Helena Iono, correspondente em Buenos Aires
No início do ano, foi lançado um filme seriado, via Netflix, focalizando o atentado ao prédio da AMIA [Associação Mutual (Beneficiente) Israelita Argentina], desde a explosão, em julho de 1994, durante o governo Menem (em que morreram 85 e foram feridas 300 pessoas), até janeiro de 2015, no governo de Cristina Kirchner, quando morreu o promotor Alberto Nisman, responsável pelas investigações da causa. O documentário, intitulado “O promotor, a presidenta e o espião”, tem sido detonador de reações midiáticas e de um amplo debate no país.
O atentado à AMIA foi um fato que provocou enorme comoção e preocupação na Argentina, com consequências políticas internas e externas. A causa judicial permaneceu estagnada por vários anos, e foi retomada somente nos governos de Néstor/Cristina Kirchner. Na busca pela verdade e o respeito aos direitos humanos dos familiares e das vítimas, estes governos criaram a Procuradoria especial pela causa AMIA, chamada UFI-AMIA. Desde então, o promotor Alberto Nisman foi encarregado pela causa. Posteriormente, este se transformou num herói midiático, num agente do chamado partido judicial , dos poderes hegemônicos (Clarin, La Nación e grupo Magnetto) e dos corruptos serviços de inteligência argentinos ( SIDE e depois AFI), historicamente tutelados pelos EUA e Israel. Nisman, baseado em informações do rocambolesco agente Jaime Stiuso da ex-SIDE (posteriormente afastado por Cristina Kirchner de suas funções), arma a acusação sobre supostos responsáveis do atentado à AMIA contra cidadãos iranianos e membros do governo do Irã, incluindo o Hezbolá do Líbano
Em 2013, Cristina Kirchner e o seu ministro das Relações Exteriores, Héctor Timerman (falecido recentemente, depois de impiedoso linchamento midiático), firmam um memorando de entendimento Argentina-Irã (gestão do ex-presidente Ahmadinejad), depois aprovado pelo Parlamento argentino, para que se pudessem tomar declarações dos imputados iranianos no seu país. Diante disso, Nisman, sempre sob os ditames dos EUA, formulou uma denúncia contra a presidenta Cristina Kirchner e o chanceler Timerman por encobrimento e proteção dos iranianos, acusando aqueles governantes argentinos de “traidores da pátria“.
Nisman, cuja imagem foi construída como o herói justiceiro, foi peça-chave do esquema judicial-midiático do lawfare, a partir da condução do caso AMIA. Somava-se à conspiração contra os governos progressistas que combateram o FMI e os Fundos abutres norte-americanos, prezando pela soberania nacional e latino-americana, superando o período anterior do neoliberalismo radical de Menem. O promotor foi encontrado morto em seu apartamento, em Buenos Aires, em janeiro de 2015. Sua morte tem sido atribuída a um suicídio (pela maioria dos políticos kirchneristas), e a um “assassinato promovido pelo kirchnerismo” (pelo macrismo e seus afins midiáticos). Ela passou a compor uma outra manipulação no esquema de lawfare, explorando o atentado AMIA, a fim de acusar a atual vice-presidenta, Cristina Kirchner, como “assassina de Nisman”. Não havendo nenhuma evidência de crime (segundo a investigação da Promotora Viviana Fein), a hipótese de suicídio de Nisman, se apoia na forte tensão vivida pelo promotor por ter de sustentar a farsa, sem provas, no dia seguinte, diante do Parlamento, em cadeia nacional de TV, como estava programado (Veja opinião do jornalista Raul Kollmann). Pablo Duggan, autor do livro ¿Quem matou Nisman? também argumenta sobre a hipótese do suicídio. No momento não existe nenhuma conclusão judicial de assassinato de Nisman, por falta total de provas. O fato é que a mídia hegemônica usou a morte de Nisman como fator de campanha eleitoral para assegurar a vitória de Macri nas presidenciais de novembro de 2015. Como disse o jornalista Horácio Verbitsky: “Nisman foi útil vivo para atacá-la e mais útil morto”.
