21.5 C
Brasília
sábado, 20 abril, 2024

AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA VOLTAM A SANGRAR

por Ángeles Maestro [*]

O capitalismo e o imperialismo –, e é indiferente que seja americano ou europeu –, não se detêm perante considerações democráticas, nem perante o massacre de populações desarmadas. Portanto, quando um povo decide recuperar (ainda que só em parte) os recursos que são soberanamente seus e as riquezas construídas com o seu esforço tem de se preparar para os defender com as suas próprias armas.

Dois processos opostos, mas com a mesma origem, estão a sacudir a convulsa América Latina: o golpe de estado na Bolívia e a revolta em massa dos povos contra a versão mais selvagem do capitalismo.

A origem é a mesma: o aprofundamento da crise geral que agita o centro do imperialismo e intensifica a sua natureza predatória, prescindindo, como sempre, das máscaras de democracia com as quais se cobre, em tempos de bonança relativa.

A vitória eleitoral de Hugo Chávez, em 1998, marcou o início de um processo durante o qual chegam aos governos de importantes países latino-americanos forças políticas que expulsam os representantes das burguesias aliadas do imperialismo e promovem, em graus variados, medidas destinadas a melhorar os níveis de vida das classes populares e nacionalizações de empresas e recursos.

Algum tempo atrás, os porta-vozes da Casa Branca, depois de constatarem as suas dificuldades económicas e militares noutras partes do mundo, anunciaram que voltavam a colocar como objetivo o seu pátio traseiro. Na apresentação do documento que resume a estratégia para o período 2017-2027 do Comando Sul (USSOUTHCOM, a sigla em inglês), intitulada “Teatro Estratégico”, o seu chefe desenvolveu a prioridade que permita aos EUA voltarem a dominar a América Latina e os seus enormes recursos naturais [1] .

A intensificação do paramilitarismo na Colômbia, já sem a contenção das FARC, as tentativas de desestabilização na Venezuela e na Nicarágua, com o evidente objetivo de desencadear um golpe de Estado, ou o golpe que parece consumado na Bolívia quando estas linhas são escritas, respondem ao mesmo programa, reeditado pela enésima vez na saqueada América Latina.

O guião e a direção têm a assinatura dos EUA, com um protagonismo cada vez maior de Israel na indústria de repressão [2] . A execução direta ficou (como sempre) a cargo das brutais oligarquias locais, prenhas de ódio e racismo em relação à classe operária e aos povos aborígenes, à imagem e semelhança dos que, em nome da cruz e do império espanhol, iniciaram o saque da América Latina.

Assinale-se que, exceto na Venezuela (especialmente após a tentativa do golpe de Estado de 2002), os diferentes governos progressistas não procederam à depuração do aparelho do Estado. À frente do poder judicial (como se pode comprovar no Paraguai ou no Brasil), do exército e da polícia permaneceram representantes das mesmas classes sociais que haviam sido temporariamente afastadas dos governos e que, sistematicamente, recorrem ao imperialismo americano para recuperar os seus privilégios.

Especialmente significativo é que, apesar da intensificação da penetração militar dos EUA na região (contabilizam-se 75 bases militares dos EUA em diferentes países [3] , a Colômbia tenha formalizado a sua entrada na OTAN, em 2018; desde 2008, a IV Frota reativou-se e são cada vez mais frequentes as manobras militares “Unitas”, com a participação de numerosos países da região [4] –, países como o Equador, de Correa, ou a Bolívia, de Evo Morales, não quebraram nos seus países a cadeia de controle do imperialismo sobre os seus exércitos e forças de segurança.

Mas a mão do imperialismo norte-americano não deve esconder os interesses europeus e, especialmente, os das multinacionais espanholas (tão imperialistas quanto as de Washington) que, muito provavelmente, estão por trás do golpe na Bolívia, como estiveram no golpe fracassado contra Chávez, em 2002.

É praticamente impossível que um movimento da envergadura do golpe na Bolívia fosse desconhecido, dada a importantíssima presença empresarial espanhola nesse país e no conjunto da América Latina.

