como jovem adulto foi durante uma ascensão revolucionária na Europa; mas também uma nova ascensão económica no desenvolvimento capitalista, levando ao culminar da Revolução Francesa com a ascensão da radical administração jacobina em 1792, quando Beethoven tinha 22 anos.

O segundo período, de 1792 a 1815, foi realmente um retrocesso para a revolução em França pois os jacobinos foram derrubados e o herói da defesa militar do governo revolucionário, Napoleão Bonaparte, tornou-se ditador. Mas isso também significou que os exercitos de Napoleão levaram as ideias e leis da Revolução Francesa a toda a Europa, derrubando as monarquias absolutas semi-feudais reacionárias da Áustria, Espanha, Itália e Prússia. Suas vitórias tornaram-no um ídolo aos olhos de Beethoven.

Foi neste período que um Beethoven em amadurecimento compôs algumas de suas maiores obras. Sua magnífica 5ª sinfonia é cheia de referências à música da revolução. Na sua composição, Beethoven comenta que a sua sinfonia exprime as palavras escritas acerca do assassinato do líder revolucionário francês Jean-Paul Marat: “Juramos, de espada na mão, morrer pela república e pelos direitos humanos”. Sua única ópera, Fidelio, conta a história de uma mulher solitária que libertou o marido, um prisioneiro político, de uma prisão espanhola (o cenário foi transferido da França por motivos políticos, motivos que incluíam seu ódio ao regime na Espanha).

Um espírito revolucionário move toda a Quinta [Sinfonia]. Os famosos compassos de abertura desta obra (ouça) são talvez a abertura mais marcante de qualquer obra musical da história. Por coincidência, eles são o equivalente musical do sinal em código Morse para “V” que significa vitória, usado para reunir o povo francês na luta contra os ocupantes alemães na 2ª Guerra Mundial. “Isto não é música; é agitação política. Está a dizer-nos: o mundo que temos não é bom. Vamos mudá-lo! Avante!” (Nikolaus Harnancourt, maestro).

Outro famoso maestro e musicólogo, John Elliot Gardener, descobriu que todos os temas principais das sinfonias de Beethoven são baseados em canções revolucionárias francesas. O “brado de alarme”, “Marchons, marchons” de “La Marseillaise”, o apelo da Revolução Francesa, ecoa nos acordes de abertura da sinfonia “Eroica”. O Quinto Concerto para Piano (“Imperador”) exala “energia militar”. As passagens da trombeta em Fidelio ecoam aquelas no Messias de Handel que ocorrem sob a linha vocal “a trombeta soará … e todos nós seremos transformados “.

Mas este grande período de energia musical foi cada vez mais prejudicado pela terrível e tormentosa doença de Beethoven, pois gradualmente foi ficando surdo, possivelmente com um tipo de meningite – a qual afetava sua audição. Isto começou quando ele tinha 28 anos e estava no auge da fama. Embora não tenha ficado completamente surdo até seus últimos anos, a consciência da sua condição deteriorada tornou-o imprevisível, deprimido e mesmo suicida.

Havia também uma deterioração na economia da Europa a partir de 1805, principiando com o bloqueio das conquistas francesas pelo poder naval britânico após a vitória da sua marinha em Trafalgar, criando uma crescente escassez de alimentos e produtos básicos. E Beethoven também estava deprimido com os acontecimentos políticos desse período. Ele havia dedicado sua 3ª sinfonia a Napoleão. Mas em 1802 a opinião de Beethoven sobre Napoleão começava a mudar. Numa carta a um amigo escrita naquele ano, escreveu indignado: “Tudo está a tentar deslizar outra vez para o velha padrão depois de Napoleão ter assinado a Concordata com o Papa”. A admiração de Beethoven finalmente se transformou em ressentimento quando em 1804 Napoleão se proclamou imperador. Quando Beethoven recebeu a notícia destes acontecimentos, ele com furiosamente riscou sua dedicatória a Napoleão na partitura da sua nova sinfonia. O manuscrito ainda existe e pode-se ver que ele atacou a página com tal violência que nela abriu um buraco. Dedicou então a sinfonia a um herói anónimo da revolução: tornou-se a sinfonia Eroica.