O documentário, em 4 capítulos, tem gerado muita polêmica na Argentina. Sendo um filme, produzido há três anos e só agora, providencialmente, lançado pela Netflix, mostra várias evidências de intervenção de agentes do serviço secreto norte-americano, depoimentos significativos entre duas posições contrastantes, sobre uma causa, na realidade, inconclusa. Chama a atenção o fato de que chegue ao público no cenário dos primeiros dias do novo governo progressista de Alberto Fernández, empenhado em esclarecer o caso ao mesmo tempo num contexto mundial de alta tensão e de ataque dos EUA à República Islâmica do Irã, com a assassinato do General Quasem Soleimani. Há opiniões como a do jornalista-escritor Horácio Verbitsky que suspeita da divulgação deste documentário num momento de decisões de Alberto Fernández sobre o pagamento da dívida externa, do FMI e as exigências dos Fundos Abutres (golpeados pelo governo de Cristina e favorecidos por Macri) tentando reavivar sua cobrança, via extorsão midiática, ao recordar a morte de Nisman. Verbitsky revela a conexão de Nisman com interesses de um setor norte-americano vinculado aos Fundos Abutres, apoiados também por Israel. É certo que a difusão do documentário serve aos opositores para reavivar nos argentinos a pecha de Cristina Kirchner como “protetora de terroristas iranianos”, justo no momento em que Trump e a imprensa mundial justificam o assassinato de Soleimani como um “combate ao terrorismo”. A veiculação do filme “Mecanismo” produzido para glorificar Sergio Moro, no Brasil, justificar o impeachment contra Dilma Rousseff e a prisão de Lula, serve de alerta e observação crítica à Netflix, pois parece seguir a mesma linha do documentário argentino.
De toda forma, trata-se aqui de analisar não tanto o filme, mas os efeitos políticos de sua transmissão. É interessante notar que a transmissão do documentário coloca em evidência fatos relevantes e opiniões importantes do mundo político argentino, oferecendo elementos para um debate com o público sobre o lawfare, suas origens e consequências devastadoras contra a democracia. O caso AMIA, não resolvido, tem o peso da guerra mundial permanente dentro da Argentina. No contexto do novo governo de Alberto Fernández/Cristina Kirchner, saltam fora do barco vários agentes comprometidos com Macri, “Cambiemos” e o lawfare.
Um ex-espião, Allan Bogado, citado por Nisman, na acusação contra Cristina, acaba de revelar na Rádio 10 que o governo Macri fez o roteiro da sua declaração para prejudicar a Presidenta. Ele afirmou que o promotor Nisman foi “usado” pelo agente Jaime Stiuso para vingar-se de Cristina Kirchner; “lhe mentiram e o conduziram ao suicídio” (Veja na Página12). Outro que pula fora do barco é o pseudo-agente Marcelo D’Alessio, implicado e preso há um ano por participar de uma associação ilícita na invenção da famosa causa dos “Cadernos”, do promotor Carlos Stornelli, que acusou, com provas forjadas, empresários e políticos ligados ao governo kirchnerista. D’Alessio declarou-se “arrependido” e disse: “Se eu disser o que eu sei, caem as quatro causas contra o kirchnersmo e a ex-presidenta”. Dadas as circunstâncias (e o personagem envolvido), o juiz Alejo Ramos Padilla (que também processou Stornelli) não aceita seu status de “arrependido” do ponto de vista jurídico.
É chegada a hora em que Alberto Fernández deve preparar-se para limpar a AFI (Agência Federal de Informação) como anunciado no seu discurso inaugural de governo: “Nunca mais uma justiça contaminada por serviços de inteligência, operadores judiciais, procedimentos obscuros e linchamentos midiáticos”. “Nunca mais ao segredo, aos gastos reservados, ao lawfare, à política opaca que distribui dádivas ou ameaças, ou à que compra a opinião de jornalistas”. Macri durante os quatro anos empregou 60% dos agentes da AFI, dos quais 82% com contrato permanente. Veja o que diz Victor Hugo Moráles. Mas, o novo governo da Frente de Todos já atua severamente na recuperação da Justiça, para cortar esta intromissão da AFI na política e na Justiça. A eleição de Cristina Caamaño como interventora por 6 meses na AFI indica ser o primeiro passo. Alberto Fernández anuncia cumprir a promessa: os fundos reservados da AFI deixarão de ser secretos e serão destinados ao Plano Nacional contra a Fome. “Nunca mais aos sótãos da democracia”!
