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sexta-feira, 19 abril, 2024

A sujeira da sojeira: o guarani proibido

José Bessa Freire

Essa é a história de uma sojeira ou, perdão pelo trocadilho infame, de uma sujeira. A agronegociante brasileira descendente de alemães, Janice Neukamp Haverroth, dona de fazendas de soja em Colônia Luz Bella de Guayaibi, departamento de São Pedro, no Paraguai, quis estabelecer uma ‘política doméstica’ de línguas dentro de sua propriedade. Num áudio, glotocida que bombou nas redes sociais, ela determinou:

– “A partir de hoje é proibido falar guarani na fazenda. Proibido, vocês estão escutando? Pro-i-bi-do”.

O uso três vezes de “proibido” era para não deixar dúvidas. Ameaçou demitir quem não obedecesse a ordem e justificou dizendo que seu marido Aldo também estava incomodado.:

– “Nós não falamos alemão na frente de vocês. Se querem falar guarani devem procurar outro patrão que fale guarani, um patrão paraguaio”.

Acontece que o guarani, idioma oficial do Paraguai desde 1992, é falado atualmente por mais de 80% dos 7.5 milhões de paraguaios, a maioria em situação de bilinguismo com o espanhol, além de uma minoria monolíngue em guarani, segundo estimativas feitas pela Dirección General de Estadística, Encuestas y Censos (DGEEC) com base no Censo de 2012. A língua guarani tem mais de cinco séculos de resistência. A exemplo de toda e qualquer língua, vem mudando, mas insiste em sobreviver no meio das proibições e repressões.

No entanto, a relação dessas duas línguas nunca foi harmoniosa, porque o espanhol falado pelos detentores do poder continua sendo mais prestigiado.  Dos oito canais de TV aberta, apenas três apresentam aqui e ali programas com conteúdo integral em guarani. As editoras limitam suas publicações na língua, embora Mafalda já tenha dado o ar de sua graça: “Mbaeinchapa, che ha’e Mafalda tem ko’aga añe’ema guaraníme”, ela anuncia em sua apresentação: “Como estão vocês? Sou Mafalda e agora falo guarani”.

A escola também não abriu um espaço nobre para a maioria das crianças que são monolíngues em guarani e, por isso, são socialmente marginalizadas, com alto grau de evasão escolar.  Foi esse o contexto da proibição da sojeira, que se achou com grana e poder suficiente para reforçar a discriminação e proibir o guarani em sua fazenda, situada em território paraguaio.

Me desculpe

A resposta veio no plano institucional e na reação dos falantes de guarani. No primeiro caso, a Secretaria de Políticas Linguísticas condenou em nota oficial a sojeira por violar a Lei das Línguas (Lei 4251/2010), que garante os direitos linguísticos dos cidadãos paraguaios. O Ateneo y Cultura Guarani também repudiou o ataque “por parte de pessoas que mantém uma atitude imperialista e atropelam os direitos humanos dos falantes do idioma guarani”, criticando Janice por proibir que seus empregados vendessem sua força de trabalho numa língua oficial do país.

O fato ganhou a manchete do jornal ABC Color, que tentou entrevistar a sojeira, mas ela desligou o celular para não atender os repórteres. Uma multidão realizou manifestação em defesa da língua  na segunda-feira (1) e, para que a sojeira limpasse a sujeira feita, atiraram rolos de papel higiênico nas vidraças das janelas e no quintal da sua casa, em Curuguaty, cidade da região de Paranhos, tão distante da capital de Mato Grosso do Sul como o Rio é de São Paulo. Frases pedindo a expulsão do casal Aldo e Janice foram escritas na calçada da rua segundo noticiou o Campo Grande News.

A enorme repercussão internacional provocou indignação generalizada. Janice disse que não disse o que disse, seguindo o modelo de Trump e de Bolsonaro, os dois chefes de estado mais mentirosos do planeta. Mas a prova irrefutável da mensagem gravada se espalhou tanto, que ela foi obrigada a adotar o exitoso modelo cara de pau do veterinário e empresário Onyx Lorenzoni (DEM/RS vixe vixe), atual Secretário Geral da Presidência no Governo Bolsonaro. Flagrado com a mão no cofre em 2012, reincidente em 2014, ele admitiu três anos depois ter recebido da JBS uma grossa soma para o caixa 2 de suas campanhas, mas pediu desculpas.

