“O dia em que o morro descer e não for carnaval
Não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral” (Wilson das Neves)
Pedro Augusto Pinho*
No Brasil e nas nações em geral temos duas histórias: a narrada pelos colonizadores e a vivida pela população.
Para que possamos distingui-las claramente, alguns conceitos são necessários.
A SOBERANIA
O mais importante deles é a soberania.
O que é ser nação independente? É a que tem soberania. Mas que soberania? Não é só apresentar-se como um País, reconhecido pela autonomia formal com que ocupa assento em foros internacionais. Esta soberania, que adjetivaremos política, só é efetiva se a ela acrescentarmos as soberanias econômica, tecnológica e social.
A soberania econômica está na capacidade de produzir tudo que é indispensável para a existência de seu povo e poder, sem ressalva alguma, determinar quantidades e qualidades a serem produzidas. Vê-se, por conseguinte, que além de estreita vinculação com a soberania tecnológica, a soberania econômica caminha com a industrialização nacional. Um país exportador de produtos primários, de seus recursos naturais não processados e industrializados, não é nação independente.
A soberania tecnológica é a que possibilita um país produzir tudo que o proteja e defenda dos interesses estrangeiros. Um país, neste século XXI, que não tiver controle nacional de todas as fontes de energia, de toda tecnologia para produção, transmissão e recepção da informação – por exemplo: construir drones para fins militares, apenas com seus próprios recursos e desenvolver seus sistemas e linguagens na informática – de produzir seus veículos aeroespaciais e capacidade de explorar e administrar todos seus recursos naturais, não é nação independente.
Por fim, mais em primeiro lugar na importância das soberanias, a soberania social, isto é, um país sem escravos, um país de cidadãos. O que é ser cidadão? Não é apenas comparecer periodicamente à urna eleitoral; isto é a participação, que um cidadão livremente exercerá. Cidadão é ser um par, um igual, que não se submete a nenhum outro para viver, aprender e se expressar. Daí que a cidadania é uma construção permanente, um dever de Estado, e, como é óbvio, vai garantir a existência, a consciência e a vocalização de todos seus nacionais. Um país onde exista miséria, não é nação independente.
A COLÔNIA BRASILEIRA DE 1500 A 1920
Podemos distinguir, em nossa história, quatro fases coloniais.
A primeira, a única que pode ser encontrada em todos os livros de história, é do Brasil colônia de Portugal. Este período começa em 1500 e termina mais ou menos em 1808.
Nele lutou-se pela independência política. E produziu seus heróis e traidores, sendo os mais conhecidos Tiradentes e Joaquim Silvério dos Reis, respectivamente. Mas não foram os únicos. Como não tenho objetivo de ser exaustivo, apenas recordarei a Conjuração Baiana, de 1798, onde se luta pela soberania social ao lado da soberania política. Seus heróis foram Lucas Dantas, Manoel Faustino, Luis Gonzaga, João de Deus e o escravo Antônio José, envenenado na prisão.
O segundo período colonial brasileiro foi da submissão à Inglaterra. Ele começa com a chegada da família real portuguesa ao Brasil e termina, aproximadamente, com os movimentos tenentistas dos anos 1920.
O mais notável e triste caso de heroísmo e traição foi a Cabanagem, ocorrido entre 1835 e 1840. Com a vinda da corte portuguesa, a Inglaterra e Portugal assinaram Tratados de Aliança e Amizade e de Comércio e Navegação. Estes documentos concediam aos ingleses vantagens alfandegárias e comerciais que prejudicavam os que já haviam se estabelecido no Brasil. A Província do Grão-Pará, afastada das metrópoles, formara, na expressão do historiador Renato Guimarães, “com índios, mestiços e negros, a grande massa trabalhadora, calada durante séculos, mas não esquecida da brutalidade do tratamento nas aldeias e senzalas”.
