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sábado, 20 abril, 2024

Apesar de a mídia brasileira ignorar, Argentina de Fernández e Cristina passa a ser vital na luta por uma América Latina inclusiva e soberana

MÍDIA BRASILEIRA TENTA IGNORAR VOLTA DO PERONISMO À ARGENTINA

por Ângela Carrato, especial para o Viomundo

Se a mídia corporativa brasileira tivesse um mínimo de compromisso com a veracidade dos fatos, hoje seria um dia importante para a sua autocrítica.

É que, há exatos quatro anos, quando o neoliberal, Maurício Macri, tomou posse na presidência da Argentina, ela foi unânime ao afirmar que finalmente o país vizinho “encontrava o caminho para voltar a crescer” e deixava de lado os tempos de “radicalização política”.

Mas ao contrário da autocrítica, a mídia corporativa brasileira insiste em continuar desinformando.

Só isso explica como a posse hoje (10/12) de Alberto Fernández como presidente da Argentina, tendo Cristina Kirchner como vice, após derrotar Macri no primeiro turno, esteja passando quase em branco.

Se dependesse do Grupo Globo, dos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, o ideal seria poder ignorar que na Argentina venceu a oposição ao neoliberalismo.

Omitir essa informação é mais uma tentativa de esconder a vergonhosa cobertura que fizeram sobre o país vizinho nos últimos quatro anos.

Mas o que essa mídia está fazendo agora é ainda pior.

ESTUPIDEZ POLÍTICA

A decisão de Bolsonaro de não comparecer à posse de Fernández-Cristina consiste em uma grosseria sem paralelos na história da antes competente e mundialmente respeitada diplomacia brasileira.

Grosseria acompanhada de estupidez política, uma vez que a Argentina é o terceiro maior parceiro comercial e principal destino para as exportações de automóveis brasileiros.

Vale dizer: se não exportar para a Argentina, para onde as montadoras brasileiras venderão seus produtos?

Talvez esteja aí a explicação para Bolsonaro, na última hora, ter atribuído ao seu vice, Hamilton Mourão, a tarefa de comparecer à posse, depois de proibir que qualquer de seus ministros estivesse presente.

Possivelmente, algum empresário brasileiro o tenha alertado para o fato de que os destinos econômicos do Brasil e da Argentina estão mais interligados do que imagina, porque na mídia não se viu ou ouviu um pio sobre o assunto.

Bolsonaro defendia a reeleição de Macri e tentou interferir na sucessão presidencial argentina, quando, entre outras idiotices, autorizou o ministro da Economia, Paulo Guedes, num encontro do Mercosul, a  anunciar a possibilidade de uma moeda comum aos dois países.

Para além do ridículo, pois a criação de uma moeda comum não é algo que possa ser feito da noite para o dia, o que Bolsonaro queria era atrelar o empresariado argentino ao seu projeto político e, por via de consequência, ao do amigo Macri.

Fracassou em ambos os casos e ainda teve que engolir a visita que Fernández fez ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, um amigo de longa data, na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, acompanhada da declaração de que Lula era um preso político.

Irritado, Bolsonaro se recusou a cumprimentar o candidato da Frente de Todos pela vitória e a mídia corporativa brasileira novamente não viu nada de errado nisso.

O destaque que essa mídia passa-pano para Bolsonaro está dando à presença de Mourão na posse é, também, uma tentativa de esconder a terrível herança que o neoliberalismo na versão macrista deixa na Argentina.

Herança que pode se tornar o legado do próprio Bolsonaro, a julgar pelo que está acontecendo no Brasil.

Ao invés de enfatizar esse aspecto, que seria o papel de um efetivo jornalismo, o que faz a mídia corporativa brasileira?

Tenta ocultar a gravíssima crise socioecômica produzida pelo governo Macri ao destacar o seu “feito”: o único presidente não peronista a concluir o mandato desde 1946, quando Juan Domingo Perón entrou na cena política.

Está concluindo o mandato, é bom lembrar, com 69% de reprovação popular e um país em ruínas.

62 PESOS POR DÓLAR

A Frente de Todos é composta por integrantes do Partido Justicianista, herdeiro direto do Peronismo, que tem na justiça social e na defesa da soberania nacional seus principais compromissos.

O peronismo está para a Argentina como o petismo, temperado pelo varguismo, está para o Brasil.

Já o macrismo, mesmo constituindo-se em um projeto neoliberal, guarda distância da ditadura e do fascismo com que flerta Bolsonaro.