Recorde-se que a Espanha é o segundo país investidor na região (depois dos EUA) e que esta situação, iniciada na década de 1990, está intimamente ligada à recente construção do capitalismo espanhol. Depois do desmantelamento do setor industrial nas décadas de 80 e 90 (a sua percentagem no PIB passou de 34% para 15% [5] , em resultado da entrada da Espanha na CEE (1986) e eufemisticamente chamada “reconversão industrial”, o governo do PSOE e, depois, o do PP privatizaram em tempo recorde os monopólios públicos de empresas estratégicas em hidrocarbonetos, nos telefones, nos transportes, na banca, nas comunicações, na eletricidade, etc. As novas empresas privatizadas a preço de saldo, que, rapidamente, acumulam fortunas consideráveis (através de clientela cativa e portas giratórias), organizam-se num trust, criado a pedido do governo de Felipe González e por ele dirigido. O objetivo era obter, através de pressões e subornos, a venda, também a preços irrisórios, de recursos naturais e empresas públicas dos diferentes países latino-americanos. O êxito foi enorme.

Num recente artigo intitulado O regime de transição e o capital espanhol no saque da América Latina [6] , analisei esse processo.

Alguns dos dados das privatizações na Bolívia são os seguintes:
• A Repsol comprou o IPBF, em 1995, e controla até hoje 45% das reservas de gás e 39% das reservas de petróleo.
• A Rede Elétrica Espanhola (privatizada apesar de um tão patriótico nome) comprou a empresa pública de distribuição de eletricidade boliviana ENDE, em 1995.
• Desde 1997, o BBVA controla dois fundos de pensões privatizados, que representam 53% do total.
• Outras empresas com importantes negócios no país são a Iberdrola, a União Espanhola de Explosivos, a Editorial Santillana, a Abertis, etc.

A Espanha é o segundo maior investidor na Bolívia, apenas atrás dos EUA. Muitas destas multinacionais espanholas e de outros países europeus, sobretudo da Alemanha, estavam em conflito com o governo de Evo Morales, que pretendia assumir o seu controle, mesmo que parcialmente.

Algumas semanas antes do início do golpe, o governo de Evo Morales cancelava um projeto de associação para a exploração de lítio entre a empresa pública Jazidas de Lítio e a multinacional alemã ACI Systems [7] . Um ano antes, o governo de La Paz adjudicava a uma empresa chinesa a exploração de uma exploração de lítio, descartando os projetos apresentados por empresas espanholas: a Asociación Accidental TSK SEP Electrónica Electricidad , o grupo empresarial presidido pelo abastado empresário Sabino García, a INTECSA Industrial (filial da ACS , de Florentino Pérez) e o Grupo Asociación Accidental AFK ACI [8] .

O golpe da Bolívia seguiu o mesmo guião de outros golpes contra governos progressistas na América Latina, a começar pelo mais emblemático e terrível, de 1973, contra o Chile da Unidade Popular. A Igreja Católica e outras seitas religiosas tiveram uma participação destacada, como em outros derrubamentos de governos populares na região. “A Bíblia voltará ao palácio do governo” era um lema dos golpistas bolivianos.

Em diferentes publicações [9] documentou-se o papel das ONG no financiamento do golpe, com o pretexto da ajuda humanitária, e a sua penetração nos média. Sabe-se, desde há algum tempo, que a USAID desenvolvia projetos de “autonomia regional” , isto é, projetos desestabilizadores das oligarquias locais no leste da Bolívia, nas áreas mais ricas. Os incêndios florestais de agosto passado, na véspera das eleições, tinham o objetivo de mostrar Evo Morales como um agressor do meio ambiente. Algo assim como a fabricação do “eco-terrorista” Saddam Hussein e o corvo marinho alagado em petróleo, que serviu para justificar os bombardeamentos contra o Iraque, em 1991. O El País aponta claramente o objetivo: «Ao longo do seu governo, Morales sustentou que, agora, em nenhum campo o país precisa de “pedir esmolas” às potências mundiais. Este discurso dificulta a aprovação de uma declaração de “desastre nacional”, que, de acordo com a legislação nacional, implicaria aceitar que o Estado não tem capacidade para enfrentar a tragédia. Dezenas de instituições ambientalistas civis, incluindo a Igreja Católica, assim como manifestações espontâneas nas três principais cidades bolivianas (La Paz, Santa Cruz e Cochabamba) exigiram que ele fizesse essa declaração» [10] .

Alguns preparam o cenário do golpe, enquanto outros, como Pedro Sánchez e a UE, fiéis às multinacionais que representam e entrincheirados na equidistância “contra a violência” [11] justificam os golpistas. Inclusivamente, compartilham o escárnio do decreto do governo golpista, que dá às forças repressivas licença para matar e “que prevê a isenção de responsabilidade criminal, sob certas condições, para o pessoal das Forças Armadas que participe nas operações para o restabelecimento da ordem interna”. O cúmulo da cumplicidade no crime é o envio de instrutores da polícia espanhola para treinar os Carabineiros do Chile.