O terceiro período da vida musical de Beethoven correspondeu a uma época de profunda reação e a uma retração chocante nas economias europeias. Com a derrota de Napoleão em 1815 e com as antigas monarquias restauradas na Europa, Beethoven estava em desespero, compondo pouco. Por toda a parte o pensamento progressista estava em recuo: os grandes poetas românticos da Inglaterra vitoriosa, Shelley e Byron, foram forçados ao exílio. Mary Shelley escreveu Frankenstein, um romance que se desespera com a superstição fanática e com o racismo, assim como com o antagonismo em relação ao industrialismo científico descontrolado da economia capitalista em ascensão. Isto era o fim do romantismo e da revolução e agora era a hora de gente como David Ricardo, mais ou menos da mesma idade de Beethoven, que em 1817 escreveu seus Princípios de Economia Política e Tributação, a obra definitiva da teoria economica burguesa, uma ode ao capitalismo.

Os anos 1816-19 foram terríveis para os povos da Europa, não muito diferentes deste ano da COVID em 2020. A economia europeia caiu num inverno permanente, tanto literal como economicamente. O ano de 1816 é conhecido como o ‘Ano sem Verão’ (também o Ano da Pobreza) [NR] devido a graves anormalidades climáticas que fizeram com que as temperaturas na Europa caíssem para mais intenso nível de frio já registado. Houve colheitas fracassadas. Isto resultou em grande escassez de alimentos. Na Alemanha, a crise foi severa. Os preços dos alimentos aumentaram drasticamente por toda a Europa. Embora os distúrbios fossem comuns em tempos de fome, os distúrbios por comida de 1816 e 1817 registaram os mais altos níveis de violência cívica desde a Revolução Francesa. Foi a pior fome da Europa continental no século XIX.

A sufocar na atmosfera reacionária de Viena, e ansioso por qualquer mudança para melhor, Beethoven escreveu: “Enquanto os austríacos tiverem sua cerveja castanha e salsichas, eles nunca se revoltarão”.

No entanto, a década final da vida de Beethoven, a partir de 1820, viu um renascimento na economia europeia, à medida que o modo de produção capitalista se espalhava e a indústria começava a impor-se numa Alemanha e Áustria predominantemente rurais. Na verdade, houve a primeira crise economica capitalista em 1825; e mais tarde os primeiros sinais de luta proletária que finalmente em 1830 levaram à restaurada derrubada da monarquia Bourbon em França e ao Reform Act de 1832 na Inglaterra, permitindo aos homens adultos em melhor situação o direito ao voto pela primeira vez.

E em 1824 Beethoven apresentou sua obra-prima final antes de morrer, em 1827. Beethoven estava há muito tempo a considerar a ideia de uma sinfonia coral e tomou como texto seu a Ode à Alegria do poeta alemão Schiller, que ele conhecia desde 1792 e fora publicada originalmente em 1785, tirada de uma canção báquica (drinking song) de republicanos alemães. Na verdade, Schiller originalmente considerara chamar a música de Ode à Liberdade (Freiheit), mas devido à enorme pressão das forças reacionárias, ele mudou a palavra para Alegria (Freude). Estas palavras de Schiller tornaram-se a peça central da nona sinfonia (que agora é usada pela União Europeia como o seu hino). https://www.youtube.com/watch?v=Jo_-KoBiBG0

A nona sinfonia foi chamada de A Marselhesa da Humanidade. Beethoven revive o som do optimismo revolucionário. É a voz de um homem que se recusa a admitir a derrota, cuja cabeça permanece erguida na adversidade .

[NR] O “Ano sem Verão” é atribuído à erupção do vulcão Mount Tambora, na atual Indonésia, em 1815.   Estima-se que tenha ejetado mais de 160 quilómetros cúbicos de material para a atmosfera.

[*] Economista, autor de Engels 200 ;   The Long Depression ;   The Great Recession ;   Marx 200 – a review of Marx’s economics 200 years after his birth ;   World In Crisis: Marxist Perspectives on Crash & Crisis .

O original encontra-se em thenextrecession.wordpress.com/2020/12/16/beethoven-revolutionary-times/

Este artigo encontra-se em https://resistir.info

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