Na Argentina, todos os militares que cometeram atrocidades no período ditatorial (1976-1983) foram condenados e cumpriram, uns ainda cumprem, penas de prisão.  Os governos autoritários deixaram marcas no país.

Mesmo após a ditadura, poucos presidentes conseguiram concluir seus mandatos, por causa da grande instabilidade econômica e social. Em 2001, por exemplo, a Argentina teve cinco presidentes.

Mas se os macristas não se sentem chocados diante dos atuais índices de pobreza de seu país, para os peronistas, alterá-los – e com rapidez – é ponto de honra.

A título de exemplo, basta lembrar que o presidente do Cambiemos deixa a Argentina com 40% da população vivendo em situação de pobreza, inflação em 55%, desemprego acima dos 10% e o PIB tendo um decréscimo estimado para esse ano de 2,9%.

Uma das maiores destruições de que se tem notícia em se tratando de um país que não está em guerra.

O tamanho do estrago produzido pelas políticas neoliberais pode ser avaliado ainda pelo fato de que, em 2015, quando Cristina Kirchner concluiu o seu segundo mandato, eram necessários 14 pesos para se comprar um dólar. Agora são necessários 62 pesos.

PERDEU ATÉ NO BOCA

Em pronunciamento de 40 minutos, através de cadeia de rádio e televisão, no último dia 5, Macri tentou fazer um balanço positivo de seu governo, mas não convenceu sequer aos correligionários do Cambiemos.

Seu poder político, que começou a tomar corpo em 1995, quando assumiu a direção do time de futebol Boca Juniors, de lá saltando para o governo da província de Buenos Aires, o mais importante do país e, na sequência para a Casa Rosada, sofreu uma duríssima derrota.

O macrismo perdeu não só as eleições para a presidência da República, mas também na província de Buenos Aires e até mesmo para a direção do popular “Boca”.

Como isso foi possível em meio à onda neoliberal que varreu parte da América Latina?

A política argentina tem suas peculiaridades. A principal consiste no fato de o país ter uma população altamente escolarizada e politizada, o que a torna mais imune às fake news e às seitas neopentecostais que proliferam nos países vizinhos.

Fake news e seitas que são parte do kit de guerra híbrida que os Estados Unidos movem contra governos, líderes políticos e partidos que considera adversários aos seus interesses na região.

A politização da sociedade argentina teve início em 1946, com a chegada de Perón ao poder, um político que governou por três mandatos – 1946 a 1952, de 1952 a 1955 e de 1973 a 1974 – e teve a capacidade de, já, em meados dos anos 1940, declarar uma “terceira via” entre as potências da Guerra Fria, mantendo boas relações diplomáticas com os Estados Unidos e a União Soviética.

No campo trabalhista, assim como Getúlio Vargas, concedeu vários benefícios aos trabalhadores, a exemplo do 13º salário, folgas semanais, redução da jornada de trabalho, aposentadoria, férias remuneradas, seguro médico e cobertura para os acidentes de trabalho.

Nesse contexto, os salários aumentaram e o desemprego diminuiu. Com o aumento no salário houve um grande aumento no consumo.

Entre 1945 e 1948, a economia cresceu a um recorde de 8,5% ao ano, o que fez da Argentina sexta potência mundial.

Outro aspecto importante é que para os argentinos, o rádio e a própria televisão estão intimamente ligados aos bons tempos do peronismo.

Não só o rádio teve com Perón seus anos dourados, como a televisão foi inaugurada no final de seu primeiro governo.

Talvez isso explique o fato de os argentinos identificarem a radiodifusão não como algo que pertença à iniciativa privada, como no Brasil, mas a vejam como um serviço público, intimamente ligado ao direito à informação.

Não é por acaso que a Argentina se constitui no exemplo de maior sucesso em se tratando de regulação tardia dos meios de comunicação.

Além da proibição da propriedade cruzada (uma empresa não pode ter mais de um veículo de comunicação em uma mesma cidade), lá o espectro eletromagnético está dividido em três partes iguais: comercial, comunitária-educativa e estatal.

Uma das razões do ódio que a direita argentina nutre contra Cristina Kirchner tem a ver exatamente com o fato de ter sido em seu governo que a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, popularmente conhecida como Ley de Medios, foi aprovada.

Essa lei mostrou-se fundamental para que o contraditório passasse a ter lugar.

Enquanto os canais do Grupo Clarín, a Globo de lá, mentiam para a população sobre Cristina e os peronistas, outros canais, como o 7, a TV Pública argentina, davam espaço para reportagens e debates altamente esclarecedores sobre o que se passava na política e na economia.

Some-se a isso uma ampla, diversificada e permanente cobertura sobre a América Latina e o mundo.

