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quarta-feira, 17 abril, 2024

A fome e a vaca do imperialismo americano

José Bessa Freire

Eu só vou falar com Deus / quando ele matar a fome dessa criança / sem nome que não para de chorar. (Reynaldo Jardim. Sangradas Escrituras. 2009)

Mi nodriza fue la vaca del imperialismo americano.

Esta frase panfletária, a primeira que escrevi em espanhol, aos 22 anos, fazia parte de uma prova de redação sobre a fome. A lembrança surgiu ao ler nesta quarta (8) o resultado do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, mostrando que 125,2 milhões de brasileiros convivem hoje com graus leve, moderado ou grave de insegurança alimentar, todos subnutridos, mas no último deles estão 33 milhões de pessoas em situação de extrema pobreza, que estão morrendo de fome.

O tema da prova foi sugerido na época por Patrícia, professora de língua espanhola, no curso gratuito ministrado em 1969 para exilados brasileiros. Três vezes por semana, percorríamos a pé as avenidas Vicuña Mackena e Irrarrázaval até o Instituto Pedagógico da Universidade de Chile na comuna de Macul. Lá o titiriteiro Euclides Souza deixou de beber “cueca cuela”, o jornalista Tarcisio Lage entendeu que “buzeta” era apenas micro-ônibus e eu aprendi que “nodriza” era “ama de leite”.

Na aula sobre as relações do Chile e Brasil com os Estados Unidos, Patrícia destacou o programa Aliança para o Progresso criado pelo presidente John Kennedy, cujas organizações de intervenção na América Latina – a USAID e os Corpos da Paz (Peace Corps) – tinham voluntários encarregados de doar leite e óleo de cozinha. Tais ações “humanitárias” contavam com apoio, no Brasil do jornal O Globo e, no Chile, de El Mercurio, que respaldaram depois os golpes militares.

Dessa forma, crianças e jovens da minha geração se alimentaram com o leite em pó da vaca americana, que trazia escrito na lata a frase “donated by the people of the United States of America”. Era uma doação, com advertência em inglês de que o leite não podia ser vendido ou trocado.

Food for peace

Mas havia troca, talvez até inconsciente, por bens simbólicos. No nosso bairro, o gringo voluntário do Peace Corps, de nome David, com porte de jogador de basquete, dava prioridade às famílias que frequentavam com assiduidade as atividades da Paróquia de Nossa Senhora Aparecida, em Manaus, a cargo dos Padres Redentoristas vinculados à Província de Oconomowoc (EUA). Estava subentendido: assiste as aulas de catecismo, que eu te dou uma lata de leite.

Era assim que a ama-de-leite da USAID amamentava crianças e jovens com alimento distribuído também na merenda escolar. Foi daí que surgiu a frase em espanhol, que abria a citada redação: Mi nodriza fue la vaca del imperialismo americano.

No início, o termo “imperialismo americano” não estava em nosso radar. Só depois descobrimos o que se escondia por trás do discurso “humanitário” da Aliança para o Progresso e nos perguntamos: Progresso de quem? Paz para quem, cara pálida? A pouca “food” era para garantir o “progress” e a “peace” deles. Era “food” como diria “Fócrates”.

A professora de espanhol fez um histórico da Aliança para o Progresso, desde sua criação, em 1961, na Reunião da Organização de Estados Americanos (OEA) em Punta del Este (Uruguai). Foi lá que Che Guevara, representante de Cuba, chutou o pau da barraca e denunciou que o objetivo era a intervenção dos Estados Unidos nos países latino-americanos para beneficiar o capital de suas empresas e obstruir as transformações sociais e políticas, essas sim necessárias para acabar com a fome:

– Denunciamos a Aliança para o Progresso como uma manobra destinada a separar o povo de Cuba dos outros povos da América Latina, bloquear o exemplo da Revolução Cubana e, depois, domesticar os outros povos de acordo com os interesses do imperialismo” – disse o Che em seu discurso.

Silêncio dos ausentes

Não deu outra. No ano seguinte Cuba foi expulsa da OEA e até hoje sua voz não pode ser ouvida em eventos como o da Cúpula das Américas, encerrado nesta sexta (10), sob o protesto do presidente do México, que se recusou a comparecer, assim como do presidente argentino Alberto Fernández, que nas barbas do Joe Biden, fez discurso contundente contra o bloqueio a Cuba, Venezuela e Nicarágua:

– Definitivamente, queríamos outra Cúpula das Américas. O silêncio dos ausentes nos interpela.

Quando uma década depois, Richard Nixon extinguiu o programa “Food for peace”, as ações militares dos Estados Unidos na América Latina se multiplicaram. No período de 1960-1969, segundo dados da própria USAID, foram liberados US$ 980 milhões na rubrica Assistência Militar, que contribuíram para instalar ditaduras favoráveis ao imperialismo americano, com censura à mídia, ao teatro, ao cinema, à música, além de tortura e assassinato de opositores.

Na década de 1960, golpes militares financiados e apoiados pelos Estados Unidos demoliram democracias no Equador, Peru, Guatemala, República Dominicana, Bolívia, Brasil, Argentina e El Salvador. Mas a fome e a miséria nesses países aumentaram de forma galopante, com o crescimento das desigualdades sociais. Nenhuma dessas ditaduras foi excluída da OEA.

A médica sanitarista Ana Maria Segall, professora da Unicamp, que fez parte do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), extinto pelo governo de Jair Bolsonaro, constata que no Brasil “houve uma piora rápida e muito expressiva do acesso a alimentos”. E apresenta dados:

– “Em 2018, 5,8% dos brasileiros passavam fome e agora, em 2022, são 15,5% da população que passaram a conviver com a fome em suas casas”.

O bicho

Diante de tal quadro, o discurso do Coiso na Cúpula das Américas nesta sexta (10) soou como chacota e escárnio:

– O Brasil alimenta 1 bilhão de pessoas. Garantimos a segurança alimentar de um sexto da população mundial. Sem o nosso agronegócio, parte do mundo passaria fome – ele disse, sem mencionar os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), órgão ligado ao próprio Governo Federal por ele presidido, que registrou a existência de 33 milhões de brasileiros em situação de fome, equivalente ao dobro da população do Chile.

. O Coiso mente, mente, mente diante do mundo inteiro, que sabe que ele está mentindo. Tenta esconder as causas do aumento da fome no país: o empobrecimento da população, o desmonte de políticas sociais e de abastecimento, o crescente desemprego, o achatamento dos salários e a inflação, conforme sinalizou Francisco Menezes, ex-presidente do extinto Consea.

Em declaração publicada na Folha de SP, o atual diretor-executivo da Ação da Cidadania, Kiko Afonso, considera que ao lado do crescimento da fome, houve uma diminuição da indignação dos brasileiros, que está muito aquém dos protestos de 1993. “Estamos inertes como sociedade”. As marchas contra a fome organizadas pelo MTST não adquiriram ainda a densidade necessária.

O conhecido poema “O Bicho” de Manoel Bandeira, hoje é mais atual ainda do que em 1947, quando foi escrito. Parece que a vaca imperialista deixou de dar leite, mas não parou de mugir.

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