Não sabemos se o Poder Judiciário do Paraguai vai agir como o então ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro, o ‘impoluto’, que perdoou o seu colega Onyx Lorenzoni, na época ministro-chefe da Casa Civil do Governo Bolsonaro, alegando que o veterinário reconheceu seu crime, mas não devia ser julgado nem punido porque havia pedido desculpas.

Lavar o tcherembó

Lorenzoni-mente falando, Janice acha que o pedido de desculpas é suficiente para limpar toda a sujeira feita nos 23 anos em que reside no Paraguai e dessa forma lavar o que os alemães denominam de “scheide” e os guarani denominam de “tcherembó”.

A relação da família Neukamp Haverroth com seus empregados nunca foi limpa e pacífica, informa Luis Indriunas, editor do De Olho nos Ruralistas. Quando os camponeses paraguaios se revoltaram contra os latifundiários brasileiros, em 2008, durante o governo do presidente Fernando Lugo, Aldo Haverroth foi acusado pela Organização Luta pela Terra de crime ambiental na fazenda El Progreso, de propriedade sua e de Valdir Neukamp. Os sojeiros brasileiros residentes no Paraguai tiveram participação decisiva na queda de Lugo, em 2012.

No Brasil são inúmeros os casos de discriminação contra as línguas indígenas. Há alguns anos, três deputados de Mato Grosso do Sul impediram que o líder terena Paulino, convocado a depor na CPI do genocídio, relatasse em sua língua materna do tronco aruak os ataques que sua comunidade vinha sofrendo. Da mesma forma, durante o júri dos acusados de assassinar o cacique guarani Marco Veron, uma juíza federal, contrariando a Constituição, se recusou a ouvir testemunha por meio de um intérprete. A gravidade de ambos os casos reside no fato de que representantes do Estado cometem delito ao desconhecer ou fazer descaso da legislação brasileira.

Algumas conquistas recentes merecem ser celebradas. Os esforços do movimento indígena com o apoio de seus aliados no Ministério Público, levou o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro a promover credenciamento de  intérpretes de várias línguas indígenas, embora a papelada exigida dificulte enormemente a operação.

Línguas intubadas

O incauto leitor que chegou até aqui pode perguntar: o que tudo isto tem a ver com a tragédia maior que estamos vivendo? O Brasil marcha de forma acelerada, sob a batuta da dupla Bolsonaro-Pazuello, para atingir as 300 mil mortes. Com a vitória de Biden e a vacinação em massa dos americanos, o Brasil ultrapassa os Estados Unidos em novos óbitos por milhão de pessoas. Agora, o América First dá lugar ao Brasil acima de tudo, ao Brazil First, pelo menos em número de óbitos, entre eles mais de mil mortos indígenas bombardeados pelo discurso negacionista sobre as ‘sequelas’ das vacinas propagado por pastores evangélicos que reproduzem o discurso do capitão:

– Chega de frescura e de mimimi. Vão ficar chorando até quando?  – declarou ele, mais preocupado em liberar armas do que em comprar vacinas.

A catástrofe sem precedentes da pandemia, a política genocida do Brasil e outros fatos da semana como a compra feita pelo Flávio Rachadinha de uma mansão em Brasília, assim como as peripécias do Poder Judiciário para não investigá-lo não tornam secundário um tema como a sujeira da sojeira?

Acontece que as línguas indígenas estão sendo intubadas. Não podemos deixar que se aproveitem da epidemia para fazer passar a boiada glotocida. Afinal, diz Bartolomeu Meliá, “a história da América é também a história de suas línguas, que temos de lamentar quando já mortas, que temos de visitar e cuidar quando doentes, que podemos celebrar com alegres cantos de vida quando faladas”. E que devemos defender quando agredidas – acrescento.

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