DESENVOLVIMENTO INCLUSIVO

Engana-se, no entanto, quem acredita que a vida será tranquila para o novo governo argentino.

Os problemas começam com o fato de que as prioridades da tarimbada dupla Fernández-Cristina são opostas às de Bolsonaro, que funciona como uma espécie de guardião dos interesses do Tio Sam ao sul do Equador.

Na Argentina, trata-se agora de retomar as políticas públicas envolvendo o combate à pobreza, com ênfase no desenvolvimento econômico inclusivo.

Esses, aliás, são os principais desafios do jovem novo ministro da Economia, Martín Guzmán (37 anos) amigo e colaborador do prêmio Nobel de Economia de 2001, o estadunidense Joseph Stiglitz.

Guzmán é pesquisador associado da divisão de economia da Columbia Business School e seu trabalho se concentra em macroeconomia e crises de dívida soberana.

Seu grande desafio, a partir de agora, será a reestruturação da dívida de cerca de 100 bilhões de dólares com credores internacionais e com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

Além de canal direto com um dos mais respeitados economistas da atualidade e ácido crítico das políticas neoliberais, Guzmán tem também interlocução com destacados integrantes do Partido Democrata dos Estados Unidos.

O que não é pouca coisa, especialmente quando se leva em conta que em 2020 haverá eleição presidencial para a Casa Branca e que derrotar Trump é prioridade para os democratas.

A Argentina passará a contar, no governo Fernández, com 20 ministros e três secretários.

Muitos deles trabalharam nos governos Kirchner (Fernández foi chefe de gabinete de Néstor Kirchner) ou participaram de organizações políticas, como a La Cámpora, de orientação peronista e kirchnerista.

Um dos novos ministérios é o destinado às Mulheres, Gêneros e Diversidade, promessa de campanha, além da recriação de duas Pastas, a do Desenvolvimento Social e a do Turismo e Esportes.

Já o ministério da Segurança Pública será ocupado por Sabina Frederic. Ao anunciá-la, Fernández defendeu uma abordagem que respeite os direitos humanos, lembrando que “a segurança se resolve com igualdade, não com balas”.

O novo governo dará igualmente ênfase à Cultura e às Relações Exteriores, tendo escolhido como chanceler Felipe Solá e como novo embaixador no Brasil, o ex-vice-presidente Daniel Scioli, ambos experientes e tarimbados políticos peronistas.

DE EXPECTADORES A PROTAGONISTAS

No lugar do terraplanismo e da subserviência aos Estados Unidos, que marcam a atual  política externa brasileira, o argentino Adolfo Pérez Esquivel, ativista de direitos humanos e prêmio Nobel da Paz de 1980, lembra que a crise não se restringe  ao seu país.

Ela envolve todo o continente sul-americano e é marcada pela “violência, fome e marginalidade”.

Indo além, Esquivel denuncia “as democracias que são mais formais que reais”, frisando que “mudar isso é essencial para que os povos deixem de ser expectadores e passem a ser protagonistas”.

Esquivel não cita diretamente, mas é óbvio que ele se referia à Argentina de Macri e também ao Brasil de Bolsonaro.

É igualmente claro que ele se preocupa com a situação na Bolívia, no Chile, no Equador e também na Colômbia, onde movimentos sociais diversos passaram, por razões e lógicas próprias, a enfrentar, nas ruas, governos neoliberais.

Em outras palavras, se a história da América Latina pode ser descrita através de ondas, a atual parece estar colocando em xeque o neoliberalismo que passou a dominar a região nos últimos anos.

Nesse contexto, o México, desde a vitória de Lopes Obrador em 2018 e agora a Argentina, com a dupla Fernández-Cristina, assumem papel protagonista.

Ao lado da Venezuela de Maduro, esses países passarão a desempenhar papel essencial, por exemplo, para o futuro da Bolívia.

Como se sabe, Bolsonaro teve participação direta na frustrada tentativa de golpe contra Maduro no início desse ano. Tentativa que contou com o apoio de Macri.

Agora, o segundo maior país da América do Sul não participará mais desse tipo de articulação.

Da mesma forma, a Argentina de Fernández-Cristina será, em todos os organismos de que participa, um freio significativo para a atuação golpista de Bolsonaro na Bolívia e onde mais se fizer necessário.

Denúncias do ex-presidente Evo Morales e de seu vice, Álvaro Garcia Linera, dão conta da atuação direta de Bolsonaro e da direita brasileira (seitas neopentecostais, militares e empresários) na derrubada do governo do Movimento ao Socialismo (MAS) e da transformação, há mais de um mês, do que era o país que mais crescia na América do Sul em cenário de guerra civil.

