Havana (Prensa Latina) Se a Síria estivesse encrustrada em um ponto estéril, longínquo e desconhecido em qualquer oceano, por onde nem os barcos passam, certamente suas cidades e campos estariam intactos e seu povo viveria feliz com sua multiplicidade de tendências religiosas, sem êxodo nem pranto, nem o luto que carrega.
Mas teve a má sorte de estar situada no meio da rota do petróleo e ser um cruzamento transcendente em uma região onde se atravessam as jazidas de gás natural mais importantes do mundo, tanto em terra como no Mediterrâneo, vitais para o consumo energético e a vida, berço de grande parte da Europa.
Está localizada, além disso, em um dos extremos geográficos de maior concentração de pólvora e metralhadoras, presa como um sandwiche explosivo entre a Turquia, o Iraque e Israel, flutuando acima de reservas de hidrocarbonetos e gás natural sobre os quais fazem planos de exploração presidentes e premiês além dos mares, em complôs com xeiques, emires e califas, executivos de poderosas empresas, generais e políticos fora e dentro do Levante, que relevam com desdém termos como soberania, independência, direitos nacionais e outros que estão hoje sem significado.
A Síria, obviamente, não é vítima de um destino manifesto – que todo mundo sabe não existe ainda que façam questão de fazer acreditar – por possuir uma riqueza de petróleo que para alguns países é uma maldição. Se isso fosse verdade, a sorte da Arábia Saudita seria horrível por sua condição de primeiro produtor do mundo, pois na guerra fria e nas quentes, os tiros, as bombas, as sabotagens, o terrorismo, os mortos, feridos e mutilados tiveram preferência pelos países da produção periférica de petróleo, excluindo os sauditas.
O panorama não mudou no pós-guerra fria e a Venezuela, pressionada pelas empresas de petróleo norte-americanas e européias, é um bom exemplo. O Iraque continua sendo outro.
Se o combustível fóssil, seja gás ou petróleo, não gerasse ganâncias desproporcionais e paranóicas, o Oriente Médio há anos seria uma zona de paz e estaria entre as áreas de maior contribuição à cultura universal devido à sua rica e milenar história desde muitos séculos antes de Cristo.
Mas, quem se atreve a declarar o Levante zona de paz? Ninguém. Os interesses que ali convergem desde os quatro pontos cardeais são uma bomba gigantesca de fragmentação que pendura sobre o planeta, quase impossível de desativar porque implica o sacrifício da renúncia, uma penitência que não está no evangelho das multinacionais do petróleo.
O Levante é agora zona de sangue, não pela presença de um suposto Estado Islâmico (EI) fabricado como Frankestein em algum laboratório escuro sem rosto nem impressões digitais, que surgiu como passe de mágica depois das invasões militares dos Estados Unidos ao Iraque e Afeganistão, e muito depois do Bin Laden ou da Al Qaeda e da Irmandade Muçulmana, ou da Al Nusra.
O mais grave é que o EI já se inscreveu nos livros de batizado com todos os pontos e vírgulas: tem rosto, sede e capital, um líder público, anuncia pretensões territoriais monumentais e é apoiado inclusive por alguns que declaram combatê-lo.
O Levante também não é zona de sangue porque atribuem a ele ser mãe do terrorismo, ou porque a necessidade do espaço vital justifique aos olhos de alguns as matanças de palestinos, e justifiquem que organizações internacionais e grandes metrópoles fiquem calados quando é exigida em fóruns a retirada de Israel dos territórios árabes ocupados e o fim de sua colonização.
Nada disso: o Oriente Médio é zona de sangue pela presença de gás e petróleo em seu subsolo e a posição estratégica que ocupa para a distribuição e comercialização para a Europa e o resto do mundo mediante oleodutos, gasodutos e tanqueiros, e isso explica a desgraça do Iraque, da Líbia, as ameaças ao Irã ou a devastação da Síria, e inclusive o próprio drama territorial curdo e sua eterna diáspora e divisões seculares.