Ideais das revoluções americana e francesa, chegados ao Grão-Pará, fermentaram os pensamentos libertários que a invasão da Guiana Francesa (1808 a 1817) pelos portugueses só fez aguçar. Diversos intelectuais, comerciantes, religiosos participaram deste movimento: Cônego Batista Campos, os irmãos Vinagre (Antônio, José, Manoel, Raimundo e Francisco), os imigrantes cearenses Geraldo, Manuel e Eduardo, Felix Antônio Clemente Malcher e Eduardo Francisco Nogueira Angelim. O grande traidor foi o padre Diogo Antônio Feijó que, reunido com representantes da França e da Inglaterra, além de Francisco de Andréa, barão de Caçapava, promoveu dos maiores assassinatos de nossa história. Naquela pouco povoada área, 30 mil pessoas foram dizimadas, sem cômputo dos índios, nunca conhecido. E com o cinismo que os colonizadores sempre trataram os colonizados, o dia que formalizou o fim da Cabanagem foi denominado “Dia da Pacificação”.
A Inglaterra desenvolveu um sistema colonizador baseado na dívida e na dominação política. No caso brasileiro, o Império fez as vezes da ocupação política, onde a Guerra do Paraguai, sem qualquer interesse nacional brasileiro, é o mais doloroso exemplo. Morremos para que a Inglaterra não tivesse opositor industrial na América do Sul. O caso de Delmiro Gouveia (1863/1917) é outro exemplo, na mesma linha de aniquilamento pelo colonialismo inglês.
Dois historiadores ingleses, Peter J. Cain e Antony G. Hopkins, escreveram alentado “British Imperialism 1688-2015”, com 3ª edição pela Routledge, NY/London, em 2016. Dedicam ao Brasil alguns tópicos. Sobre o período desta nossa era colonial, escrevem, em tradução livre. “Não surpreende que o Brasil tenha sido praticamente conhecido como um protetorado inglês durante a primeira fase de sua independência”. E, com franqueza (ou canalhice?), afirmam que “malgrado a longa associação com a monarquia brasileira a City não prolongaria seu sentimento a ponto de apoiar um perdedor”.
Também estes historiadores britânicos ressaltam que, na segunda década do século XX, os capitais ingleses estavam perdendo influência para a crescente presença dos Estados Unidos da América (EUA).
Fecho este tópico com as referências de heróis e traidores. Do citado “British Imperialism 1688-2015” transcrevo, em tradução livre: “Os ministros brasileiros em Londres eram tão anglófilos que Lord Salisbury ironizava se algum ainda poderia falar português”. Sobre André Rebouças afirmar que “os benéficos efeitos do capital estrangeiro, principalmente originado em Londres, graças à sabedoria da raça anglo-saxã, eram um tesouro para o mundo”.
Mas não se espante com estas sabujices, caro leitor. O tão elogiado Joaquim Nabuco, segundo Cain e Hopkins, teria afirmado: “quando eu entro na Câmara (de deputados britânicos ) sou inteiramente tomado pela influência do liberalismo inglês, como se trabalhasse sob as ordens de Gladstone. É o resultado de minha educação política: eu sou um inglês liberal, no parlamento brasileiro”.
A COLÔNIA BRASILEIRA DE 1920 A 1995
Por todo este período o Brasil foi dominado pelos EUA. Algumas considerações são importantes para compreendermos as mutações e os acordos dentro da elite brasileira. O conceito de elite que uso é bastante restrito, designa as forças mais significativas do poder, que orientam os governos e se associam ao exterior para os golpes nos governos nacionalistas e populares.
A industrialização foi, por toda parte, conduzida pelo Estado. Nos EUA, que mais fortemente influenciou o Brasil, foi o Estado que garantiu, com as obras de infraestrutura – principalmente, mas não somente, ferroviárias – a indústria siderúrgica, mecânica, elétrica e tantas outras que proporcionaram uma acumulação de capital, com o qual os EUA, primeiro a oeste do próprio território, depois na expansão pela Ásia e Oceania, construisse o Imperialismo Estadunidense. O outro modelo de industrialização, também conduzido pelo Estado, só diferia do estadunidense pela distribuição dos lucros.
Os lucros, nos EUA, eram dirigidos a uma pequena parte da população, que denominaremos capitalistas. Na industrialização soviética, os lucros eram apropriados pelo Estado e serviam para as políticas nacionais.
No caso dos EUA, todos que não fossem os capitalistas tinham pouca influência no poder, nos modelos socialistas o poder estava no partido político e mais precisamente em sua cúpula.