Em situações limite como esta caem as máscaras, não há terceiras vias.

Mas há algo a aprender, porque o guião repete-se e repete-se e não é mais possível continuar a alegar ignorância.

Atilio Borón escrevia, no auge da resistência desarmada do povo boliviano e após a renúncia de Evo Morales, o seguinte: «Entram em cena as “forças de segurança”. Neste caso, estamos a falar de instituições controladas por várias agências, militares e civis, do governo dos Estados Unidos. São elas que as treinam, as armam, fazem exercícios conjuntos e as educam politicamente. Tive ocasião de o comprovar quando, a convite de Evo, inaugurei um curso sobre “Anti-imperialismo” para oficiais superiores das três armas. Nessa ocasião, fiquei abalado com o grau de penetração dos mais reacionários slogans norte-americanos da época da Guerra Fria e pela indissimulada irritação causada pelo facto de um indígena ser presidente do seu país. O que essas “forças de segurança” fizeram foi sair de cena e deixar o campo livre para a descontrolada atuação das hordas fascistas – como as que atuaram na Ucrânia, na Líbia, no Iraque e na Síria para derrubar, ou tentar fazê-lo, neste último caso, líderes incómodos para o império – e, assim, intimidar a população, a militância e os próprios membros do governo. Ou seja, uma nova figura sociopolítica: golpismo militar “por omissão”, permitindo que os bandos reacionários, recrutados e financiados pela direita, imponham a sua lei. Uma vez que reinava o terror e perante a não defesa do governo, o desenlace era inevitável» [12] .

Os povos do Estado espanhol têm uma responsabilidade especial para com os povos latino-americanos e as razões são esmagadoras:
• É mais do que provável que os interesses de empresas espanholas sejam cúmplices do golpe na Bolívia.
• Enfrentamos os mesmos capitalistas exploradores que, sob uma ou outra sigla da extrema direita, instigam os setores mais desesperados do povo ao confronto com os imigrantes. Ninguém fala de que estes trabalhadores fogem dali, do saque dos seus países pelas multinacionais daqui. O objetivo é dividir-nos, impedir que olhemos para cima e vejamos as mãos dos mesmos poderosos movendo as alavancas da tragédia.

É imprescindível que a classe operária e o povo, como fazem os venezuelanos e os cubanos, aprendam com o sangue derramado os ensinamentos que a história insistentemente nos mostra. O capitalismo e o imperialismo –, e é indiferente que seja americano ou europeu –, não se detêm perante considerações democráticas, nem perante o massacre de populações desarmadas. Portanto, quando um povo decide recuperar (ainda que só em parte) os recursos que são soberanamente seus e as riquezas construídas com o seu esforço tem de se preparar para os defender com as suas próprias armas.

Vamos manifestar-nos em Madrid no sábado, 21 de dezembro, às 18h, desde Glorieta de Atocha até ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, contra o golpismo imperialista e em solidariedade com a luta dos povos latino-americanos.

Notas
[1] Navarro Santiago (2018), A nova estratégia do Comando Sul dos Estados Unidos na América Latina.
[2] Neste artigo, “Israel e a sua longa história na América Latina”, Yadira Cruz Valera analisa a implicação de Israel nos diversos golpes de Estado na América Latina www.prensa-latina.cu/… . Aqui, faz-se referência às múltiplas denúncias de utilização de armamento e técnica militar israelitas na repressão das mobilizações populares contra Piñera, no Chile piensachile.com/2019/11/chile-e-israel-una-alianza-asesina/
[3] www.institutodeestrategia.com/…
[4] Os países latino-americanos participantes nas manobras militares Unitas 2018, juntamente com os EUA, foram a Argentina, o Brasil, a Costa Rica, o Equador, as Honduras, o México, o Panamá, o Reino Unido, a República Dominicana.
[5] www.asturbulla.org/…
[6] Maestro Martín, Ángeles (2018) “O Regime da Transição e o capital espanhol no saque da América Latina”. redroja.net/index.php/…
[7] www.pv-magazine-latam.com/…
[8] www.finanzas.com/…
[9] www.tercerainformacion.es/…
[10] elpais.com/internacional/2019/08/27/america/1566924897_335190.html
[11] www.tercerainformacion.es/…
[12] resistir.info/bolivia/boron_10nov19.html

[*] Médica, dirigente da Red Roja espanhola.

O original encontra-se em blogs.publico.es/…
e a tradução de MLS em pelosocialismo.blogs.sapo.pt/as-veias-da-america-latina-voltam-a-83451

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

21/Dez/19

 

ÚLTIMAS NOTÍCIAS