Evidentemente, o Estado ou Emirado Islâmico, como também é chamado, foi uma enteléquia sem nenhum tipo de estrutura, que evolui para formas superiores de organização e comando mediante a violência criminosa e o medo terrorista. No caso específico da Síria, se aproveitaram da ambição ocidental de fustigar até eliminar o governo de Bashar Al-Assad, o que explica a necessidade de manter uma presença militar norte-americana e européia para sustentar a ocupação do Ocidente na região.
Não são poucos os que acham que há um propósito não tão oculto de balcanizar a Síria e criar um Estado fachada artificial na região norte, com a utilização de facções curdas, para deixar o governo de Bashar Al-Assad na inópia e pronto para ser substituído por um regime da Irmandade Muçulmana, da qual o presidente turco Recep Tayyip Erdogan é membro e propulsor.
Seria uma tarefa nestes momentos difícil e quase irrealizável pelo obstáculo que significa a presença russa nos campos de batalha, e porque a Turquia e Israel dificilmente poderiam limpar as profundas divergências entre o regime do Curdistão iraquiano, presidido por Masud Barzani e apoiado por Tel Aviv, e as facções curdas turcas adversárias deste e de Israel.
Benjamin Netanyahu não renuncia ao velho plano de assaltar, com os peshmergas do clã Barzani, o norte da Síria e criar um Curdistão independente na fronteira com o Iraque, mas nem os curdos sírios nem os turcos aceitam este governante corrupto e se correria o risco de que um Estado fachada nessa zona reative o conflito curdo na Turquia, onde vivem quase 20 milhões deles. Os curdos do Irã também não o aceitariam.
O propósito do presidente Erdogan, de que um novo Curdistão seja governado por uma minoria turca, obviamente não pode avançar e continua sendo um sonho de uma noite de verão.
Já os Estados Unidos e a Europa prefeririam a eliminação do atual governo de Bashar Al-Assad e o estabelecimento de um governo da Irmandade Muçulmana que procuraria impor dirigentes dessa tendência na Jordânia e no Líbano, mas como acontece com o hipotético Curdistão independente, a presença militar russa e seu sucesso sobre as forças terroristas tornou esse sonho impossível. Na crise síria, há que contar com o presidente Al-Assad para sua solução.
O jogo dos Estados Unidos era claro: mudar a geopolítica inteira do mercado de gás mundial a favor das empresas ocidentais e Israel e dar assim um golpe mortal à Rússia e ao Irã no comércio dos energéticos. Mas não conseguiram.
No meio desse panorama, especialmente quando, do ponto de vista militar, as forças terroristas do Estado Islâmico sofrem as piores perdas e o exército sírio recupera terreno perdido, acontece a derrubada do Bombardero Su-24 russo por parte das forças armadas turcas, criando com isso uma terrível confusão no meio de um vendaval de especulações.
O fato se produz quando já a Rússia e a Turquia tinham aprovado a construção de um gasoduto, o Turkish Stream, que com um investimento estratosférico de 10 bilhões de dólares, serviria aos russos para transportar gás de seu país para território turco e dali à Grécia e outros mercados europeus.
Um negócio redondo para Erdogan e para a União Européia que deixaria de estar afetada pelo sabotagem dos Estados Unidos ao gasoduto South Stream, que levaria o gás russo da costa do mar Negro até Tarvisio, Itália, e dali ao resto da UE.
O ataque ao Su-24 era impensável não apenas porque a Turquia tinha se aliado aos países que supostamente atuavam contra os terroristas do Estado Islâmico, mas que, além disso, em 16 de novembro, Moscou e Ancara anunciavam “próximos encontros governamentais” para dar início ao projeto Turkish Stream, entre outros temas.
Mas exatamente oito dias após esse anúncio, um míssil Aim-120 Amraam de fabricação estadunidense lançado por um avião turco F-16, derrubou o bombardeiro tático russo no norte da Síria sobre a área prospectiva para a instalação do hipotético novo Curdistão.