O projeto industrial brasileiro começa com a influência estadunidense na jovem oficialidade – os tenentes – e se opõe à elite rural, associada da Inglaterra. Diversas variáveis também interferem para que se desague esta disputa na Revolução de Trinta. Neste movimento havia o não estruturado projeto industrial desenvolvimentista e a primeira tentativa de resolver a questão da escravidão deixada pelo Império Brasileiro. A continuidade dos males da escravidão e sua própria permanência são, ainda hoje, empecilho ao atingimento da soberania brasileira.
O início da II Grande Guerra, levando os impérios coloniais do Atlântico Norte a reestruturarem suas pautas de prioridades, possibilitou uma aglutinação dos poderes nacionais no projeto desenvolvimentista. Assim a tentativa de reconstruir a colonização inglesa pelo poder fundiário paulista, em 1932, não ganhou adesão e foi derrotada.
Tão logo encerra a guerra, e como já recomendara o assessor dos governos dos EUA, o industrial e depois banqueiro, Nelson Rockefeller, os EUA voltam ao seu projeto colonial.
Se no período inglês, o nacionalismo, o patriotismo era combatido, com desmoralizações e assassinatos; no período estadunidense, o inimigo será a outra filosofia industrial: o socialismo. Comunismo será identificado à peste bíblica e se criará – lembrar que a comunicação de massa explodia (propaganda de produtos, televisão, Hollywood, revistas multicoloridas e discorrendo sobre todos os assuntos) – o mito ideológico e o discurso (que se tornará fonte de riqueza) do anticomunismo. Como em toda guerra, e os EUA serão extraordinariamente belicosos, visto inclusive como qualidade a ser conquistada, a verdade é a primeira vítima. A campanha anticomunista irá misturar o Estado, a industrialização nacional e a autonomia brasileira, com total prejuízo para nossa soberania.
Surgem os golpes de estado, preparados e financiados pelas instituições estadunidenses especializadas: 1945, 1954, 1964. Todos para impedir a soberania econômica e tecnológica brasileira.
São os traidores da Pátria, neste período colonial, quase sempre aqueles ligados à economia e às finanças: Eugênio Gudin (veja sua atuação contra o interesse brasileiro na exploração do petróleo boliviano e na criação da Siderúrgica de Volta Redonda), Octavio Gouveia de Bulhões e Roberto de Oliveira Campos (defendendo legislação de interesse das empresas estrangeiras e manipulando câmbio e dados da economia brasileira) e outros. Na lista dos heróis temos Getúlio Vargas, estadista que ainda hoje assombra os entreguistas nativos, Juscelino Kubitschek, João Goulart e Leonel Brizola.
Um momento controvertido deste período colonial foi o governo militar de 1964 a 1985. Não o discutirei aqui, mas tenho a compreensão que neste período tivemos três posturas distintas na questão da soberania: do governo Castello Branco, do governo Costa e Silva ao governo Ernesto Geisel e do governo João Figueiredo.
Pela complexidade e por estar nos atingindo no cotidiano atual, deixarei algumas considerações sobre o período colonial de influência estadunidense para tratar do banca.
A COLÔNIA BRASILEIRA A PARTIR DE 1995: O DOMÍNIO DA BANCA
Denomino banca o sistema financeiro internacional, pois são os bancos sua face mais visível. Pela primeira vez em nossa história não estamos subordinados a um poder ou império nacional. Estar colonizado por um sistema cria novas formas de analisar e agir.
Sair às ruas contra um tanque e ainda mais se for um tanque de outro país é primário. Levar às ruas contra um sistema que parece ser único e compulsório, não tem rosto nem endereço e faz a mais completa e profunda lavagem cerebral em todos é uma tarefa titânica. Daí este colonizador se denominar, pomposamente, nova ordem mundial.
Algumas considerações sobre sua origem. Se o planejamento na era do capital industrial era combatido como coisa de Estado totalitário, ação de comunista, mas do qual nenhum poder imperial descartava, na ação da banca é fundamental.
A banca não tem um único benefício para oferecer, mas tem todos os malefícios para proporcionar, até a seus serviçais. Tudo se transforma num jogo. Lembram que toda área econômica do governo FHC só tratava de aposta? Não era uma simples forma de expressão, mas, como todo homem da banca, a especulação é o modo corrente de agir. Assim, ao mudar um objetivo ou um parâmetro econômico, eles diziam: estou apostando nisso ou naquilo.