Até o momento, 32 pessoas foram mortas  na Bolívia. O total de feridos é de 832 e o de detidos ultrapassa 1.500 pessoas.

Se Fernández já estivesse no poder, dificilmente os golpistas bolivianos teriam atuado com a desenvoltura que demonstraram.

Para quem não se lembra, foi por interferência direta de Fernández que Macri abriu o espaço aéreo argentino para que Morales pudesse voar para o México, onde obteve asilo político.

Evo, por sua vez, tem demonstrado interesse em trocar o México pela Argentina, para ficar mais próximo de seu país.

Os governos neoliberais do Chile, do Equador e do Peru, que poderiam, junto com Bolsonaro, apoiar os golpistas na Bolívia, estão enfrentando problemas complicados demais para terem tempo para olhar no entorno.

No Chile, onde o governo de Sebástian Piñera era apresentado como vitrine da América Latina neoliberal, a população está nas ruas há mais de dois meses e, em que pese a violência da repressão policial (os feridos já somam 2.767 homens, 397 mulheres e 254 crianças e adolescentes), nada indica que aceitem abrir mão de suas reivindicações.

Enquanto isso, os índices de aprovação de Piñera desabam, estando agora em menos de 4%.

Situação semelhante se repete com Lênin Moreno, no Equador, eleito com o apoio do ex-presidente Rafael Correa que sempre teve postura nacionalista, oposta ao Banco Mundial e ao FMI, e a favor de uma maior participação do Estado na exploração do petróleo.

Depois de trair Correa, Moreno tornou-se alvo da indignação popular ao anunciar o cancelamento de subsídios a combustíveis e outras medidas de austeridade econômica.

O saldo da repressão no Equador até agora é de 11 mortos, 1.507 feridos e 1.382 presos, segundo a Organização das Nações Unidas.

Além da repressão policial, Lênin Moreno tem se beneficiado da perseguição jurídica a seus opositores, através do lawfare, o mesmo utilizado por parte da justiça argentina contra a ex-presidente e agora vice, Cristina Kirchner, e contra o ex-presidente Lula.

Até na Colômbia, considerada desde sempre aliada incondicional dos Estados Unidos, o enfrentamento à política neoliberal tomou conta das ruas e o presidente Iván Duque sabe que a repressão pura e simples não reverterá a situação.

OPORTUNIDADE PARA A AMÉRICA LATINA

Se o “deep state” (como é denominado o conglomerado empresarial-militar) dos Estados Unidos apoiou o golpe contra Dilma Rousseff e, com operações como a Lava Jato, esteve à frente da prisão do ex-presidente Lula, da perseguição à Cristina Kirchner e do próprio suicídio do ex-presidente do Peru, Alan Garcia, o quadro político agora é bem diferente, seja nesses países, seja nos Estados Unidos.

É pouco provável que o impeachment de Trump se concretize.

Mas é certo, por outro lado, que os depoimentos em processo na Câmara dos Deputados em muito desgastarão a sua liderança.

A população estadunidense tem acompanhado, pelas mídia, as denúncias, cada dia mais escabrosas, envolvendo as tentativas por parte de Trump para afastar o principal concorrente democrata da disputa. E mesmo que o Senado, onde os republicanos têm maioria, derrote o impeachment, a população pode dar o troco nas urnas.

É interessante lembrar que as atuais denúncias contra Trump remetem a outro presidente republicano, Richard Nixon.

Como Nixon, Trump também tentou complicar a vida dos adversários. Nixon acabou renunciando em 1974, para não ser alvo de impeachment, no que passou para a história como o célebre Caso Watergate.

Some-se a isso que em 1974 o mundo ainda vivia o auge da Guerra Fria e a China e a Rússia ainda não tinham, como agora, participação decisiva na economia da América Latina.

Seja coimo for, Trump e sua turma estarão, no próximo ano, ocupados demais com seus próprios problemas para dedicarem muito tempo à região.

O que não deixa de ser uma boa oportunidade para que a América Latina recupere seu caminho.

Nesse processo, apesar da mídia brasileira sonegar essas informações do público, a Argentina de Fernández e de Cristina passa a desempenhar papel fundamental na luta por uma América Latina inclusiva e soberana. Papel que, no passado recente, coube ao Brasil de Lula.

Quanto à mídia corporativa brasileira, ela continuará, como tem feito, trabalhando contra o Brasil, contra os brasileiros e reafirmando a sua histórica subserviência aos interesses do Tio Sam.

*Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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