Ancara sabia que com essa ação se complicava muitíssimo a situação na Síria e toda a região, e ficaria descartado o ambicioso projeto Turkish Stream. Além disso, colocava em grave risco o consumo nacional de gás que depende 55% do abastecimento russo, e de seu petróleo que enche 35% dos depósitos turcos.
Sabe-se, obviamente, que o presidente Barack Obama não concordava com essa megaobra russo-turca e tinha pedido a Erdogan, em comunicação de 22 de julho, que se retirasse do gasoduto, mas este último desobedeceu a ordem e seguiu adiante no plano com Moscou.
Há muitas especulações sobre o propósito por trás da derrubada e a quem beneficia ou prejudica – se Erdogan atuou por conta própria ou esteve dirigido por alguém, se foi uma tentativa da Turquia de tirar os russos da área onde se pretendia criar um novo Curdistão, ou da Europa e de Israel para ocupar uma área da Síria, como fizeram os aliados com Berlim em 1945, e inclusive se foi uma ordem dada pela OTAN, da qual a Turquia é membro.
Certamente, para o presidente Putin e o governo russo, não há mistérios nem especulações e o próprio mandatário disse de forma muito clara e específica que eles (a direção turca) saberiam o que fazer.
A conta que os criadores do incidente não fizeram é que com a derrubada do avião, a Rússia fica com razões de sobra para aumentar sua presença militar na Síria, para onde já mobilizou seus modernos foguetes antiaéreos S-400.
Também serviu para deixar de lado o compromisso e a retórica diplomática com a Turquia pelo tema do gasoduto e desmascarar perante o mundo a corrupção em que se afoga o governo de Erdogan, em que medida se aproveita da situação síria para enriquecer com seu petróleo e financiar a Al Qaeda, os Irmãos Muçulmanos e o Estado Islâmico, que diz combater.
A derrubada do avião freou também os planos de Israel, França e Reino Unido de criar um novo Curdistão e deve trazer também consequências fatais a Tel Aviv em seus planos de poder explorar a jazida de gás descoberta em 2010 em frente à costa de Porto Haifa, de 16 biliões de pés cúbicos, chamada de Leviatã devido a suas dimensões monstruosas, pois está em uma região perigosa demais para investidores.
Nesse caso específico, Tel Aviv entende que, nestes momentos, a extração e comercialização do gás do Leviatã depende da evolução da guerra na Síria e do papel militar preponderante da Rússia.
Todo este ambiente explica em parte por que os criadores e apoiadores de grupos terroristas como o Estado Islâmico ou Al Qaeda têm medo deles como o próprio doutor Víctor Frankeisten teme sua criação monstruosa que ao final o assassinou, e anunciam agora ações militares contra eles após anos de tolerar crimes, bombardeios e saques que deixaram a Síria em ruínas, criaram uma avalanche de refugiados mais angustiante e deprimente que o êxodo do Egito.
Paradoxos da história: os mesmos protagonistas da tomada de Berlim em 1945, incluída Alemanha que curiosamente se incorpora à aliança após a derrubada do avião russo, estão na Síria neste momento, ainda que desta vez não parece que para terminar a guerra, mas para torná-la mais encarniçada e talvez para expandi-la.
Há uma batalha cruel pelo controle da Síria como aconteceu por Berlim mas, como naquele momento, é só a ponta do iceberg.
A Síria é o teatro circunstancial dos fatos. O pior é que a converteram na encruzilhada que leva à paz ou à guerra euro-asiática e norte-americana. A primeira, promovida por aqueles que lutam por uma responsabilidade compartilhada em um mundo multipolar, a segunda, a mais selvagem que o homem vem enfrentando desde que começou a caminhar, por aqueles que continuam obstinados por um controle unipolar do universo.
* Editor da Prensa Latina. |