Nessa linha, surge a recente decisão do governo, através da nova Ministra de Segurança, Sabrina Frederic de revisar o informe pericial paralelo da polícia de Gendarmeria (militar) sobre a morte de Nisman, sustentado pela ex-Ministra do governo Macri, Patricia Bullrich, em meados de 2017, com o único fim de anunciar que Nisman foi assassinado. Essa perícia falsa, contrariando o da Corte (realizado pela Promotora Fein), deu-se quase 3 anos após, sem o corpo, baseado em fotos e hematomas inexistentes, e na ausência total de médicos legais e ditos gendarmes no local da morte. Por isso, essa perícia jamais se submeteu ao julgamento para não contrastar com a verdadeira perícia da Corte. Com razão, Alberto anunciará até fins de janeiro uma Reforma Judicial para acabar com o que ocorreu na era Macri, onde se montavam “causas para perseguir opositores e sustentadas pelos meios de comunicação”. Reiterou que “não necessitamos de juízes amigos, mas dignos.”
A persistência do lawfare na Argentina, alimentando-se do caso AMIA/Nisman, tem correlação com o contexto de guerra mundial entre o capital financeiro internacional dos EUA contra o bloco China/Rússia. Diga-se de passagem, o poder econômico-militar da China e Rússia revela-se insuperável devido à planificação socialista e à supremacia estatal. O Irã demonizado, é um alvo central do império norte-americano por estar na via de acesso da poderosa Rota da Seda (a partir da Eurásia) ao mercado europeu. O contexto de colapso mundial do capitalismo é desfavorável aos EUA. Putin, em plena ameaça de guerra dos EUA contra o Irã, assina o acordo com a Turquia pelo gasoduto rumo à Europa. O parlamento do Iraque exige a retirada das forças norte-americanas do país. Um drama para os EUA! Encontra-se isolado pelos países “terroristas”! E os grandes aliados europeus, França (Macron sob pressão social) e Alemanha (Merkel conversando com Putin), vacilam em comprar a guerra contra o Irã. Correr ao outro lado, na América Latina, é um risco: o fogo arde contra o neo-liberalismo; a volta de Cristina Kirchner com Alberto Fernández, após a chegada de Lopez Obrador no México, o fracasso de Guaidó na Venezuela, agitam massivamente o Chile, Colômbia e Equador. Na Argentina, o novo governo deu um sinal ao descredenciar a autodenominada embaixadora de Guaidó, mantém Evo Moráles como refugiado político no país, e vai à CELAC no México. No Brasil, a posição subalterna de Bolsonaro a Trump, provoca dissidências públicas no vice-presidente e na cúpula militar do seu governo. (*)
Um recrudescimento da guerra dos EUA contra o Irã-Iraque, pode desatar o fim da hegemonia norte-americana na América Latina e reativar os movimentos contra a Otan na Europa e nos EUA. Num contexto de guerra, o efeito psicossocial das fakenews poderá ter um limite e a inteligência humana superará a narrativa midiática contra os governos progressistas e revolucionários (denominados de “império do mal”) e o chamado “terrorismo internacional”. Não há como ocultar à luz da história quem foi o único gendarme da humanidade. Basta ver as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, as guerras contra o Vietnã, Iraque, Palestina, Iugoslávia, Líbia e os genocídios na América Latina. Os 7 milhões no funeral do líder iraniano Soleimani revelam que têm memória, defenderão a soberania nacional e renovarão os impulsos da revolução de Khomeini. A memória dos povos não se apaga. Porém é certo que ela não se reativa, nem se reorganiza por si só. Requer-se recriar o pensamento crítico, a consciência, os instrumentos políticos, a mídia pública e independente. Alberto e Cristina iniciarão dura batalha ao lawfare, começando pelo poder Judiciário. E já já deverá chegar a vez do Midiático.
(*) Sobre o tema da guerra ao Irã, sugiro ver a excelente entrevista-aula de Pepe Escobar ao jornalista Leonardo Attuch na TV Brasil247.