A banca tem origem no colonialismo financeiro inglês, mas ganhou nova dimensão e forma com o neoliberalismo – Thatcher e Reagan – com o qual aglutinou interesses lícitos e ilícitos da gestão internacional do capital financeiro – globalização. Desta maneira a banca está no controle de empresas industriais, das grandes petroleiras, do tráfico de drogas, nas migrações provocadas pelas guerras, na comunicação de massa e mesmo em Estados Nacionais.
Seu modelo concentrador de renda coloca os próprios capitais que a formam em disputa. Desde quando acompanho, por fontes indiretas, suas movimentações, já pude observar que capitais que eram importantes oito, dez anos antes, se desfaziam ou fluíam para outras áreas.
O Brasil não foi expressivo para a banca depois do retorno à democracia parlamentar e com a prova dos testes eleitorais de Fernando Collor e Fernando Cardoso. Ela pode constatar que o núcleo do poder brasileiro permanecia o mesmo do início do século XX: escravista e rentista, ou seja, um aliado seguro.
A descoberta do petróleo no pré-sal, o aumento das reservas de nióbio, os aquíferos e a possibilidade de controle das águas potáveis e antes da construção da consciência cidadã (que as políticas públicas dos governos do Partido dos Trabalhadores poderia atingir) fez com que fosse planejado o golpe de 2016.
Este começou na doutrinação e na corrupção do poder judiciário pois a experiência do uso de militares não deixara a banca satisfeita. Houve governos que buscaram executar o projeto industrial desenvolvimentistas dos tenentes de 1920.
O atento leitor não terá dificuldade de associar o desmonte da indústria brasileira, os programas de privatização, a criminalização das empresas privadas e estatais com as sentenças ou engavetamento de processos, em todos os níveis do poder judiciário.
Também facilmente verificará a classe média entorpecida, incapaz de vislumbrar seu umbigo, agindo contra seus próprios interesses de médio prazo. Também, como muitos analistas apontam, o ódio ancestral ao escravo – que produziu a riqueza transferida pelo Império aos cofres ingleses – e a extrema pobreza, a miséria mostrando a perigosa realidade social brasileira, que desnuda a ação autodestrutiva desta classe. Não discordo destes analistas, mas acrescento a didática colonial que serve como um véu a encobrir e mascarar o conhecimento do Brasil, de seus heróis e seus inimigos ou traidores.
Embora esta digressão não termine aqui, já podemos colocar a questão: qual o sentido da intervenção militar no Rio de Janeiro?
Como sempre uma soma de estímulos e ações que vão desde a visão de longo prazo da banca à mesquinharia da inveja do carro novo do vizinho.
Primeiro temos que reconhecer que vivemos, hoje, sob um governo totalitário. O que é isto? Segundo o grande pensador contemporâneo Noam Chomsky, é quando o governo controla as pessoas pelos cassetetes ou fabricando consciência através da propaganda, da criação de ilusões, e marginalizando o povo em geral, reduzindo-o a alguma forma de apatia. Não é a perfeita descrição nossa de cada dia?
Mas por que uma prova a mais para o legislativo e o judiciário? De início, e em se tratando da banca, para explicar a nova e substantiva transferência de recursos do público para o privado. Isto irrigará ainda mais os jardins que fluem para banca.
Mas há a questão da inveja, como apresentei. Ela está nas eleições de 2018 que podem mudar o cenário político brasileiro e, portanto, devem ser “reorganizadas” e, se não houver outro meio, canceladas. A intervenção no Estado, que nem é o mais violento da “Federação”, justificaria sua ampliação. Também se procura envolver as Forças Armadas, em especial o Exército, de onde tem surgidos pronunciamentos críticos ao governo golpista. Houve quem visse igualmente a penetração do Primeiro Comando da Capital (PCC) de São Paulo em outras áreas do País, especialmente o Rio de Janeiro. Há sentido quando constatamos o envolvimento de senadores ligados ao golpe e outras pessoas de proa neste governo ligadas, de algum modo, à criminalidade organizada de São Paulo e ao tráfico de drogas.
Poderíamos continuar explorando possibilidades ou, na linguagem da banca, especulando. Mas creio que já temos a lição aprendida: é indispensável a união de todos os que lutam pela soberania nacional, esquecendo feridas antigas, para finalmente assegurarmos nossa verdadeira independência.
*Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado